Profundezas escrita por Betty


Capítulo 1
Capítulo 1




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2 de novembro é uma data divertida, não é mesmo? Olhando para os adornos da celebração, as pessoas, a comida, eu adoraria estar nessa festa se fosse em qualquer outro dia. Mas não hoje. Hoje, nessa noite regada a música e bebedeira, eu sinto como se meu coração estivesse quebrando em milhões de pequenos pedaços. 

O céu está negro e sem nuvens, apenas com algumas estrelas, indicando que vai fazer calor no dia seguinte. Por baixo da minha roupa e de toda a maquiagem, o meu corpo está ardendo em febre, mas ainda assim eu insisti em sair. No primeiro dia de festa, eu deixei tudo para trás e fugi, mas ninguém deu atenção, porque é algo que eu costumo fazer. Mas dessa vez, é diferente. 

Sinto o cheiro de cigarro por perto, mas não é ele. Olho em volta, na esperança de encontrar aquele par de olhos castanhos que sempre estão por perto, mas eles não estão. Há muito não estavam, e eu sequer sei se vou voltar a vê-los. Nesse momento, as minhas ideias não passam de borrões, no meio de uma nuvem de fumaça. Sussurro seu nome, para ninguém em especial, e as pessoas passam por mim sem me notar. 

Uma multidão segue o embalo da festa, e eu estou ficando para trás. Com um copo de bebida quente nas mãos e meu celular na outra, eu tento ligar, mas algo me impede: o orgulho. O medo de rejeição, o medo de ele não atender. Encaro as ligações que eu não atendi, as mensagens que eu não li, e meu coração se torna mais pesado a cada passo. Todo ano, nós celebramos esse dia juntos, e não estar com ele ali é como se parte do meu coração estivesse morta. 

Esse país ferve quando é dia dos mortos. No centro da Cidade do México, pessoas professam sua fé da forma mais bonita que eu conheço. Eu mal consigo tocar o chão com meus pés; a multidão me leva, seguindo o caminho das festas e procissões, e meus olhos quase não conseguem acompanhar tudo. Com uma câmera, fotografo um altar colorido, com velas, fotos e flores, e um homem que acende velas para algumas crianças. 

— Pete! - grito, e o homem congelou onde estava. Num ímpeto, corro até ele e paro a alguns passos do seu corpo, sem saber o que fazer. Ele está olhando para mim como se eu fosse o Messias, e eu começo a tremer dentro da jaqueta. Não está frio, mas a presença de Pete faz com que eu sinta que a temperatura caiu. 

— Me abraça - pede ele, antes que eu sequer abra a boca. 

Num milésimo de segundo, eu corro até ele e me jogo em seus braços, envolvendo-o com os meus como se eu fosse uma cobra. Sinto seu perfume forte e as batidas aceleradas do seu coração contra o meu peito, e todo aquele barulho parece cessar por um instante. 

— O que está fazendo aqui? - pergunto, num sussurro em seu ouvido, ainda sem quebrar o abraço. Eu jamais quebraria um abraço primeiro; nunca sabemos o quanto a outra pessoa pode estar precisando. 

Pete hesitou antes de responder. Balançando a cabeça, ele dá de ombros e olha para baixo. Seguro seu queixo e o forço a olhar para mim, nem que seja apenas por alguns momentos. E, encarando aqueles olhos, eu percebo o quanto eu o amo. E o quanto não sou suficiente. 

— Eu vim para a festa - responde ele, ainda tímido. - Você sabe, nós sempre viemos juntos, e...

— Eu entendo - interrompo, querendo, mais que tudo, beijá-lo e dizer que a nossa história não acaba assim

 

Pete acende um cigarro, e eu reviro os olhos. Ele sabe que eu odeio esse hábito, principalmente quando ele fuma perto de mim. Mas acho que ele não se importa agora, tanto que nem se deu ao trabalho de apagar o cigarro para falar comigo. 

Olhando seu corpo tatuado e bronzeado, eu percebo uma série de coisas, inclusive que não posso simplesmente estar longe dele. Mas ao mesmo tempo, não importa o quanto tentamos, as coisas não dão certo entre nós, e às vezes eu não sei se culpo o otimismo exagerado dele, ou o meu ciúme estúpido. 

E embora nós sempre prometamos que seremos amigos, isso nunca funciona. Eu sempre acordo no dia seguinte na cama dele, e com todas as minhas roupas espalhadas pelo chão. E eu não sei se consigo mais continuar me enganando, mentindo, como se não o amasse. 

— Não consigo mais fingir que não amo você - eu digo, depois de um longo momento de silêncio. Pete solta a fumaça do cigarro pela boca, me olhando com uma expressão vazia. Encostado numa parede, no meio de uma rua lotada no centro da cidade, ele preenche o espaço vazio entre nós e me beija. Eu derreto nos braços dele, com os olhos fechados e minhas mãos em seu rosto gelado. 

— Eu já desisti de negar isso há muito tempo - diz ele quando se afasta, mas por um breve segundo permanece com seus lábios presos aos meus. - Eu ainda te amo, só você não vê.

— Do que adianta eu amar você, se você não consegue ser meu amigo? - pergunto, segurando uma lágrima rebelde, que cai mesmo assim. 

— O que isso quer dizer? - diz Pete, com uma expressão confusa. 

— Peter, eu te conheço a maior parte da minha vida, e você nunca confiou em mim de verdade - esclareço. - Você nunca me contou sobre sua vida, suas namoradas, e eu nunca vi suas letras antes de os seus álbuns serem lançados. Nós nunca nem fomos amigos!

Pete escuta em silêncio, mas eu percebo que ele sabe que eu tenho razão. Acho que não adianta amá-lo profundamente como eu amo, se ele não aceita dividir nada comigo, e eu não consigo me submeter a ser apenas algo secundário para ele. 

Estar longe de Pete, em todas as vezes que eu estive, me fez uma pessoa diferente da que ele estava acostumado a ver. É como se, a cada vez que ele batesse a porta, ele afiasse uma faca, e a deixasse cada vez mais afiada. 

Perto do altar, numa praça no centro, a festa continua cheia de gente mesmo já sendo madrugada. Caminho lado a lado com Pete, segurando seu braço, quanto ele carrega uma grande cruz adornada com flores. Perto de nós, crianças fantasiadas e caveiras desenhadas nas paredes preenchem o espaço, deixando a noite ainda mais colorida. 

Mesmo com nossos ombros andando encostados, eu me sinto cada vez mais afastada de Pete. Ele se diverte com as criancinhas e dança com os músicos, mas eu sinto como se nada daquilo bastasse. Sinto que não é assim que a nossa história vai acabar, porque foi assim que ela começou, nesse mesmo local, no mesmo dia, anos atrás. 

Ou não.


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Notas finais do capítulo

Então?



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