I'm Your Girl escrita por Brigadeiro


Capítulo 1
You know I got it


Notas iniciais do capítulo

To L,

Wish you the happiest birthday ever,

Your girl



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Ato 1

Every time you miss the beat and life pulls you under

 

Estava trovejando.

Embora não chovesse, os sons altos e assustadores rugiam no céu e Mal sabia que aquilo significava que Malévola estava furiosa com ela. Claro que não era a própria fada má quem provocava o distúrbio no tempo, afinal estavam presas dentro de uma Ilha sem magia, com seus formidáveis poderes inibidos. Mas, de alguma forma, parecia que o clima da Ilha estava ligado às emoções de sua estável mãe.

Coincidência ou não, aquilo só fez Mal correr ainda mais rápido, ignorando a dor em seus pulmões somada à de suas pernas. Precisava encontrar um esconderijo. Precisava ficar o mais longe possível de sua mãe. Precisava se salvar.

Aquela necessidade a moveu para o mais longe do Castelo da Barganha que o físico de uma criança de cinco anos poderia chegar. Desceu a ladeira como um pequeno raio roxo, com medo de olhar para trás e ver Malévola a seguindo, por mais irracional que aquele pensamento fosse. Os portões de um enorme castelo ruído se materializou diante dela, fazendo a criança parar subitamente. Ela correu os olhos em volta, nervosa, vendo que o portão estava fechado, mas que havia uma pequena porta acoplada junto às paredes de pedra do lado externo que estava parcialmente aberta.

Sem pensar muito, correu para lá, batendo a porta com força logo em seguida. Os trovões foram abafados e então tudo o que ela podia ouvir era sua própria respiração, pesada, descompassada, feroz. Ela tateou pela parede fria e úmida, ainda olhando fixamente para a porta, como se esperasse que a figura alta e esguia arrombasse o local a qualquer segundo. Não seria a primeira vez. Quando ficou claro que nada aconteceria, ela se sentou lentamente no chão, abraçando os próprios joelhos, e os soluços angustiados que vinha reprimindo irromperam de sua garganta sem dó.

Mal abraçou as próprias pernas e tentou abafar seu choro ao pressionar a cabeça entre os joelhos. Com toda a certeza alguém morava naquele castelo mau cuidado e a última coisa que ela desejava naquele momento era trair atenção com o barulho. O que ela não tinha percebido, na verdade, era que já havia alguém ali.

Do outro lado do cômodo escuro, agarrada com toda força a um livro grosso e tão encolhida quanto à recém-chegada, uma jovem princesinha observava a estranha que tinha invadido seu esconderijo e a assustado como nunca.

Quando o choro da invasora diminuiu por alguns segundos, ela decidiu que poderia ser mais seguro anunciar a sua presença.

— Oi.

Mal levantou a cabeça de supetão, no susto. O coração metralhando contra o peito. Havia alguém ali com ela? Alguém tinha presenciado aquele rompante vergonhoso?

Ela se levantou, secando rapidamente as lágrimas e fechando a cara como se nunca tivesse sentido dor na vida, se colocou em posição de ataque contra a inimiga.

— Quem é você? — Mal questionou em tom de comando, tal como sua mãe lhe havia ensinado.

— Oh, desculpe. Eu não queria te assustar — a voz fina que a respondeu deixou claro que era outra criança, e uma garota.

Mal relaxou um pouco a tensão nos músculos, mas não saiu de sua posição.

— Vá embora — ela exigiu.

— Eu moro aqui — a outra respondeu, argumentando. — Quer dizer, não aqui. Moro no castelo. Estou me escondendo da minha mãe.

Aquilo despertou a curiosidade de Mal, e ela abriu novamente uma fresta da porta, deixando um pouco de claridade entrar para que ela pudesse ver com quem estava lidando.

Diante dela estava outra garota pequena, quase do mesmo tamanho da própria Mal, mas cujos cabelos brilhavam em longos cachos azuis, ornamentados por uma mini coroa precária em sua cabeça. Estava abraçada a um livro como se sua vida dependesse daquilo.

Mal relaxou de vez, voltando a se sentar no chão com um suspiro. Não havia risco.

— Eu também.

Mal achou que ela a deixaria em paz. A porta estava aberta agora, e a filha da Malévola não mais estava em posição de ataque contra a princesa. A decisão mais lógica seria correr e deixar a mini fada sozinha, mas não foi isso que Evie fez.

Surpreendentemente, ela se sentou do lado de Mal.

— Eu sou a Evie.

Mal olhou para a princesinha com os olhos cerrados, tentando entender o que raios ela estava fazendo.

— Eu sou Mal.

— Eu sei — Evie assentiu. Quem é que não conhecia a filha da Malévola naquela Ilha? Ela reinava entre os piores. E todas as crianças eram avisadas para ficar longe de Mal e de sua mãe. Evie ficou tentada a fazer isso, mas a garota estava simplesmente chorando escondida no seu castelo, ela não podia deixa-la sozinha. — Esse é um bom lugar pra fugir.

Mal continuou encarando-a, sem entender. Evie pareceu estar esperando uma resposta, então ela apenas concordou com a cabeça enquanto tentava avaliar que tipo de contato a princesa estava tentando fazer ali.

— Mamãe estava tentando me ensinar a usar perfume hoje. Só que espirrou no meu olho. Ardeu — Evie contou, tímida, e Mal notou que os olhos da menina estavam mesmo bem avermelhados e inchados. — Então eu vim pra cá.

— O que é isso? — Mal tomou coragem para perguntar, apontando para o livro de capa verde ao qual Evie estava agarrada.

— Ah, é o meu livro! — empolgada com a pergunta, Evie se aproximou mais da invasora, ombro a ombro, enquanto abria as paginas para mostrar tudo que pudesse. — São histórias sobre a cultura oriental, conhece?

Mal negou com a cabeça. Evie murchou um pouquinho.

— Eu o achei no lixo faz algum tempo. Já li três vezes. É legal.

— Alguém morre? — Mal questionou, permitindo-se encostar levemente os dedos finos nas páginas desgastadas e sujas.

— Hum... Não.

— Eles matam alguém?

— Também não.

— Então o vilão mata todo mundo?

— Não.

— Por que você está lendo essas histórias horríveis, então? — Mal parecia horrorizada com o final feliz para os mocinhos.

Evie riu. Era um som engraçado, ao qual Mal não estava acostumada. Pareciam sininhos chacoalhando contra o vento.

— Não é pior do que os livros de beleza da minha mãe.

Mal assentiu. Entendia sobre aquilo. Estava começando a aprender a ler agora, sob a tutela de sua mãe, porque a vilã fazia questão que ela aprendesse todos os feitiços de seus livros malignos que eram mortalmente entediantes quando você tinha que estudá-los em um lugar onde magia não funciona.

— Você quer ler? — Evie ofereceu, estendendo o livro em direção à inusitada companhia. Ela estava empolgada, nunca antes tinha tido a oportunidade de fazer amizades com outra criança, sua mãe estava sempre mantendo-a por perto para garantir que Evie não estava se sujando. — Eu te empresto.

Mal fez uma careta, não muito comovida com a felicidade da outra em pensar que poderia compartilhar a história que gostava com outra pessoa. Só o verbo ‘compartilhar’ em si já dava calafrios em Mal. Aquilo não estava certo.

— Você devia jogar fora.

Evie pareceu horrorizada com a sugestão, e puxou o livro de volta para abraça-lo.

— Por que eu faria isso?!

— É um livro de Auradon — Mal respondeu, revirando os olhos. Não era obvio? Quem era aquela garota estranha que não sabia que tudo o que vinha de Auradon deveria ser odiado? — Você não odeia Auradon?!

Evie deu de ombros, corando levemente. Ela deveria odiar Auradon, ela sabia. Mas como odiar o único lugar que podia tornar seus sonhos realidade?

— Lá tem príncipes — foi a resposta dela.

Mal a olhou como se um dragão tivesse se materializado no lugar da cabeça de Evie.

— E daí? — sua voz saiu até mais fina, devido ao choque. Que tipo de vilã se preocupava com príncipes? — Você quer matá-los?

— O quê?! Não!

— Cegar? Enfeitiçar? Amaldiçoar…?

— Mal, não! — Evie riu, e lá estava de novo o som engraçado que parecia amenizar toda tensão e estranhamento do ambiente. Mal até relaxou. — Um dia, eu vou encontrar um príncipe bem lindo e casar com ele. E ser muito rica e feliz. Nada de maldições.

— Na Ilha? — Mal ergueu uma sobrancelha, incrédula. Tinha encontrado uma criança pirada, essa era a única explicação. Talvez tinha sido por isso que ela não tinha corrido de Mal imediatamente, afinal, e ao invés disso estavam as duas ali, tendo a conversa mais estranha da vida. Pobre Evie, tão jovem e já maluca.

— Mamãe diz que eu vou sair da Ilha, um dia — Evie se empertigou toda, levantando o queixo, parecia quase saber o que Mal estava pensando dela ali. Sabia que era quase impossível, mas se sua mãe tinha dito, então era verdade. Ela agarrou uma das mãos de Mal, surpreendendo a mini vilã. — Se eu vou, você pode ir também. Podemos ir juntas.

Mal desfez rapidamente o contato, incomodada.

Só não se levantou e foi embora porque, primeiro, ainda não queria voltar pro Castelo da Barganha onde sua mãe certamente a esperava com um castigo. E, segundo, que ela era Mal. Eram as outras pessoas quem tinham que fugir quando ela chegava, e não o contrário. Mas aparentemente Evie não funcionava como as outras pessoas. Ela ficou.

Aquilo tudo estava sendo curiosamente animador, por mais maluca que fosse a princesinha.

— Não quero um príncipe — foi a resposta de Mal, lutando para se manter emburrada.

— Não? E o que você quer?

Mal pensou por um segundo.

— O reino — confessou. — Minha mãe disse que tudo vai ficar bem quando amaldiçoarmos o reino e nos vingarmos do Rei Fera.

Ele nem sabia o porquê estava contando aquilo tudo à estranha princesinha vilã, mas era bom conversar com Evie, mesmo que agora fosse a vez da princesa de olhá-la como se olha a um maluco.

— Então tá — disse Evie, cautelosamente, e deu de ombros de novo. — Você é estranha.

A boca de Mal se abriu, levemente surpresa.

— Olha quem fala! — respondeu, tentada a bater na garota.

A porta do esconderijo das meninas se escancarou subitamente, fazendo um barulho alto que assustou as duas e elas se abraçaram por extinto, olhando para a porta com medo e cautela. Podiam imaginar a Rainha Má ou a Malévola passando pela abertura a qualquer segundo, ou pior, as duas mães-vilãs encontrando-as de uma vez, e aquilo seria pior do que a morte. Passou-se mais de dois minutos de pura agonia enquanto, grudadas uma na outra, não tiraram os olhos do chão esperando uma imponente sombra surgindo para matá-las; até que se deram conta de tinha sido apenas o vento invadindo a saleta.

Mal se desvencilhou do abraço primeiro, mortalmente constrangida, e Evie se levantou para fechar a porta, deixando novamente apenas uma fresta para entrada de luz. Quando voltou, Mal estava novamente na mesma posição a qual a tinha encontrado, agachada e agarrada às próprias pernas, se esforçando para parar de tremer.

Ela se aproximou e se agachou novamente perto da nova amiga, mas não a tocou. Percebeu que Mal não gostava de toques.

— Você está bem? — foi o que perguntou, incerta do que fazer.

Mal levantou a cabeça, e olhou para Evie. Nunca tinha ouvido aquela pergunta antes. Ninguém nunca tinha se importado com como ela estava.

Evie era completamente inusitada e ela gostou daquilo.

— Pensei que fosse a minha mãe.

— Eu também pensei que fosse a minha. Deu medo, não é? — ela voltou a tagarelar, e Mal concordou com a frase. — Se fosse ela eu teria que voltar para os perfumes e meu olho ainda tá ardendo. A sua mãe também fez seu olho arder?

Ela foi pega de surpresa pela pergunta, porque de certa forma a resposta era afirmativa. Imagens do que tinha acontecido a pouco antes que ela começasse a correr para longe vieram para a superfície de sua mente e o grito de dor do animalzinho ferido preencheu seus ouvidos, fazendo-a se encolher novamente.

— Ei, o que houve? — Evie se preocupou.

Mal limpou a garganta, evitando deixar sentimentos à mostra, e um segundo se passou antes que ela tivesse coragem para responder.

— Minha mãe me mandou matar um pombinho.

Evie tentou assimilar a frase, tentando entender o que a filha da Malévola queria dizer com aquilo. Não foi muito difícil de entender, ela era uma criança esperta. A Rainha Má vivia lembrando a Evie que o treinamento que ela aplicava na menina não era nada, que ela imploraria para voltar para a mãe se soubesse como os outros vilões eram duros com seus filhos. Dizia sempre que a filha tinha que agradecer pela mãe que tinha, pela velha Rainha querer transformá-la em parte da realeza e não em um pilar de perversidade. E ela dava muitos exemplos de como se educava alguém para a maldade quando dizia aquilo.

Malévola forçou sua filha a matar um pássaro com as próprias mãos, Evie soube na hora. E ela tremeu, e lamentou por Mal ao saber daquilo. Devia ser simplesmente a coisa mais horrível.

— Pensei que os pombos fossem amigos — foi só o que ela conseguiu responder, aos sussurros, enquanto um calafrio preenchia seu corpo.

— Ninguém é amigo — Mal declarou, repetindo automaticamente palavras de sua mãe. Ela jamais admitira para Evie que não conseguiu matar o passarinho, e portanto Malévola o tinha feito em seu lugar e agora estava furiosa com a filha, e por isso ela estava ali. Ainda tinha uma reputação para manter, apesar dos pesares. — Só há inimigos.

Evie discordou imediatamente.

— Eu não sou inimiga.

— Não é? — Mal a olhou desconfiada.

— Não. Não quero ser. Você que eu seja?

Mal pensou por alguns segundos, e não soube como responder aquilo. Todo mundo na Ilha era inimigo, ou pelo menos assim Malévola tinha dito para a filha. Cada um ali lhe passaria a perna sem pensar duas vezes na primeira oportunidade. O que poderiam ser, se não inimigas? Mal poderia usar a princesinha como lacaia, talvez? Malévola vivia lhe dizendo que uma senhora das trevas precisava de servos. Ela precisaria pensar melhor no assunto.

— Talvez você possa ser a minha serva — foi seu veredito.

— O quê? Não! — Evie parecia absolutamente ultrajada. — Eu sou uma princesa, não posso ser serva de ninguém.

— Então eu não sei — Mal bufou. — Comparsa, talvez? Eu teria que checar com a minha mãe como funciona isso.

Evie assentiu, parecendo muito solene, como se aquilo fosse uma cerimônia de nomeação muito importante e decisiva.

— Me avise quando decidir.

— Combinado — um sorrisinho escapou da lateral dos lábios de Mal, o que não passou despercebido por Evie.

— Você não está mais chorando, que bom!

Aquilo constrangeu a pequena fadinha perversa. Qual era o problema daquela garota, afinal? Não era pra ninguém supostamente comentar seu choro vergonhoso. Ninguém nem devia ter visto aquilo, na verdade. Nunca tinha chorado na frente de ninguém. Não podia arriscar perder sua pose de durona. Ela negaria até a morte.

— Eu não estava chorando. Chorar é coisa de gente fraca. Eu não sou fraca.

Evie cruzou os braços, contrariada. Ela era quem tinha batalhado para afastar as lagrimas dos olhos da nova colega há apenas alguns minutos.

— Você estava, e não é coisa de gente fraca — ela respondeu, deixando Mal chocada com a ousadia da resposta, contrariando sua afirmação. Ela, entretanto, continuou. — Mas pode vir aqui sempre que quiser ser chorar. Eu não conto pra ninguém.

— Não vou voltar.

— Ah, volte sim! — Evie insistiu, chateada com a recusa. Tinha gostado da companhia inusitada. — Hey, a minha mãe está planejando uma festa para mim, eu vou fazer seis anos. Você deveria vir.

— Talvez — Mal respondeu, mas estava sorrindo.

Aquele dia estranho e pouco recordado tinha marcado o inicio de uma estranha amizade destinada a acontecer. Como se o destino ou seu dono soubesse que elas tinham que estar juntas para a vida.

E, apesar de terem se encontrado mais um par de vezes nos dias seguintes pela Ilha, infelizmente Mal nunca teve a oportunidade de voltar até ali para chorar. E nem Evie, ao comentar sobre a festa, sabia que a Rainha Má não tinha intenção alguma de chamar a herdeira da senhora das trevas para sua comemoração. Talvez por isso Mal tenha sido movida por tão grande ódio quando seu convite não chegou, sentindo-se traída pela princesinha que ela tinha ousado considerar algo mais do que uma serva.

 

{...}

Ato 2

When you need your rhythm back I'll be your drummer

No matter where you're comin' from I'll see your true colors

 

O primeiro, novo e único quartel dos VK’s estava finalmente pronto.

Tinha dado um trabalhão deixar aquele galpão velho e mofado minimamente habitável, mas agora que Mal finalmente tinha seu crew, que tinha amigos, precisavam de um local só deles. Após dias de buscas e trabalho duro, após Carlos ter encontrado o local, Jay ter conseguido roubar todos os móveis, e de Evie tê-los limpado e decorado melhor, Mal estava por fim dando cor às paredes ao marcar o rosto de cada membro da gangue recém-autodenominada como Cour Four com suas tintas.

Podiam finalmente se estabelecer e passar mais tempo juntos e fora de suas próprias casas, que é basicamente tudo o que eles poderiam querer.

Estava terminando o azul da barra da roupa de Evie na parede quando a mesma chegou, fazendo barulho ao subir as escadas de ferro enferrujadas.

— Sabia que estava aqui — ela se aproximou da amiga e parou ao olhar para o contorno de seu próprio rosto perfeitamente recriado na parede. — Uau, M, ficou perfeito!

Mal sorriu e se afastou para poder observar sua obra. Sua cabeça tombou um pouco de lado ao considerar todas as imperfeições que enxergava nos traços.

— Você acha?

— É como me olhar em um espelho! — Evie garantiu, e seu olhar estava mesmo repleto de admiração. Ninguém nunca a tinha desenhado antes. Era maravilhoso. — Trouxe café da manhã.

Ela estendeu um saco pardo para a filha da Malévola, que aceitou imediatamente. Dando uma pausa na pintura, ela se sentou no sofá, acompanhada por Evie, já no processo de morder e mastigar o pão murcho.

As últimas semanas vinham sendo bem surreais para Mal. Desde a aventura quase mortal atrás do cetro de sua mãe que tinha resultado na união do improvável grupo de jovens vilões, ela se via agora rodeada por três pessoas que se preocupavam com sua alimentação, a defendiam em brigas, a distraiam das maluquices de sua mãe, a faziam se sentir compreendida, e a faziam genuinamente rir. Antes deles, podia contar nos dedos quantas vezes tinha aberto um sorriso, e agora simplesmente já tinha perdido as contas.

O conceito de amizade começava lentamente a se tornar real para cada um deles, e Mal começava a perceber sobre quantas coisas sua mãe estava errada até então.

— O que é isso? — perguntou Mal, quando percebeu que Evie estava um pouco estranha.

A princesa estava inquieta, parecia nervosa, torcendo seus dedos e lançando olhares para a amiga que mastigava seu pão.

— Eu fiz... Algo.

Mal parou de comer.

A expressão de Evie estava estranha. A normalmente entusiasmada, saltitante e confiante filha da Rainha Má parecia agora ligeiramente envergonhada e insegura; embora seu queixo ainda estivesse levantado – Evie nunca abaixava a cabeça –, seus olhos iam na direção contrária, até suas mãos.

Mal se sentou mais ereta no sofá, subitamente atenta. Quando um filho de vilão te dizia que tinha feito algo, você sempre deveria se preocupar. E como Evie parecia estar com medo dela, muito provavelmente o algo a envolvia.

— E vai me contar o que é? — ela tentou manter a voz neutra, embora seu olhar já demonstrasse desconfiança involuntária.

— Vou, antes que eu perca a coragem — suspirando, ela tirou um papel grosso do bolso das vestes azuis.

Mal nem mesmo sabia como Evie conseguia guardar tantas coisas em suas próprias roupas quando as peças pareciam ser apenas um conjunto de saia e jaqueta lisos, mas ela conseguia. Vivia puxando espelhos, moedas e acessórios das costas ou cintura, isso quando não estava distribuindo doces de sua manga.

A filha da Malévola encarou a folhinha, e depois sua própria amiga. O que de ruim poderia conter em um pedaço de papel?

— Devo me preocupar? — ela questionou, preocupada. — Evie, o que foi?

Evie se levantou do sofá, a folha ainda em mãos, sendo torcida pelas unhas recém feitas da princesa de cabelos azuis. Ela estava se movimentando para tomar coragem e fôlego, porque só de pensar em mostrar a Mal o que ela tinha andado fazendo nas últimas noites, seu estômago se revirava.

E se ela encarasse como uma ofensa…? Ou achasse simplesmente horrível? Evie considerava a opinião de Mal muito importante, muito mais até do que a de sua mãe. Se ela achasse a ideia de Evie péssima, a garota sabia que jamais voltaria a planejar nada.

— Esqueça, não é nada importante — ela soltou o ar de seus pulmões, sorrindo cinicamente para uma Mal que agora a encarava com a sobrancelha erguida.

— Céus, o que você aprontou? — Mal soltou uma pequena risada, se aproximando da amiga.

— Eu não aprontei nada! Que absurdo, eu não apronto coisas — rebateu Evie, indignada com a escolha de palavra. Podia ter tido uma ideia ousada, que talvez ultrapassasse os limites da recém-reatada amizade que Evie já prezava mais do que tudo, mas ainda assim não era algo ruim... Ou pelo menos ela achava que não. Apenas provavelmente desnecessário e ofensivo. — Acho que estou fazendo parecer algo ruim, mas não é. Quer dizer, depende muito do ponto de vista, mas sério, é irrelevante. Não precisa achar que eu matei alguém ou algo do tipo.

— A ideia de você matando alguém ou algo do tipo nem foi a pior coisa na minha mente, na verdade. Seria até divertido, te ajudar a enterrar um corpo e coisa e tal.

Evie levou as mãos ao coração, um sorriso tocado em seu rosto.

— Você me ajudaria a enterrar um corpo? Awn.

— Mas é claro — Mal respondeu prontamente, o que surpreendeu até a ela mesma. — Mas não foge do assunto. Você fez alguma coisa e isso te deixou com vergonha. O que significa que você aprontou, sim. Desembucha, Evie!

Evie bufou.

— Não aprontei! Podemos parar de usar essa palavra?

Mal estreitou os olhos para ela, pensando em tudo que a garota poderia ter feito considerando o quanto já a conhecia.

— Envolve algum garoto?

— Não! — ela pareceu levemente ofendida. — Nada de garotos. Não dessa vez, pelo menos.

— Realmente, sobre os garotos você me conta, sempre. Deve ser algo relacionado a mim — Mal apoiou a mão no queixo, fingindo pensar enquanto encarava Evie e se divertia vendo a amiga ansiosa e com medo de suas conclusões. — Não sei o que raios você aprontou, mas qual é, Evie. Não confia em mim?

Foi o que bastou. Evie soltou um suspiro e voltou a se sentar ao lado da amiga, resmungando algo sobre Mal jogar muito sujo e ouvidos risadas em resposta. Ela apertou mais o papel em mãos.

— É só que... Eu não tenho certeza se está bom. Ou se você vai gostar — Evie tomou fôlego quando percebeu que Mal tinha parado de rir e começava a prestar atenção de verdade. —Certo, veja, é que eu apenas andei, há um tempinho, me aventurando a tentar desenhar alguma coisa neste mundo para que você pudesse se vestir decentemente. Não que você já não se vista bem... — Evie deu uma pausa para uma careta ao encarar os pedaços de couro sujos e sem cor que a amiga usava, e vendo que Mal também olhou um pouco confusa para suas próprias roupas. — Desculpe. Quer saber? Esquece. Eu não fiquei feliz com o resultado, mesmo. Eu só estou há anos demais costurando roupas só pra mim mesma, e pensei que seria divertido tentar outros estilos e tudo o mais, mas eu tentei e nada sai realmente como deveria, porque não é a mesma coisa. Você não vai gostar.

Mal piscou por alguns segundos, aturdida com tanta informação.

Já tinha se acostumado com o dom de Evie em falar sem parar, e até gostava daquilo. Fazia todo o ambiente onde ela estava parecer mais feliz, porque ela estava sempre irritantemente feliz. Então Mal tentou assimilar em poucos segundo o que Evie estava tentando dizer.

Ela tinha desenhado uma peça de roupa, para Mal. Porque odiava como Mal se vestia, e porque queria tentar novos estilos. E estava com medo de mostrar à amiga, e ela não gostar.

Ok, Mal podia lidar com aquilo.

— Você desenhou uma roupa mim e não quer me mostrar? — Mal soou o mais animada e indignada que conseguiu, fazendo Evie se surpreender com a reação. — Ah, não, agora eu quero ver!

— Você quer? — Evie parecia surpresa.

— Claro que quero.

— Não sabe o que esta dizendo.

— E., você não pode desenhar roupas para mim e não me deixar vê-las! Isso não é nada justo!

Evie escondeu a folha atrás das costas, com medo de Mal apenas arrancá-la de suas mãos. Seria a cara dela.

— É apenas um desenho. E você é a melhor desenhista dessa Ilha, eu não vou te mostrar absolutamente nada que não esteja, no mínimo perfeito. E não tá.

Mal cruzou os braços, começando a achar que aquilo tinha a ver com muito mais coisas do que apenas roupas.

— Não tem como você saber se está bom ou não até que outra pessoa veja. Eu me ofereço pra isso.

— Não sei...

— Então porque veio até aqui com ele em mãos? Você queria me mostrar.

— Eu ia, mas agora não quero mais. Simplesmente parece errado — a voz dela desceu um tom.

Mal estalou a língua, entendendo algumas coisas.

— Você não tem que ter medo da minha opinião, E — ela assegurou, fazendo Evie encará-la. — Eu não sou a sua mãe, somos amigas. Eu quero, de verdade, ver o desenho. Por favor?

Evie olhou pro chão, e então para Mal, e por fim tirou o desenho de suas costas, trazendo para seu colo novamente.

Mal não o puxou, queria que a própria amiga o entregasse.

— Certo, já que insiste — Evie suspirou. — É só um primeiro um rascunho de como imaginei que pudesse ser um novo guarda roupa de acordo com seu gosto pessoal, mas eu mal consegui passar do inicio. Eu estive obcecada demais com como tudo o que você veste parece rasgado ou ter sido feito pra outra pessoa, e eu queria de alguma forma juntar tudo o que já conheço sobre você em peças que não fossem completamente toscas.

— Eu duvido muito que esteja tão ruim quanto você está dizendo. Você é a pessoa mais bem vestida dessa Ilha.

— Eu tenho consciência de quando algo não está bom, obrigada. E modelar para mim mesma é uma coisa, para os outros é algo completamente diferente — Evie fez uma careta. — Então me elogie só porque somos amigas. Se não gostar, apenas diga.

Mal levantou as mãos em sinal de rendição.

— Eu posso ser imparcial — garantiu.

Ela entendia um pouco da ansiedade de Evie. Seus primeiros desenhos – fora das pichações que gostava de espalhar pelas ruas da Ilha – eram trancados a sete chaves, e requereu muita coragem sequer contar que desenhava a qualquer um. Agora já tinha se tornado algo natural, e ela até aceitava os elogios sem duvidar mais deles. Sabia que Evie chegaria lá também, só precisava não pressioná-la.

Lançando um último olhar vacilante, Evie lhe estendeu o papel, que Mal nem hesitou em pegar e abrir.

A primeira reação de Mal foi arregalar os olhos, o que fez Evie se retorcer no sofá de tanta ansiedade, porque não havia mesmo como saber se ela tinha achado muito bom ou muito ruim.

Mal, entretanto, estava muito surpresa.

Ela sabia que Evie tinha um ótimo dom com roupas, é claro. A garota protagonizava um desfile de moda por dia e fazia milagres com os pedaços de trapo indesejados que vinham de Auradon. Nunca pensou, porém, que a filha da Rainha Má pudesse captar toda a sua essência em apenas um conjunto de couro roxo. O tom da cor era absolutamente o mais lindo que Mal já tinha visto, e haviam manchas de verde, correntes e tachinhas distribuídos em lugares que tornavam aquela ainda-não-existente peça de roupa na primeira coisa que Mal realmente se via querendo usar.

Ela voltou a olhar para Evie com a boca aberta e apontou para o papel.

— Não sei se te abraço ou te bato! Com esse drama todo, pensei mesmo que tinha matado alguém, e então você me mostra essa obra prima! — ela exclamou, e estava sendo cem por cento sincera, o que fez Evie relaxar e exibir um sorriso radiante e animado. — Por que estava com vergonha? Você devia ter mostrado isso bem antes. E precisa costurá-las para mim!

Evie simplesmente deu pulinhos no sofá, o que fez Mal rir e se lembrar do porquê gostava tanto da princesa. Evie podia ser incrivelmente astuta, malandra e persuasivamente cruel quando queria, e isso era o que fazia dela uma peça valiosa do time quando os quatro saíam pelas ruas assustando as pessoas. Mas, ao mesmo tempo, quando você a conhecia melhor, poderia saber que ela era como uma criança doce e feliz que despertava um estranho instinto de proteção. O sorriso dela contagiava.

— Você fala sério?

— Mas é claro! O que é que você viu que não estava bom aqui? Você precisa atualizar esse seu conceito de bom. Ev, você conseguiu me traduzir através de uma peça de roupa. É incrível! — Mal tentou fazê-la entender. Aquilo era um baita de um dom que precisava ser incentivado. — Eu não vou descansar até estar vestido isso. Anda, podemos checar lá em casa o que tem de tecido e ver com os goblins a última entrega no cais.

— Meu Deus, M! — Evie riu, deliciada com a reação da amiga. Não estava esperando por aquilo, mas a empolgação sincera de Mal fez todos seus medos irem embora e sua confiança se renovar. — Nem sei o que dizer.

— Vamos deixar claro que, a partir de hoje, que qualquer coisa que envolver seus projetos de design deve ser mostrada. Você sabe que a gente precisa disso, E — ela apontou para as próprias roupas, e ambas riram.

— Tudo bem — com as mãos na cintura, de volta à Evie de sempre, enganchou seu braço ao de Mal para descerem atrás dos tecidos. — Me desculpe pelo drama. Faz parte da minha natureza.

— Sem problemas — Mal sorriu, e então pareceu se lembrar de algo. — Espera ai!

Ela correu até a gaveta de um dos novos móveis do quartel e então foi a vez dela de estender algumas folhas para Evie.

— Acha que consegue incorporar isso nas roupas? — Mal questionou.

— O que é...? — Evie parou de falar, começando a entender. Nas folhas, alguns desenhos com o mesmo estilo se repetiam, mas em formatos e cores diferentes. Um coração formado por fogo de dragão, uma serpente, dois ossos cruzados em preto e branco, e uma coroa lascada.

— Sabe, eu pensei, já que agora somos um time, que poderíamos ter nossas próprias marcas — Mal confessou, meio sem jeito. Tinha gostado da ideia assim que veio em mente, e estava planejando pichar a Ilha toda com aqueles símbolos para deixar claro aos moradores que havia um Cour Four no comando agora. Mas o quão mais legal seria tê-los incorporados em roupas?

— Essa coroa vai se destacar tão perfeitamente sob o azul — os olhos de Evie brilhavam, e então ela subitamente abraçou Mal, pegando a vilã de surpresa. — Obrigada, M! Eu amei. Você é a melhor amiga que alguém pode ter a sorte de ter!

Evie a soltou, ainda muito animada, mas Mal estava ligeiramente constrangida. Não pensou que o desenho de uma coroa fosse causar tanta comoção, e além do mais, era a primeira vez que Evie a chamava daquele jeito. Melhor amiga.

As circunstâncias tinham feito com que Mal, Evie, Jay e Carlos fossem obrigados a admitir que, mais do que parceiros de crime, tinham se tornado amigos, e aquela palavra era nova no vocabulário de Mal. Estava apenas começando a se acostumar. E agora Evie subia mais um degrau.

Apesar de saber que era a melhor em muita coisa, como em ser má, por exemplo, ninguém nunca tinha declarado aquilo para ela. Era bom de ouvir.

— Você é uma melhor amiga também, E. — ela sorriu sem jeito, querendo devolver o sentimento que Evie tinha estabelecido entre elas. E, por mais que a frase tenha soado estranha, Evie guardou-a no coração.

Tinha uma melhor amiga agora. Que a conhecia, que a entendia, alguém para buscar tecidos com ela, e que a trazia de volta ao seu eixo. Tinham uma à outra. Não havia lâmpadas ou estrelas cadente ali naquela tarde em meio ao quartel dos VK’s, mas Evie fez um pedido.

Enquanto desciam as escadas de braços dados em direção à busca por tecidos, Evie desejou que durasse pra sempre.

 

{...}

Ato 3

If you come undone

I'll be the one to make the beat go on

 

O coração de Mal batia forte no peito, a adrenalina fazendo-se valer em suas veias enquanto se esgueirava pela esquina daquele beco.

— Me dá — ela pediu, e Evie imediatamente passou a caixa que segurava com cautela para os braços da líder da missão.

Mal agarrou a caixa com as duas mãos como se sua vida dependesse daquilo. Ela parou, as costas no muro frio e os ombros lado a lado com os de Evie, ela esticou os pescoço para espiar se o caminho estava livre na rua seguinte.

— Onde raios eles se enfiaram? — ela sussurrou, os olhos de movendo rápido por cada canto por onde os garotos poderiam estar escondidos para uma emboscada.

— Mal, lá em cima! — gritou Evie, de repente, mas era tarde demais.

— Droga! — Mal xingou quando sentiu a caixa ser içada de suas mãos repentinamente.

Ela olhou pra cima, Jay e Carlos tinham subido e alcançado as garotas pelos telhados, e então Carlos tinha sido içado pelas pernas até alcançar as mãos de Mal, e rapidamente puxado para cima enquanto um sorriso de vitória ultrajante marcava seu rosto.

— Filhos da...

Jay ainda teve a audácia de acenar um tchauzinho enquanto desaparecia telhado afora com seus doces.

— Vamos alcançá-los pela Rua do Mercadão, anda — Evie puxou-a pela mão, apressada para recuperar a caixa de doces que tinham furtado das docas a pouco.

— Não sabemos pra onde eles estão indo! — Mal protestou.

— Para a Torre dos Trolls!

— Como você sabe?

— Sei como Jay pensa. Ele acha que vamos direto para o quartel, mas pelo chão chegaríamos mais rápido do que eles. O caminho pelos telhados até a torre é mais fácil a partir daqui, são apenas descidas.

Mal sorriu. Evie era esperta.

Com um aceno de cabeça, elas voltaram a correr juntas. Mal rapidamente ganhou alguns metros a mais graças à ânsia de alcançar Jay e Carlos o mais rápido possível. Ela sabia que mesmo que o acordo fosse ‘quem chegar ao quartel com a caixa primeiro, fica com os doces’, no final todos acabariam comendo juntos, mas ainda havia a competitividade da disputa em jogo e ela se recusava a passar os próximos meses tendo de ouvir Jay se gabar que tinha vencido ela em algo, de novo.

Por isso, correu o mais rápido que suas pernas curtas podiam alcançar, serpenteando pelas ruas e becos já conhecidos do caminho até a Torre e pouco prestando atenção nas coisas que derrubava e nas pessoas em quem esbarrava para tirar de seu caminho. Ela podia ouvir Evie rindo atrás dela, divertindo-se com a corrida e pelo estrago deixado para trás por Mal ao tentar abrir o caminho para as duas.

Evie vivia muito mais pela experiência do que pela vitória, mas Mal não. Ela precisava vencer.

E com isso em mente, ela saía desembestada atropelando o que quer que estivesse atrapalhando. Ela não era obrigada a desviar de nada, as pessoas que tinham que sair de seu caminho. Graças a essa pouco graciosa filosofia antagonística, ela não desviou da grande figura negra parada em frente a uma das barracas podres do mercado. Ele, tampouco, desviou também.

O resultado disso foi a filha da Malévola colidindo com tronco robusto e alto parado à sua frente, e caindo sentada no chão graças à força do impacto.

Ele a analisou disfarçadamente. Ela estava grande, não muito do que a última vez em que ele a tinha observado das sombras, mas grande ainda assim. Ela estava ofegando, é claro, e os cabelos roxos todo bagunçados e marcados de suor pela corrida, os olhos brilhando em verde fluorescente denunciavam suas emoções em ebulição. Tão parecida com sua mãe que chegava a ser decepcionante.

— Ora, olá.

Ela o encarou do chão, chocada demais ao vê-lo tão repentinamente para reagir. Se tinha uma coisa que não estava mesmo esperando, era encontrar com ele bem naquele dia.

— Hades.

O vilão acenou com a mão direita, um tanto quanto sarcasticamente, para a jovem no chão.

— Mal! — a voz de Evie puxou a atenção dos dois. Ela tinha alcançado Mal enfim, e chegara correndo tanto quanto a amiga corria segundos antes. Teve tempo, porém, de refrear seus passos ao assimilar a cena diante de si.

Hades observou como em um segundo a princesa estava atrás de sua filha, oferecendo a mão para ajudá-la a se levantar, e como curiosamente Mal aceitou a ajuda, colocando-se imediatamente de pé para enfrentar sua figura paterna.

Mal não o via faziam muitos anos. Entretanto, jamais deixaria de reconhecê-lo. Ela queria se manter indiferente. Queria mesmo, mas era quase impossível. Ela de esforçou, entretanto, mantendo os ombros eretos, a mandíbula tensionada e o queixo erguido ao olhar para ele.

— Pode sair da minha frente?— ela tomou coragem para dizer, entredentes, e ficou orgulhosa de como sua voz soou fria.

Hades pareceu nem ter ouvido, ignorando a frase áspera.

— Você pode arrumar uma boa encrenca chutando barracas e atropelando pessoas por aí — ele respondeu como quem fala sobre o clima, com os olhos sobre ela o tempo inteiro. — Vai saber quem você pode irritar.

— Como se você se importasse.

Hades pressionou os lábios, incomodado, e descruzou os braços.

— Tem razão. Não me importo — ele estalou a língua, exatamente como Mal costumava fazer sempre que estava insatisfeita. Ele apontou grosseiramente para o lado norte da Ilha. — Seus amigos passaram correndo por aqui, gritando algo sobre vocês saberem do caminho pela Torre.

A boca de Evie se abriu, surpresa. Então ela sabia como Jay pensava, mas Carlos sabia como ela pensava. Eles estavam indo para o quartel mesmo, afinal, enquanto ela e Mal estavam perdendo tempo até a Torre para uma interceptação que nunca aconteceria.

Mal, entretanto parecia extremamente irritada. Passou por sua mente perguntar como ele sabia quem eram seus amigos ou que eles estavam em uma competição, mas tinha medo da resposta.

— Por que está nos contando isso? — ela questionou, odiando que sua vitória tivesse sido entregue por Hades. Ela não queria nada vindo dele.

— Considere a vitória como um presente.

Mal parou de respirar, olhando para ele. Evie olhou para Mal, confusa. Por que Hades lhe daria qualquer presente que fosse? Essa palavra quase não era usada na Ilha.

Mal e Hades sustentaram o olhar um do outro por quase um minuto inteiro, quase como ela e sua mãe faziam com frequência. Hades, porém, foi quem desviou primeiro, deixando a menina vencer a disputa silenciosa.

Ele deu um passo a frente, e imediatamente Mal e Evie deram dois para trás.

— Atrás de mim, Evie — a filha da Malévola afastou a amiga com o braço, mas não se mexeu mais.

Hades reprimiu um sorriso traiçoeiro ou observar o instinto de proteção de sua filha para com os seus. Talvez ela não fosse tão parecida com Malévola assim, afinal.

Evie estava paralisada poucos centímetros atrás de Mal, querendo também puxar a melhor amiga para longe do perigo, mas gelada demais pra isso. Hades era quase uma lenda na Ilha dos Perdidos. Todos sabiam que ele existia, mas o vilão quase nunca era visto. Diziam que ele era sombrio demais para socializar com outros vilões.

Surpreendentemente, ele puxou uma das mechas roxas do cabelo de Mal e esfregou entre dos dedos. Uma expressão séria e indecifrável no rosto.

Mal só percebeu que segurava a respiração quando ele a soltou.

— Feliz aniversário, Mali.

Mal arfou.

Sua postura firme vacilou e seus pés deram um passo em falso para trás enquanto ela tentava conter o que parecia retorcer o seu estômago. Ele tinha decidido aparecer diante dela sem aviso, depois de anos, e bem naquele dia em que ela preferia tanto fingir que não existia, para lhe dizer aquilo?

Por quê?

Talvez ele quisesse desestabilizá-la mesmo. Talvez fosse divertido para ele vê-la assim. Ele era muito mais sádico do que Mal pensou que fosse.

A jovem vilã deu meia volta, sem nem mesmo tentar responder grosseiramente. Evie pensou que Mal voltaria imediatamente a correr em direção aonde Jay e Carlos estavam indo com a caixa, mas não. Ela correu na direção oposta, para o beco de onde tinham saído, tão rápido quanto seus pés poderiam levá-la.

Hades ficou parado, observando-a ir, pensando em como Mal nunca saberia que ele era quem tinha deixado a caixa de doces para ser roubada nas docas, de qualquer jeito.

Evie correu atrás de Mal. A garota tinha pegado uma boa dianteira e se escondido atrás da caçamba de lixo, mas o som a denunciou. Quando a encontrou, Mal estava agachada contra a parede, a cabeça entre os joelhos, abraçando as pernas. O choro irrompia na escuridão.

Evie se aproximou lentamente, um pouco incerta quanto ao que fazer, mas sabendo que tinha que fazer alguma coisa. Não fazia ideia do que tinha acabado de acontecer ali, e só tinha visto Mal chorar uma única vez, em uma lembrança pouco clara de quando ambas tinhas apenas cinco anos.

Como da primeira vez, ela foi para o lado da amiga e agachou-se junto a ela, deixando com que seu ombro encostasse no dela para que ela soubesse que não estava sozinha.

— Hum... Jay e Carlos estão fugindo com nossos doces — Evie arriscou dizer, tentando estimulá-la.

Mal não esboçou reação. Não queria mais ir atrás de Jay e Carlos. Não valia mais a pena, eles podiam ficar com a vitória. Ela não queria contar vantagem de nada que tivesse a ver com Hades. Não queria nada dele.

Se sentia patética, sem conseguir conter a droga das emoções que afloraram. Poderia ter lidado de com Hades em qualquer dia, qualquer mesmo, mas não naquele.

Precisava urgentemente parar de chorar.

Deixou com que os minutos corressem e tornassem o aperto em seu peito mais leve, até que sua respiração se normalizou.

— É realmente o seu aniversário? — Evie perguntou novamente após alguns minutos, quando percebeu que ela estava mais calma.

— Sim — a resposta saiu em um sussurro.

— Por quê não nos contou? — Evie não parecia chateada ou zangada, apenas curiosa e preocupada.

Mal suspirou.

— Você tentaria fazer uma festa.

— Eu tentaria, mesmo — Evie concordou. — Qual seria o problema nisso?

— Não é pra ser comemorado. Eu não comemoro, a minha mãe diz que é uma data tola que nos enfraquece, é só um dia qualquer.

— Não é só um dia qualquer — Evie começou a argumentar, mas não conseguiria discutir com Mal a importância de aniversário, quando ela mesma nunca mais tinha comemorado nenhum após seus seis anos. — E se até a sua mãe não comemora, como Hades sabe disso?

Mal levantou a cabeça, encontrando o olhar de Evie sobre si, e respirou fundo, pensando se devia contar ou não. Nunca quis que ninguém soubesse daquilo, porque nunca quis o seu nome associado ao dele.

Mas confiava em Evie. Já tinha confessado para a melhor amiga até sobre os sonhos irritantes que vinha tendo com um garoto de Auradon. E queria dividir aquele peso com mais alguém. Ela respirou fundo, decidindo-se.

— Porque ele é meu pai.

Evie piscou algumas vezes, aturdida.

— Ele é... O quê? — a boca de Evie se abriu enquanto tentava assimilar o fato. Sua melhor amiga era não apenas filha da senhora das trevas, mas também do rei do submundo?

— Ninguém sabe, Evie — Mal advertiu. — E ninguém pode saber. Nem os meninos. Por favor.

Evie concordou prontamente. Já eram amigas a tempo o bastante para que ela aprendesse a nem mais questionar os motivos de Mal para uma decisão.

— Por que está me contando?

— Porque eu confio em você.

Evie não pôde conter seu sorriso.

— Caramba, Malévola e Hades, quem diria. Isso faz de você, o quê? A herdeira absoluta de todo o mal? — Evie brincou.

— Segundo a minha mãe, sim — Mal fez uma careta.

— Legal.

— É.

— Acha que ele apareceu só porque é o seu aniversário?

Mal negou.

— Ele não se importa. Ele desapareceu quando eu era um bebê e nunca voltou, nunca foi me ver, todas as poucas vezes que o encontrei foram em momento aleatórios, na rua. Nunca em um aniversário. Ele deve é estar tramando alguma coisa.

— Ou só queria te ver. Ele é o seu pai, afinal — Evie deu de ombros.

— Ele é só um homem de quem eu tenho o sangue. Não é nada pra mim, não existe essa história de paternidade, não aqui. Vilões não tem família.

— Você tem uma família — Evie respondeu, e algo em sua voz tinha mudado, ganhado uma seriedade consistente. — Jay e Carlos são sua família, e eu sou sua família.

Mal a encarou, os lábios pressionados em uma linha fina, assimilando o peso da declaração.

— Evie...

— Nós nos importamos, e estamos aqui, e não pretendemos ir, nunca — ela se levantou, limpando a poeira da roupa, e ofereceu mais uma vez a mão para Mal, determinada a fazê-la voltar a si e ao ótimo dia que estavam tendo até Hades surgir e atrapalhar tudo. — Somos família.

Mal olhou para a mão de Evie, e aceitou-a novamente. Ela tinha razão, como sempre. Eles estavam ali, afinal, desde que tinham se unido naquela missão maluca, estavam todos os dias juntos tornando a vida um do outro infinitamente melhor.

E, embora nunca pudesse usar a palavras amigos ou irmãos perto de Malévola, era assim que os considerava.

— Somos família — Mal repetiu, já de pé, e Evie ficou satisfeita em ver que ela já sorria.

— Ótimo. Agora, se corrermos podemos chegar ao quartel antes de Carlos e Jay.

Mal olhou para cima, para os telhados de onde o caçula tinha tomado a caixa de suas mãos, e sorriu malignamente como só ela conseguia sorrir.

— Anda, vamos lá roubar de volta nossos doces.

 

{...}

Ato 4

I'll be your A to the Z

Even if trouble's coming

 

Doug nem viu o que o atingiu.

Em um segundo estava tranquilamente fechando seu armário para poder ir para a aula a qual já estava atrasado, e no instante seguinte estava prensado contra seu armário, com braço e o cotovelo da filha da Malévola pressionando a sua garganta e dois olhos verdes assustadoramente brilhantes lhe encarando muito próximos.

— M-Mal? — ele questionou, relutante. A pressão aplicada pelo braço dela era forte o bastante para doer, mas não para impedi-lo de falar.

Ele o encarou por mais alguns segundos, uma expressão que Doug classificou como ‘assassina’ no rosto.

— Eu não gosto de você — foi o que ela declarou.

Aquilo pegou Doug de surpresa. Ele estava sendo encurralado pela nova namorada ex-vilã do Rei simplesmente porque ela não gostava dele?

Ele ficou tentando a olhar para os lados a procura de ajuda, mas sabia que não havia mais ninguém no corredor uma vez que todos já tinham ido para suas salas, e também aquilo podia desagradar a filha da Malévola.

Ela não sabia o que fazer.

— Me desculpe? — foi o que ele conseguiu pronunciar, ainda muito confuso e amedrontado. O que ela poderia possivelmente querer dele abordando-o daquela maneira?

Mal estreitou os olhos e bufou, soltando-o. Ela aguardou com os braços cruzados e uma expressão de desprezo no rosto enquanto ele se recuperava do susto e arrumava os óculos de volta no rosto, pensando que o garoto nem conseguia manter-se composto diante de uma ameaça e aquilo era ridículo. Ou, talvez, ele só tivesse muito medo dela, especificamente. O pensamento agradou Mal.

— Eu não gosto de você — ela tornou a repetir, aproximando-se dele novamente agora que ele estava de pé. Doug deu um passo pra trás. — Mas a Evie gosta.

Doug parou de se afastar da ex-vilã, surpreso com a súbita mudança de tópico. Em um segundo ele estava tremendo de medo, mas bastou o som de um nome para que agora seu coração estivesse saltando no peito por motivos bem diferentes.

— A Evie gosta de mim? — ele perguntou, um sorriso ameaçando surgir no rosto.

Mal rolou os olhos, impaciente.

— Você é burro e cego ou só se faz?

Doug preferiu não responder. Não sabia se existia resposta certa para aquela pergunta. É claro que ele desconfiava de que os sentimentos de Evie correspondessem, ainda que um pouco, aos dele. Desde o baile de coroação, os dois passavam mais tempo juntos do que qualquer outra coisa e Evie parecia corresponder a tudo que ele tinha dito a ela até o momento. Mas desconfiar de algo e ouvir uma afirmação saindo da boca da melhor amiga dela, eram duas coisas completamente diferentes.

— Ela te disse isso? O que ela disse? O que ela sente? — ele perguntou ansioso.

— Eu não vim aqui trocar fofoca com você, garoto — Mal respondeu seca, pensando que aquilo era bem óbvio. — Não sou sua amiga.

— Certo — ele corrigiu sua postura imediatamente, arrependido de ter perdido a compostura, ainda que permanecesse muito, muito confuso.

— O lance é o seguinte — Mal deu mais um passo para perto dele, com os braços cruzados, parecendo ameaçadora, e começou a falar antes que ele tornasse a dizer alguma idiotice. — Evie é a minha irmã, e eu não gosto de vê-la triste. Acontece, anãozinho, que no momento você tem um potencial muito grande para fazê-la ficar triste, se fizer alguma idiotice.

Doug piscou algumas vezes, tentando entender o que a namorada de Ben estava dizendo.

— Veio me ameaçar para que eu não machuque a Evie? Você não precisa se preocupar com isso.

— Ah, não? — sua voz estava carregada de sarcasmo. — Você já fez isso uma vez. Preciso te lembrar do dia da família?

—Ah.

Doug nunca se perdoaria pela sequencia de acontecimentos que o levaram a virar as costas para Evie naquele dia fatídico, e a expressão no rosto dela ficaria marcada na lembrança dele para sempre. Ele nunca mais queria ver aquela expressão no rosto dela.

— Lembrou?

— Eu já me desculpei com a Evie por aquilo — ele se justificou. — E me desculpo com você agora, também. Nunca foi a minha intenção magoá-la e eu me culpo até hoje. Estou tentando compensá-la por aquilo todos os dias. Eu nunca faria a Evie triste de proposito, você precisa acreditar. Mal, eu gosto da Evie. Muito.

— Bom — Mal relaxou um segundo, surpresa com o discurso dele. Imaginou que ele fosse se justificar, e não que fosse lhe pedir desculpas também. Além disso, gostou do jeito como ele se impôs e levantou a cabeça ao falar de seus sentimentos pela irmã dela. Era real, ela podia ver. — Isso me polpa o trabalho de te ameaçar caso aconteça de novo.

— Você não precisava ter feito isso. O sorriso da Evie é a coisa mais importante do mundo pra mim, e é só isso o que você verá vindo dela a partir de agora, é uma promessa.

Mal conteve um sorriso de canto, muito satisfeita com as palavras. Tudo tinha sido muito mais fácil do que ela imaginou.

Desde o fatídico dia da família, no qual ela tinha sido forçada a ver sua irmã chorar sem poder fazer nada, tinha ficado com muita raiva de Doug e agora que Evie só andava grudada no rapaz, Mal teve medo de que acontecesse novamente. Mas não se ela pudesse evitar. Tinha isso até ali para deixa-lo assustado e com medo dela caso sequer pensasse em magoar Evie de qualquer maneira que fosse. E também para tentar averiguar se a intensidade do sentimento dele por ela era tão grande quanto o que ela vinha percebendo crescer em Evie. Não esperava que ele simplesmente fizesse suas declarações de amor saltar de maneira tão espontânea para ela, que tinha literalmente acabado de enforcá-lo.

Por que o pessoal de Auradon tinha que ser tão emocionado? Argh.

— É um bom começo. E então?

— E então o quê? — ele ficou confuso. O que mais ela queria?

— Vocês vão ficar nessa enrolação ou você vai virar gente e tomar uma atitude?

Doug corou. Mal usava palavras muito duras para dizer o que queria, e era aquilo que sempre o deixava receoso perto dela. Aquela estava sendo a conversa mais estranha de sua vida.

— O quê?

— Por todos os dragões — ela rolou os olhos. — Você não está me ajudando a gostar mais de você, Doug.

Aquela tinha sido a primeira vez que Mal o chamava pelo nome certo. Aquilo tinha que ser um bom sinal, o que o animou para responder melhor.

— Eu quero pedir ela em namoro. É isso o que quer saber? — ele trocou o peso da perna umas três vezes, ansioso, e olhou para os lados com medo de Evie aparecer e ouvir. — Acha que ela aceitaria?

Mal se segurou para não bater a mão na testa. Estava impaciente e queria terminar aquela conversa antes que alguém aparecesse no corredor.

— Para de fazer pergunta idiota. Quando e como? Você tem um plano, não é?

— Tenho — Doug sorriu, pensando no que tinha planejado.

— Me conte — exigiu.

— Eu vou chamá-la para um encontro, e vamos até um castelo que eu conheço, não muito longe, e eu vou enfeitar o lugar com espelhos para que ela os siga até a torre onde pretendo fazer o pedido. Eu só não sei quando ainda, Evie anda tão ocupada com o projeto do 4Hearts...

— E o que vocês vão passar o dia fazendo nesse castelo até chegar lá em cima?

— Eu escrevi alguns poemas — ele corou absurdamente ao confessar aquilo. — Pretendo deixá-la lê-los.

— Leve doces. Evie ama doces.

— Eu estava mesmo pensando nisso.

— Maçãs do amor — Mal ressaltou.

— Certo. Obrigado.

— Você já tem uma aliança? — ela continuou o interrogatório. Não que ela achava que fosse necessário, mas sabia que Evie adoraria receber uma, e desde que Benjamin tinha colocado seu anel no dedo dela, Mal tinha começado a entender bem mais o significado que aquele pequeno objeto tinha. Doug ficou olhando para ela, parecendo não querer responder àquilo, o que irritou a ex-vilã. — Tem ou não tem?!

— Eu mandei fazer uma. Em formato de coroa, com pedrinhas azuis — ele finalmente confessou, um tanto quanto chateado porque não queria que a surpresa fosse estragada por nada no mundo. — Não conte pra ela, por favor, Mal.

— Eu não vou — Mal garantiu, e ele acreditou nela. — Faça no sábado que vem. Vou dar um jeito para que ela esteja livre. Consegue organizar tudo até lá?

— Sim. Uau, Mal, obrigado — ele sorriu, empolgado por já ter a data agora, e encarou Mal com um pouco menos de medo. — Isso é algum tipo de benção para namorar a Evie ou estou entendendo errado?

Mal lhe deu um pequeno soco no ombro, não forte o bastante para doer, mas um aviso final em resposta à pergunta.

— É um acordo de trégua, não uma benção. Não sou sua fada madrinha. Não pisa na bola, e eu não chego mais perto da sua garganta. Combinados?

— Doug!

Os dois congelaram no lugar ao som da voz que o chamava, e Mal se afastou do garoto. Evie virou o corredor, chamando por ele mais uma vez, e parou diante dos dois com uma mão na cintura, passando os olhos de Doug para Mal com desconfiança.

— Oi, princesa — ele tentou responder com naturalidade, o que duvidava muito que estivesse dando certo.

— O que está fazendo aqui? Eu estava te esperando na aula de química — ela olhou para a amiga, confusa. — Você também não devia estar em aula? O que vocês estão aprontando?

— Nada — Doug respondeu rápido demais, e a vontade de mata-lo ressurgiu em Mal.

Evie percebeu que ele parecia preocupado e, por sua vez, foi ela quem quis matar sua melhor amiga.

— Mal, o que disse a ele?

— O quê? Não fiz nada! — ela se defendeu. — Eu só tenho aula de química no próximo horário e como ele estava no corredor eu aproveitei para pedir ajuda com um exercício.

— Não tem nenhum caderno na sua mão.

— Eu já guardei no armário.

— Por que não perguntou pra mim?

— Você já estava em aula e o Doug era quem estava fazendo cera no corredor.

Evie estreitou mais os olhos em direção à sua amiga. Não estava acreditando muito na história.

— Desde quando você o chama pelo nome?

— Ué, não é o que você vive me pedindo pra fazer? — Mal fingiu-se de indignada, tentando contornar a lógica de sua astuta amiga. — Dá próxima vez eu peço pra você, se isso te incomoda.

— Não! Não é isso — Evie tentou justificar, mas talvez Mal ficasse brava se ela lhe dissesse que tinha medo da filha da Malévola espantar o garoto de quem ela gostava. — Desculpe.

— Devíamos ir pra aula — Doug pontuou, querendo mais do que tudo encerrar aquele momento absolutamente confuso e constrangedor.

Mal apontou para ele.

— O filhote de anão tem razão.

Evie suspirou, cedendo. Nem se preocuparia em corrigi-la daquela vez, Doug não parecia se importar de qualquer forma. Ela enganchou seu braço ao dele e puxou-o em direção à sala, já falando sobre a matéria que o Mr. Deley tinha começado.

Antes de virar o corredor, Doug olhou para Mal mais uma vez. A maligna jovem levou seus dois dedos aos próprios olhos e então em direção a Doug, deixando-o saber que ela continuaria de olho. Ele assentiu, firme, como se dissesse “pode deixar”.

Ela sabia que ninguém nunca seria bom o suficiente para Evie, mas talvez, e apenas talvez, ela estivesse deixando sua irmã em mãos não tão ruins assim.

 

{...}

Ato 5

I'll be whatever you need

Call me and I'll come runnin'

 

— Agora eu só preciso achar aquele retorno — Ben murmurou consigo mesmo, olhando com atenção para a tela do celular grudada no painel do carro que indiciava o caminho. Ele olhou para o banco ao lado pelo canto do olho. — O cinto, Mal.

Mal revirou os olhos, mas puxou o cinto e o prendeu na fivela lateral. Ela batia os dedos no vidro da janela fechada, os dois pés puxados acima do banco, observando a visão gloriosa do fim de tarde de Auradon. Ben tinha ligado o ar condicionado do carro para ela. Ele não gostava do frio artificial, mas sabia que ela adorava a sensação, por isso sempre o ligava.

Ela esticou o dedo até alcançar o botão que ligava o rádio, deixando uma música qualquer preencher o ambiente.

— Vamos nos atrasar — Mal cantarolou no ritmo da música.

— E a culpa é de quem? — Ben ergueu uma sobrancelha, o olhar alternando entre Mal e o caminho completamente livre de trânsito à sua frente.

— Sua.

— Minha? Foi você quem errou a cor dos meus olhos e não quis admitir — ele acusou.

— Eu não errei coisíssima nenhuma, eu disse que são verdes — ela pontuou, o bico contrariado já novamente se formando em sua face.

Ben adorava aqueles biquinhos, eram fofos, talvez por isso a contrariava sempre que possível.

— Eles são caramelo-esverdeados, muito obrigado.

— Isso nem mesmo existe! — Mal lançou as mãos ao ar em incredulidade, não acreditando que estavam retomando a discussão que os fez se atrasarem em meia hora só porque queria provar seu ponto para Bela.

— Isso existe, e são meus olhos.

Ben foi tomado de surpresa quando, assim que o carro parou no sinal vermelho, Mal soltou-se do cinto e atacou o namorado. Subindo por cima dele, que não ofereceu nenhuma resistência, ela sacou seu celular e aproximou do olho dele, batendo uma foto bem de perto do globo ocular do rei.

— Ahá! — ela sorriu vitoriosa, ainda com as pernas em torno da cintura dele no banco do motorista, e esfregou o celular na cara de um Ben um tanto quanto desnorteado. — Aqui, vê? Verdes!

Ele não podia discordar. O sol estava refletindo na íris no momento em que a foto foi batida, ressaltando completamente o verde ali e causando o sorriso convencido que Mal oferecia para ele naquele instante.

Mas Ben não se importava de perder. Pelo contrario, amava cada discussão boba que sempre os levava para o mesmo final feliz quando ela vencia. Porque ela sempre vencia, e ele já tinha aprendido que nunca teria razão com Mal. Mas, de novo, ele não ligava.

Ele apenas riu, larga e frouxamente, e aproveitou a proximidade para puxar o queixo dela até alcançar sua boca.

— Você venceu — ele murmurou, ainda entre os lábios dela.

— O sinal, Ben — ela avisou, mas seus olhos ainda estavam fechados, e as mãos na nuca dele só o traziam para mais perto, contradizendo suas palavras.

Mas não foi a buzina de algum outro carro atrás dele que interrompeu o momento, mas sim o celular de Mal, vibrando no espaço entre os bancos, onde ela tinha deixado cair. Resmungando de descontentamento, ela se afastou de Ben para pegar o celular.

Curiosamente, era o rosto de Doug emoldurado na tela de chamada. Ela estranhou, já que era a primeira vez que Doug ligava pra ela, e colocou o celular no ouvido após atender.

— Estamos a caminho — ela disse, já antecipando a cobrança.

— Mal, eu preciso de ajuda — a voz de Doug soou pelo aparelho, deixando Mal atenta pela urgência em seu tom.

— O que aconteceu?

— Evie. Ela se trancou no camarim e não quer sair — Doug contou, e Mal sinalizou para Ben voltar a dirigir enquanto ela voltava para seu próprio banco. — A maior parte do público já está aqui e ela está me pedindo para cancelar o desfile!

— Cancelar o desfile? Não! Ela está tendo uma crise de ansiedade — Mal deduziu, e gesticulou afobada para que Ben acelerasse aquele carro. — Fale com ela, Doug. Ela vai te ouvir.

— Eu estou tentando, mas não está dando certo — Doug choramingou. — Não posso deixar ela cancelar assim. Ela trabalhou duro por meses para que realizar isso hoje. Vai se arrepender se desistir agora.

— Certeza que sim. Mas ela não vai, não vamos deixar. Espera um instante — Mal cobriu o bocal do telefone com as mãos. — Ignore todos os faróis vermelhos, precisamos chegar o mais rápido possível.

Ben desviou seu olhar da direção apenas para poder lançar a Mal uma expressão de quem dizia: “Você está ficando completamente louca?”.

— Eu não posso fazer isso!

— Não tem um único carro na rua, Benjamin!

— E se alguém tentar atravessar a rua e eu atropelar?

— Então apenas acelera o máximo que sua moral irritantemente perfeita te permitir! — ela bufou, e tornou ao telefone. — Doug, onde você está?

— Na antessala da passarela, vim checar os convidados.

— Como está tudo ai?

— Uma grande parte já chegou, incluindo as princesas que ela convidou. Vieram todos.

— Branca de Neve está ai? — Mal checou, tentando pensar no que poderia abalar a sempre tão confiante Evie.

— Sim, do lado da Cinderela.

— Droga — Mal xingou. Olha olhava ansiosa para as ruas que Ben cortava com pressa, e sabia que estavam quase lá. — Vai até a Evie. Tenta falar com ela de novo.

Doug obedeceu, desligando o celular, voltou para os bastidores até a porta fechada que escondida sua namorada em crise. Ele colocou a mão na porta, pronto a tentar novamente.

— Ev, sou eu de novo.

Ela não respondeu imediatamente, mas ele conseguiu ouvir a movimentação dela dentro do cômodo.

— Você dispensou os convidados? — a voz dela finalmente foi ouvida, abafada pela porta fechada.

Ele suspirou.

— Eu não vou fazer isso, Evie. Não vou deixar você desistir — ele fez sua voz soar o mais firme que conseguiu, ainda tocando a porta, só desejava mais do que tudo que ela abrisse e o deixasse entrar para poder abraçá-la. — Por favor, princesa, sai daí e vamos conversar. Deixa eu te ajudar.

Mais um movimento foi ouvido, e ele podia jurar que a maçaneta tinha se movido. Ele aguardou que a porta fosse aberta, mas não aconteceu.

— Eu não vou sair, Doug. Me desculpa — foi só o que ela respondeu.

Ele se aproximou da porta, prestes a dizer mais alguma coisa, mas então avistou uma mancha roxa em movimento que se aproximava com pressa. Era Mal, que tinha finalmente chegaod.

Ele foi até ela , e pela expressão nada animadora do filho do Dunga, a Lady da corte já sabia que o garoto não tinha tido sucesso contra a teimosia da filha da Rainha Má.

— Evie? — ela perguntou, só pra checar.

— Ainda lá dentro — ele suspirou, desanimado por sua falha.

— Deixa comigo. Só garanta que as modelos estejam prontas, ela vai estar lá em breve.

— Tem certeza? — ele não parecia acreditar muito naquilo.

— Ela vai estar lá — Mal garantiu, e empurrou ele para que fosse fazer o que ela tinha mandado. Tinha deixado Ben atrás do palco também, e ele ajudaria o amigo. Enquanto isso, Mal se aproximou da porta, batendo ali de modo bem pouco delicado. — Evie, abre essa porta.

— Não — foi a resposta que recebeu, e ela revirou os olhos. — Sabia que viria. Não vai me convencer, Mal.

— Não estou tentando te convencer de nada, só abre a porta.

— Se eu abrir, você vai me convencer. Então, não.

— Evie — ela alertou, em tom de repreensão.

— Eu saio quando todos tiverem ido embora.

— Evie, a porta! — Mal exigiu mais uma vez e, sem resposta, decidiu partir para o plano B. — Então, tá.

Sabia, pela altura da voz de Evie lá dentro, que ela não estava próxima da porta. Por isso, respirou fundo, reunindo força e determinação, e se jogou contra a porta de madeira fina, escancarando-a imediatamente.

Evie, que até então estava sentada na poltrona do cômodo encarando o chão, levantou-se de uma só vez pelo susto, olhando para a miga com as mãos no peito.

— Você é maluca! — ela exclamou.

Limpando as mãos satisfeita pelo feito, ela encarou sua melhor amiga com um olhar mortal.

— Não, você é maluca! O primeiro desfile da sua marca de roupas está prestes a começar e você está no camarim?!

Evie não respondeu. Ela voltou a se sentar, agora com os braços cruzados. Mal avaliou a situação. Evie já estava completamente pronto, trajada em um vestido muito elegante e com uma coroa enfeitando os cabelos azuis. Não parecia ter chorando, já que sua maquiagem estava intacta, mas sua expressão denunciava o nervosismo e ansiedade.

Mal se aproximou dela com cautela.

— O desfile não vai começar sem a estilista, você sabe.

Evie fez que não com a cabeça.

— O desfile não vai acontecer. Só saio daqui quando todos tiverem ido.

— Isso não vai acontecer — Mal disse, firme. — Você vai sair e vai viver o seu dia. Anda.

— Não.

Mal teve vontade de bater na melhor amiga por sua teimosia, mas em vez disso suspirou e se sentou ao lado dela.

— Pode pelo menos me contar o que está acontecendo? — Mal ergueu uma sobrancelha, demonstrando seu ceticismo sobre a birra da irmã.

Evie ficou mais alguns minutos em silêncio e Mal aguardou com paciência.

— Eles não estão bons o bastante — ela respondeu, sem encarar Mal. — Vou refazer tudo, do zero, e então marco outro desfile.

— Isso é loucura. Eu vi a maior parte dos modelos no ateliê, estão incríveis! Olha, eu sei que a Branca de Neve, a Cinderela e uma penca dessas princesas que você admira estão ai, mas...

— Elas não têm nada a ver com isso. Fui eu quem as convidei — Evie interrompeu a filha da Malévola, com uma careta no rosto. — E eu não admiro a Branca.

— Então o que aconteceu? — Mal questionou, ligeiramente confusa agora. Já tinha preparado todo um discurso motivador no caminho até ali. — Até ontem você estava super empolgada para isso.

— Eu chamei as princesas, mas não os repórteres — Evie sussurrou, finalmente preparada para revelar o que tinha disparado o pânico que a fez impulsivamente querer desistir de tudo. Mal entenderia de uma maneira que Doug jamais seria capaz, por mais que tentasse. E, também, preferia parece irracional do que fraca na frente dele, e com Mal não havia cerimonias, ela já conhecia todas as faces da melhor amiga. — Quando eu vi, eles estavam entrando e se posicionando com as câmeras. E me disseram que vai ser transmitido pelo Canal de Auradon a todo o território do Reino.

Mal sabia daquilo. Tinha, na verdade, um certo dedo do Ben naquilo. Ele tinha dito algo a Mal sobre como o trabalho de Evie era bom demais e deveria ser apreciado por todos. Ela concordava.

— Isso não bom? — Mal continuava confusa.

— A Ilha faz parte do território do reino.

— Ah — Mal finalmente entendeu.

O Canal de Auradon era um dos únicos que pegava na Ilha, e transmitia todo tipo de noticia e evento importante. A Rainha Má estaria assistindo.

Mal mordeu os lábios, pensando no que dizer. Ela entendia aquilo, e como entendia. Se sua mãe não fosse um lagarto agora, ela provavelmente teria tido seu próprio ataque de pânico antes do Cotilhão se soubesse que Malévola estaria assistindo tudo.

Mas também sabia que ela e seus amigos tinham passado por muita coisa para aprender a não viver com as expectativas dos próprios pais nas costas. Aquela era uma prisão já quebrada, e Mal sabia que Evie também sabia daquilo.

Por isso, aguardou que a confissão do motivo de tudo aquilo passasse do coração para a mente de Evie, e então ela seria razoável.

Após alguns segundos, pegou seu celular e acessou a página do canal ao vivo pela internet. A transmissão já tinha começado.

— Acho que ela já está vendo — ela mostrou o celular para Evie, que fez uma careta ao ver pela tela o salão cheio de pessoas e a passarela vazia enquanto esperavam. — E acho que está ansiosa esperando para checar o quanto a filha dela é incrível. Eu teria mais medo de que ela assista a uma desistência do que qualquer outra coisa, você não? — ela instigou, e Evie permaneceu calada, agora mexendo seus dedos com ansiedade, olhando para baixo. Mal continuou: — Ouça, você trabalhou duro demais por esse dia. Eu estava lá, vendo você sonhar por anos e para então tornar realidade tudo o que está bem aqui hoje, prestes a acontecer. Foi pra mim que você mostrou seu primeiro modelo feito para alguém que não você mesma. Você superou sua própria insegurança, a opinião alheia e tudo o que te dizia que você não conseguiria. Não vejo mesmo como a Rainha Má poderia não ficar orgulhosa assistindo a isso hoje. E, se ela ficar, então é ela quem está errada.

Evie levantou a cabeça, olhando para Mal com os olhos úmidos, deu tudo de si para que nenhuma lágrima caísse e borrasse sua maquiagem, ou então aí sim teriam uma crise monumental.

— Acho que está certa.

— Eu estou — Mal garantiu. — Obrigada por parar de ser irracional. Agora levanta daí e vamos lá abalar a moda de Auradon porque não é apenas sua mãe que estará te assistindo fazer isso. Sua família está ansiosa por isso, e centenas de outros VK’s na Ilha também.

Evie sorriu pela primeira vez desde que tinha avistado as câmeras, porque sabia que Mal não estava se referindo à Rainha Má ao dizer a palavra família. Ela se levantou, passando a mão por seu vestido para garantir que nada estava amassado ou fora do lugar.

— Como estou?

— Magnífica como a princesa que está prestes a mudar todo o conceito de estilo da realeza.

— Ótimo — ela assentiu, e então se jogou em cima de Mal, abraçando-a. — Obrigada.

— Sempre.

Ela saíram do camarim juntas, indo encontrar um Doug e um Ben atrapalhados sem saber em que ordem colocar as modelos.

— Crise evitada com sucesso — Mal anunciou, apontando para Evie.

Doug parou o que estava fazendo ao vê-las chegando, e soltou um longo suspiro aliviado.

— Graças aos céus.

Evie não se incomodou com a bagunça que estavam os bastidores naquele momento, foi direto até Doug e o pegou de surpresa com um beijo.

— Obrigada — ela sorriu para um desnorteado Doug, que mal teve tempo de assimilar a explosão de sentimento ali para retribuir como se deveria.

— Mas eu nem fiz nada — ele gaguejou, apertando de leve a cintura dela, onde suas mãos tinham ido parar. — Só estou feliz que esteja bem.

— Fez sim — ela garantiu, e deixou outro beijo nele antes de se desvencilhar e ir organizar as modelos.

Doug suspirou, feliz demais por vê-la de volta a correr entre as modelos, checando vestidos e penteados. Da mesma forma estavam Mal e Ben, satisfeitos, vendo-a se mover pelo ambiente já com uma nova fita métrica no pescoço e agulhas na mão.

— Você está com o vestido errado! — ela gritou para uma das modelos. — Onde está o de chiffon caramelo-esverdeado?

Mal piscou diante da fala de Evie, e sabia que o olhar de seu namorado estava queimando sobre ela agora. Ela franziu o cenho, mordendo os lábios.

— Essa cor não existe — alegou.

— Claro que existe — Evie respondeu enquanto corria com o vestido certo até a modelo. — É a cor dos olhos do Ben.

Ela podia sentir, como uma perfuradora incandescente, o olhar de Ben queimando sobre ela. Sabia exatamente qual era a expressão de ‘eu te disse’ que estava no rosto dele agora, por isso nem o olhou.

— Calado.

 

{...}

Ato 6

You know I got it

I’m your girl

 

O relógio marcou 03h30 a.m. quando Evie passou pelas portas do palácio real.

Estava com o celular em mãos e muita preocupação na mente. Tinha dirigido o mais rápido possível para lá assim que a mensagem de Mal tinha chegado, e por sorte as ruas estavam absolutamente vazias devido ao horário.

— Mal? — ela deixou sua voz percorrer o saguão enquanto adentrava em direção à sala de estar, procurando sua amiga.

O palácio estava tão vazio quanto as ruas de Auradon, com todos os seus moradores provavelmente adormecidos, como ela deveria estar naquele momento. Olhou em volta para os corredores e para a escada, perguntando-se onde Mal poderia estar.

— M?! — chamou novamente, um pouco mais alto, mas não o bastante para acordar quem estivesse dormindo, principalmente as crianças.

— Cozinha! — ela ouviu a voz de Mal respondendo distante.

Com rapidez correu para o cômodo certo, com um pouco de medo do que poderia encontrar pelo caminho. Entretanto, nada a preparou para a cena que encontrou ao chegar.

— Céus, o que houve aqui?! — ela tinha parado na porta, avaliando a situação com surpresa. A rainha de Auradon estava cercada por açúcar, em tigelas e mais tigelas à sua volta, nos fios cristalizados grudados ao seu cabelo e pelo pijama listrado que usava. Evie se aproximou, tentando evitar pisar no açúcar pelo chão, e chegou até ela. — Você atacou a cozinha ou a cozinha que te atacou?

— Hahá, muito engraçado — Mal zombou com ironia enquanto Evie puxava pedaços de doce do cabelo roxo. — O que está fazendo aqui?

Evie parou o que estava fazendo para encará-la com as mãos na cintura e uma sobrancelha arqueada.

— Você me chamou aqui!

— O quê? Não chamei não!

Ela levantou o celular que trouxera em mãos, mostrando à Mal a mensagem que a própria tinha enviado.

— “Não consigo fazer isso, E. Socorro” — Evie leu a mensagem tentando imitar a voz de Mal, o que soou mais engraçado do que pretendia.

— E a primeira coisa que fez foi correr para cá? — Mal perguntou, surpresa.

— As últimas vezes que eu recebi uma mensagem sua dizendo ‘eu não consigo fazer isso’ foi quando você quase fugiu na véspera do seu casamento e quando os gêmeos nasceram. O que queria que eu pensasse?

Mal riu, sabendo que sua amiga tinha razão. Não tinha pensado muito na hora de enviar a mensagem, seu cérebro já estava cobrando a falta de sono, e deveria ter previsto que sua escolha de palavras faria Evie correr para ajudá-la. Quando é que Evie não corria para ajuda-la, afinal?

Mas ela não deveria, daquela vez.

— Eu não estava esperando que viesse hoje. Você não deveria estar dormindo? — o tom de voz de Mal indicava repreensão.

— Eu poderia estar te fazendo a mesma pergunta — ela rebateu, e então sentou-se na banqueta próxima à ilha no centro da cozinha. — Mas eu já estava acordada e sem sono, então não se culpe por isso. Estava desenhando roupinhas.

— Mais? — Mal arregalou os olhos. — Só soubemos o sexo faz uma semana e, até onde eu sei, Elliot já tem roupas suficiente para abastecer uma cidade inteira de bebês até então.

— Ah, me deixe ser feliz. Eu vou doar todas as que ele não usar, de qualquer maneira, então nunca é um desperdício — a princesa deu de ombros. — O que você estava tentando fazer aqui afinal?

Mal soltou um muxoxo.

— Acordei e me arrependi de ter cancelado as maçãs do amor. Achei que era desnecessário e que já vai ter doce demais além do que bebês deveriam consumir em seu aniversário de um ano, mas então sonhei com aquele dia em que deixamos uma na mão da Hope e com como ela ficou fofa toda lambuzada de vermelho — Mal suspirou, e apontou para a caixa de maçãs que descansava no chão no canto da porta que dava para a dispensa. — Eu tinha que fazer. Mas claramente não está dando certo.

Evie ousou lançar uma olhadela sobre o caldeirão que jazia sobre a bancada, repleto de uma mistura já quase sólida, clara e cheia de bolhas avermelhadas.

— Mal, você mexeu o açúcar? — ela arriscou perguntar.

— Claro. Eu tinha que colocar o corante.

— O corante vai antes, M. No inicio, junto com o açúcar e a água. Vocês tem que colocar todos no fogo ao mesmo tempo e nunca mexer — como nunca conseguia dar instruções parada, Evie pôs-se a se mexer, já colocando a panela suja na outra pia e pegando uma nova para fazer o caramelo ela mesma.

— Se eu nunca mexer, ele vai queimar — Mal argumentou, seguindo a amiga e observando com atenção.

— Não se você desligar o fogo no ponto certo — Evie jogou com habilidade o açúcar, a água e a mistura dos corantes vermelho e azul para render uma maçã do amor roxa, como sabia que Mal iria querer. Logo, a mistura começou a borbulhar em um bonito tom púrpura. — Agora, esperamos.

Mal se sentou novamente, e Evie a acompanhou. A rainha começou a brincar com os grãos de açúcar caídos na bancada.

— Não acredito que te fiz sair de casa no meio da madrugada para cozinhar pra mim — Mal soltou um meio sorriso. — Doug nem tentou te impedir?

— Doug nem sequer acordou — Evie riu, e colocou um pouco de açúcar na boca. — Ele passou a última noite inteira acordado comigo, porque eu também não conseguia dormir, e não dormiu durante o dia também, então não conseguiu passar muito depois da meia noite hoje.

— Você não dormiu na noite anterior também? Evie!

— Eu estou ansiosa demais, não pode me culpar! — a filha da Rainha Má apontou o dedo açucarado para Mal. — E não é como se eu não estivesse acostumada a te socorrer em emergências culinárias. Me lembro daquela vez em que você me acordou pra saber o que tinha de errado nos brownies que você estava tentando fazer de madrugada porque estava com desejos.

Mal riu.

— Eu sou um desastre da culinária.

— Seus cookies são bons. Ben que o diga — Evie riu, e em seguida se levantou assim que ouviu o borbulhar do caramelo começando a se formar, e pegou as maçãs já posicionada nos palitos para começar a cobri-las. — Aqui, experimente.

Ela estendeu a primeira maçã do amor resfriada para Mal, que abocanhou o doce sem pensar duas vezes. Estava sem comer desde o jantar na noite anterior e seu estômago estava começando a roncar.

— Ugh!

— O quê? Ficou ruim?

Mal deixou a maçã do amor de lado, limpando a boca em seguida. Evie parou de produzir as maçãs, aguardando o veredito. O caramelo parecia perfeito pra ela.

— Não. A casquinha está maravilhosa, mas as maçãs estão murchas — ela fez outra careta, lançando um olhar assassino para a caixa de maçãs, como se elas fossem as culpadas. — Não se pode mais nem deixar uma caixa de maças sem refrigeração no chão de uma cozinha sem que elas murchem?

Evie riu.

— É como a natureza funciona. Acho que vai ter que sobreviver sem ver o rosto da Hope melado de maçã durante a festa amanhã, mas tenho certeza de que o Henry pode compensar isso com os brigadeiros.

A lembrança de como seu garotinho realmente sabia espatifar um chocolate fez Mal sorrir, mas ela ainda estava um pouco frustrada, de modo que lançou a maçã na pia sem dó. Em seguida, tirou as demais maçãs da bancada e jogou-as todas de volta na caixa, empurrando tudo com o pé de volta para a dispensa.

— Ótimo, agora só falta limpar todo o açúcar por toda a cozinha — ela resmungou, emburrada. Claro que havia uma equipe de empregados que poderia fazer aquilo por ela pela manhã, mas ela simplesmente não achava justo que qualquer outra pessoa tivesse que limpar uma bagunça daquelas logo cedo por conta de seu surto da madrugada.

Evie esperou que ela voltasse a se sentar e a ela estendeu algumas pedrinhas que tinha produzido.

— Aqui. Fiz balinhas com o que sobrou do caramelo.

Mal aceitou o doce, jogando-os na boca ao ver que até a própria Evie já mastigava algumas.

— Hmm — ela aprovou o sabor, sentindo o gosto do açúcar se espalhar por sua boca. — Ah, o que seria de mim sem você, Evie?

Agora com o fogo desligado, Evie despejou as balinhas em um recipiente e levou para perto da amiga, sentando-se no banco ao lado.

— Nada — ela respondeu, ao jogar mais duas balinhas na boca, ouvindo o ‘crack’ característico quando mastigou. — A mesma resposta vale para o inverso da pergunta.

Mal poderia até chamá-la de convencida, mas não podia discordar da afirmação. Lembrou-se de como sua vida tinha virado de ponta cabeça e então de ponta cabeça de novo para chegar até ali, e em como Evie estava no centro de todas as mudanças importantes. De todas as vezes que tinham lutado, apoiado e incentivado uma à outra, e se sentiu grata.

— Não sei como sobrevivemos por tanto tempo sozinha — disse Mal, quebrando o momento de reflexão pelo qual Evie também passava. — Lembra de quando nos conhecemos? Você tava agarrada naquele livro chinês como se ele valesse alguma coisa.

— Hey, respeite a cultura oriental ou eu te deduro pra Lonnie — Evie ameaçou, mostrando a língua para a melhor amiga, que riu. — E você? Estava chorando por quase ter matado um pombinho. E me chamou de serva!

Mal teve que gargalhar com aquilo. Tinha uma lembrança muito vaga de sua versão de cinco anos de idade dizendo a Evie que ela poderia ser sua serva na tentativa de estabelecer uma relação. Aquilo era o mais perto que Malévola a tinha ensinado de algo parecido com uma amizade. O que, na verdade, não chegava nem perto, ela sabia agora.

— Eu não tinha muita noção sobre o que era uma amizade antes de você chegar — Mal confessou. Evie concordou.

— Eu sei que não. E nem eu — Evie inclinou a cabeça, sorrindo pensativa ao olhar para sua irmã de cabelos roxos, pensando no quanto era grata pelo incidente de quase morte que as uniu. — Sempre precisamos uma da outra. O universo sabia desde sempre.

Havia sido uma longa jornada, de anos. Medo e choro, o calabouço do Castelo Negro, um convite não enviado e uma condenação, aventuras e a busca por um cetro, uma quase maldição do sono, risadas, roubos, pichações, votos de confiança, palavras de encorajamento, ameaças, grandes mudanças, grandes lutas, fugas e recomeços, amor incondicional e a crença uma na outra, e ainda assim tudo aquilo era pouco para explicar como tudo tinha acontecido.

Era confuso e esplêndido ao mesmo tempo.

— Se lembra de como costumávamos brincar sobre aquela lenda que tinha no livro, sobre almas gêmeas? — Mal subitamente se lembrou.

— Akai Ito — Evie sorriu, lembrando-se de como tinha enchido o saco de Mal sobre o conto ao longo dos anos, e como aquilo tinha se transformado em algo mais para as duas. Os meninos sentiram até inveja da história legal que elas tinham montado e fingido acreditar por muito tempo.

— Inventamos a nossa própria lenda — Mal se gabou. — Eu ainda lembro de tudo.

— Existe um outro destino na ponta do fio vermelho, um segundo fio, onde pessoas destinadas a ser amigas são conduzidas até que se encontrem — Evie recitou, com proeminência invejável, as palavras.

— Não importa o tempo que leve ou a distância que exista — Mal concluiu, lutando contra a boca repleta de caramelo roxo.

— A lenda do fio azul.

— Temos nossa própria lenda, somos demais.

Mal esticou a mão e ela bateram um high five, selando aquela noite como mais uma memória dentre tantas que faziam Mal e Evie serem... Simplesmente Mal e Evie.

— Você ainda acredita? — Evie checou.

— Eu ainda acredito.

A história podia ser confusa ou até quase inacreditável, a lenda podia ou não ser verídica, mas tanto Evie quanto Mal só sabiam de uma coisa: tinham recebido o melhor presente de suas vidas na noite em que se conheceram.

E, fosse Quem fosse que tivesse dado uma à outra, elas eram gratas.

 

Cause I'm your girl


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Notas finais do capítulo

História escrita como presente de aniversário especial para o destino na ponta do meu fio azul (que deveria ter sido postada ontem, mas meu celular não quis cooperar).

Você continua sendo o grande presente que Deus embrulhou a mão para me dar, L.

No ano passado te presenteei com Devie. Dessa vez, eu queria transmitir um pouco mais de nós através da amizade de Mal e Evie (com absolutos toques de Devie aqui e ali, claro).

Se prestar atenção, a conversa do Ato 2 foi absolutamente inspirada na conversa sobre que tivemos na primeira vez que mostrei algo que escrevi sobre Descendentes. Substitua "desenhos e roupas" por "escrita" e terá nossa conversa quase que na íntegra.
Muitas das frases ali você consegue encontrar nas nossas conversas se procurar, L.
E, como deve ter percebido, a parte sobre o fio azul no fim, também. Que, inclusive, está na caixinha u.u

Obrigada por existir.

Feliz aniversário



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