De homem a monstro escrita por FeMatias


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Aproveitando os últimos minutos desse dia 31 para postar mais uma história de Halloween, dessa vez sobre esses personagens icônicos. A história se passa no universo do filme e conta uma atrocidade à família Drácula aos olhos de um homem amargurado. Espero que tenham uma boa leitura.



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Estou sentado no bar, entornando mais um caneco encorpado de cerveja preta. As minhas bochechas estão ruborizadas pelo frio cortante que envolve a data comemorativa do Halloween. Eu esquento o meu corpo pelo lado de dentro com a bebida aquecida, sozinho.

Há mais pessoas um pouco menos solitárias do que eu aproveitando a noite no bar. Há quem se divirta na sinuca — uma das maiores novidades inventadas nas últimas décadas —, e há quem opta por saboear em goladas longas um caldo de carne entre amigos, conversando e rindo alto.

A porta dupla do bar se abre, permitindo que um vento duro invada o estabelecimento e erice os pelos da minha nuca.

Acompanhado dele, uma mulher — de estatura média e vestindo uma roupa fina demais para suportar a umidade gélida do ar — mostra-se presente.

Ela se acomoda na cadeira vaga ao meu lado, dentre tantas outras cadeiras vazias dispostas diante do balcão, com extensão.

Oferece-me um sorriso simpático. Em troca, eu lhe pago um copo grande de cerveja preta.

Ficamos bebendo em silêncio por algum tempo. Depois que ela fica um pouco bêbada, começa a falar sobre si. Não é alguém muito interessante, mas sorrio e finjo interesse enquanto a moça discorre sobre as relações amorosas malsucedidas que teve desde a adolescência até a noite passada.

Quando ela se silencia, pergunto:

— Posso contar uma história?

— Uma história de Halloween?

— Claro, por que não? Mas essa não é qualquer história. — A mulher sorri, puxando a cadeira para mais próximo de mim. — É uma história real sobre um homem que se transformou em um monstro.

— Se for muito assustadora, não poderei dormir sozinha — avisa, brincalhona e provocativa. Sabendo que o seu bom humor não continuará até o final da história, mostro-lhe um sorriso complacente.

— Combinado.

Ela coloca os cotovelos no balcão e descansa a cabeça sobre as mãos, parecendo ansiosa.

O meu sorriso se desfaz com brusquidão quando as memórias começam a surgir na minha cabeça.

— Era 1894, numa noite muito parecida com essa.

— Há tanto tempo assim? — ela me interrompe. Sorrio para ela e peço que guarde as perguntas para o final, caso ela aguente continuar ao meu lado depois que descobrir a verdade.

— Nesse dia, um homem apareceu transtornado na praça do centro. Disse que algo de muito ruim tinha acontecido numa ruela e que ele, por estar sozinho, não conseguiu impedir. Eu estava com os meus amigos, todos muito jovens, e ouvi o relato do homem com bastante curiosidade.

‘Todos nós nos juntamos para averiguar a situação e nos deparamos com uma cena horrível. O corpo de um desabrigado estava largado no barro úmido da estrada com os olhos abertos, foscos e imóveis, encarando as nuvens que cobriam o céu e escureciam ainda mais a noite.’

A moça tem seu sorriso fragilizado quando tenta visualizar mentalmente a cena. Eu tomo mais um longo gole para aquecer a garganta e prossigo:

— Alguém o tinha assassinado, nos contou o homem, mostrando quanto sangue se aglomerava debaixo do morto. Eu fiquei bem intrigado e fui o primeiro a perguntar quem era o responsável por tal crime. E ele disse a maior insanidade que alguém pode dizer.

— O que ele disse?

— Disse que foram vampiros. — A sobrancelha da mulher revela seu ceticismo. Dou uma boa risada, tentando demonstrar que no dia eu me senti da mesma forma que ela, então continuo: — Nós verificamos que no corpo havia dois buracos profundos no pescoço, mas isso não provava nada. Entretanto, alguém na multidão se manifestou favorável às palavras do homem.

‘Era um caçador antigo. Disse que muitos animais estavam sendo encontrados mortos pela reserva, totalmente sem sangue, e que fazia sentido ter vampiros vagando por nossa cidade minúscula, porque só isso explicaria a morte dos animais. Haviam anos que ele caçava e não conhecia nenhum bicho que bebia sangue de outros animais sem que comessem a carne deles junto.’

‘Mais especulações foram surgindo pouco a pouco, até que citaram o nome de um casal que não morava conosco há tanto tempo. Achamos suspeito eles serem tão ricos e tão diferentes de nós. Quanto mais a gente discutia, mais percebia que ninguém os tinha visto andar durante o dia pelas ruelas, mais se dava conta de que ninguém sabia nada desse casal.’

‘A cidade era pequena demais para alguém conseguir se manter em anonimato. Todos se conheciam. Segredos se tornavam fofocas conhecidas por todo mundo em questão de um dia, ou menos. Como aqueles dois conseguiam ser uma exceção a algo tão enraizado no nosso cotidiano? Era coincidência demais.’

‘Então, tudo aconteceu muito rápido. Um clamor incendiou o nosso senso de justiça e marchamos juntos em direção ao castelo imponente do casal forasteiro segurando tochas e forcados.’

Ao dizer a última palavra, percebo quantas pessoas prestam atenção na minha história,  por trás de nós. O silêncio de quando me calo é inquestionável. 

Diante o interesse que demonstram, eu prossigo:

— O proprietário do castelo, um homem simpático e bem apessoado, tentou acalmar os nossos ânimos. Fizemos questionamentos e acusações com os nossos forcados mirados em sua direção. Ele parecia muito calmo e nos disse que todo o barulho que fazíamos com os nossos gritos iria acordar a sua filha recém-nascida e sua esposa.

‘Foi quando pensei em acabar com tudo aquilo de uma só vez. Quis ser um herói. Quis reconhecimento. Se eu quem matasse aquelas criaturas horríveis, todos iriam me adorar. Então, deixei de lado a multidão e invadi a mansão pela lateral. Eu tive de escalar metros de pedras, usando as depressões das paredes do castelo para me apoiar e não cair.’

‘A janela que alcancei estava aberta. Meus dedos estavam tão gelados pela adrenalina que eu não mais estava conseguindo raciocinar direito. Encontrei uma mulher — não, encontrei uma vampira — deitada em seu leito com uma menininha recém-nascida. Senti o meu coração vacilar por um segundo. A minha mão segurando a lasca de um forcado que carreguei na roupa durante a escalada ficou pairando no ar.’

‘Me senti um louco. Um assassino. Estava prestes a cometer uma atrocidade porque bêbados e velhos acreditavam em lendas e mitos antigos e que, por um momento, também me fizeram acreditar. Planejei retroceder e fugir, mas a mulher que estava deitada de costas para mim começou a virar o corpo na minha direção.’

— Meu Deus — exclama o balconista, e constato como estão horrorizadas as faces de quem presta atenção no meu relato.

‘Foi uma reação imediata que eu tive, uma simples tentativa de me defender através de um movimento rápido. O forcado fincou bem fundo no peito da mulher, que não teve tempo para reagir ao meu ataque. Seus olhos saltaram com horror das órbitas, o seu último suspiro deixou meus músculos paralisados. A boca aberta antes que perdesse a vida pronunciou em um sussurro alarmado o nome de alguém depois de gritar.’

Mavis. Eu posso ter continuado respirando depois de matá-la, mas em meu peito, o coração estava estraçalhado, chorando sangue. A menininha começou a chorar, logo começou a gritar, tomando em mãos os cabelos negros e longos da mãe, puxando com tanta força para si como se tentasse reanimá-la.'

Todos ficam em silêncio absoluto.

Nem mesmo o vento se atreve a sussurrar.

Os olhos da mulher que me acompanha estão marejados. O homem mais velho do bar esconde o rosto ao virá-lo para assoar o nariz com maior discrição.

— Acabei fugindo — continuo —, não conseguia mais ver a menininha me mostrar que, independentemente de quem eles fossem, o único monstro ali era eu. Enquanto os meus dedos no parapeito da janela me mantinham pendurado do lado de fora, o marido da mulher assassinada pelas minhas mãos, em um piscar de olhos, levitou com a menininha nos braços pela mesma janela, rápido.

‘Posso jurar que enquanto ele tomava distância, seus olhos me encontraram. Sinto que ele poupou a minha vida. Não entendi por que ele deixaria vivo o assassino de sua esposa, o homem que roubou parte dele para sempre.’

‘A multidão incendiou o castelo cômodo por cômodo. E eu, não suportando ver a cena grotesca de pessoas comemorando aos risos a destruição de uma família, voltei para a ruela onde estava o morto, onde tudo havia começado. Era inegável que o Conde Drácula era um vampiro, mas alguma coisa dentro de mim não se aquietava de jeito nenhum.'

‘Foi então que, com uma olhada angustiada ao meu redor, vi um objeto cintilar. As nuvens tinham se dispersado, deixando a lua finalmente iluminar a noite. Foi graças a ela que encontrei esse objeto — uma faca ensanguentada com as iniciais de um nome gravadas no cabo.’

— A faca do... — começa a dizer a mulher, tapando a própria boca quando as lágrimas começam a escorrer.

— A faca do homem que nos alertou no início. Descobri tarde demais que ele tinha uma rixa com o homem que ele assassinou, quando pesquisei mais a fundo para saber quem ele era. Os dois tinham algum problema relacionado ao empréstimo de dinheiro que fizeram um para o outro dias antes. Eu tinha, então, matado uma mulher inocente, e o Drácula me deixou vivo para que eu convivesse com a culpa.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado.



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