Deusa do caos escrita por carlotakuy


Capítulo 1
Oferta tentadora




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 Dentro do bar Chapéu de pirata, na esquina central da cidade dos Monopólios Dourados, o cheiro predominante era de tabaco. O aroma rodopiava alegremente entre seus clientes, incensando inconfundivelmente o lugar. Era sua marca registrada.

No espaço apertado entre as mesas garçonetes faziam incríveis acrobacias desviando de bêbados e mantendo canecas robustas de cerveja intactas. O som do piano ecoava estridente pelo vão, sendo sobreposto pelas risadas e conversas agitadas.

Era uma noite comum dentro do estabelecimento, na verdade a grande diferença entre aquela e as noites anteriores era somente uma: a chegada do trio de caçadores de recompensa mais conhecidos da cidade.

Além das vozes masculinas, em geral graves e rudes, uma mais melodiosa se sobrepôs, vinda da entrada do bar. Ao invés de serena e equilibrada a dona da voz estava aos gritos, berrando inconformada, sem conseguir soar o mínimo compreensível possível.

Alguns clientes se entreolharam sorrindo enquanto outros bateram suas canecas na expectativa da cena que viria a seguir. Outros prenderam a respiração, o homem parado no bar parou de lustrar mais um copo e a maioria da garçonetes riram entre si.

Todo o bar pairava em expectativa enquanto os gritos se aproximavam. Todos eles já sabiam o que vinha.

A porta do bar abriu num único movimento batendo com tudo contra a parede. Logo a frente uma silhueta feminina surgiu, guiando o grupo, ostentando raiva em seus olhos escuros. Os cabelos negros estavam presos no alto da sua cabeça, num rabo de cavalo apertado, enquanto a roupa de couro mostrava, em todos os seus rasgos, o perigo recém enfrentado.

Logo atrás vinha um garoto da mesma altura da jovem, que em contraste a expressão de exasperação da mesma se encontrava relaxado, ignorando com tranquilidade as reclamações da amiga. Ele tinha o corpo magro e esguio, com finas cicatrizes cobrindo um de seus braços e os cabelos castanhos agitados, caindo em cascatas por sobre suas orelhas.

O último a passar pela porta, se abaixando no processo, foi um homem alto e robusto. Seus músculos eram firmes e predominavam em todo seu físico, dos braços à batata de sua perna, que por sua vez carregava uma bandagem mal colocada estancando uma ferida recém adquirida.

Assovios irromperam no salão com a chegada do grupo, assim como aplausos e gritos de viva. A raiva da garota amenizou com a recepção, deixando apenas um olhar ríspido de aviso para a dupla que sorria, animada, para os colegas de bar.

— Bem vindos de volta – o dono do bar os saudou, saindo de trás do balcão – e intactos pelo que posso ver – acenou na direção de suas roupas.

Layla deu de ombros para seu conjunto de couro esfarrapado se aproximando a passos largos do senhor grisalho que os recebia. Ela o esquadrilhou rapidamente de cima a baixo e só constatou o óbvio: Hilon só ficava cada vez mais mais velho e gordo.

— Não graças a ele – apontou indiferente para Zain atrás de si, sentando em um dos bancos no balcão.

— Não ligue para ela – Zain deu um passo a frente – vamos tratar dos valores primeiro – um sorriso ganancioso surgiu em seu rosto.

A mão do terceiro membro, Erin, pousou no ombro do rapaz, fazendo-o olhá-lo automaticamente. Houve uma comunicação interna entre eles antes do grandão falar:

— Vamos com calma.

— É, com calma – repetiu o dono do bar – resolveremos esses detalhes mais tarde. Agora, por que não descansam?

Ele voltou-se para os outros clientes, que fingiram não estar prestar atenção exclusiva ao pequeno grupo de recém-chegados.

— Rodada de bebida de graça para todos pela volta dos nossos melhores caçadores!

Houve um uivo de animação e os homens se entreolharam, concordando que deixariam o assunto para mais tarde, enquanto Layla batia com a palma no balcão pedindo uma dose forte para ela.

— Novamente, bem vindos de volta – enfatizou o velho, sorrindo e seguindo para seu próprio escritório no andar superior.

Erin e Zain o observaram sumir e se aproximaram do balcão, onde

Layla desabafava com um dos funcionários, entornando em sequência uma dose a cada frase.

— Opa – Zain interceptou um dos copos, bebendo ele mesmo seu conteúdo – não vá tão rápido, não vai conseguir nos acompanhar o resto da noite.

Ela grunhiu e virou de costas para ele, batendo com seu cabelo no tórax do mesmo. Pegou o copo de volta e fez o garçom o encher.

— Não quero ver sua cara pelo resto da noite – resmungou, voltando-se em seguida para o homem atrás do balcão – acredita que ele ignorou todos os meus avisos? Ele se lançou em fogo cruzado sem qualquer consideração!

Zain riu, sabendo que era o tópico da raiva da amiga, enquanto Erin sentou no banco ao lado da dupla, observando-os enquanto pedia sua própria bebida ao funcionário.

— Qual é Lay, você sabe que eu tive que fazer aquilo. Ou eu corria atrás dele ou o cara ia fugir.

— Que fugisse! – ela rosnou virando-se de volta para o rapaz, ficando frente a frente – Nós o rastreariamos de novo, mas você não teria uma segunda chance se fosse atingido!

— Nós já discutimos sobre isso o caminho inteiro – ele segurou delicadamente um dos pulsos da amiga – eu me desculpo por ter agido daquele jeito, foi perigoso e irracional – pontuou pausadamente tentando driblar a irritação de Layla, como sabia que conseguia fazer – prometo nunca mais fazer algo assim de novo.

Ele endireitou a postura e colocou a mão sobre o peito, piscando para a amiga.

— Agora, por favor, não me olhe desse jeito. Sabe que me fere profundamente esse seu olhar de felino magoado.

Layla piscou os olhos duas vezes antes de entender as palavras do garoto.

— Eu não... eu não sou um felino magoado! – sibilou irritadiça, mas Zain riu.

— O que ele quer dizer – interveio Erin bebendo um grande gole de seu copo – é que se sente triste vendo você chateada.

Zain enrubesceu nitidamente e olhou acusador para o grandão, quase como se estivesse exposto um grande segredo seu. Vendo a reação do moreno um sorriso de canto levantou-se nos lábios de Layla, que girou o copo entre os dedos.

— Fica triste, é?

O alvo do seu sorriso a ignorou, pegando o copo que ela bebia de seus dedos e entornando o líquido. Assim que o queimor lhe desceu a garganta ele a olhou diretamente, ainda que com o semblante emburrado.

— Só quero dizer que a missão foi um sucesso e todos nós deveríamos comemorar essa noite – Zain fez uma breve pausa demorando mais do que gostaria dentro dos olhos negros da garota – juntos. Todos nós.

Layla olhou do amigo para o copo e em seguida voltou a girar o mesmo, agora vazio, em cima da superfície. Longos segundos se passaram com o silêncio preenchendo o trio e sendo complementado pelo zumbido do bar agitado a volta.

Zain se remexeu no banco de madeira, inquieto, enquanto Erin bebia lentamente de seu copo, agora novamente cheio, deixando os olhos espiarem Layla discretamente.

A jovem sopesou todos os acontecimentos e os sentimentos raivosos e revoltosos dentro de si. Sabia que não estava com raiva, aquela indignação era só um modo de extravasar a preocupação.

Ela se preocupava com ele. Eles eram um trio há mais tempo do que podia lembrar, como podia Zain jogar fora tudo isso por um simples condenado? E ainda havia ela naquela história.

Layla rosnou e voltou-se para o amigo, que a olhava com ares de nervosismo e expectativa. Ela instintivamente puxou-o pelo colarinho e, com o rosto a poucos centímetros do dele, ameaçou mordê-lo.

— É bom você prometer com muita convicção – grunhiu soltando-o.

— Eu prometo, prometo! – ele se estabilizou no assento – Só... vamos resolver isso. Sua versão raivosa me dá arrepios.

Layla tentou impedir, mas um sorriso abriu em seu rosto e no instante em que Zain o viu, soube que havia vencido. Ele riu e passou o braço ao redor da garota, que tentou rosnar novamente para ele manter distância, mas foi ignorada.

Animado Zain pediu vários tipos diferentes de bebida e o sorriso dele fez com que a mesma relaxasse. Erin pediu uma mesa e juntos eles se deleitaram nos assentos acolchoados, totalmente diferentes dos bancos duros do balcão.

Noite a dentro eles beberam e riram e comemoraram. Haviam pego um dos criminosos mais importantes e perigosos da cidade, assim como vinte capatazes que valeriam cada um pelo menos cinco por cento do valor original da captura do condenado.

Layla riu, bêbada o suficiente para deixar de lado sua máscara de frieza, e brindou com os amigos a grande bolada de dinheiro que receberiam. Erin finalmente conseguiria comprar a fazenda que tanto queria nos arredores da cidade e Zain poderia financiar com certa estabilidade os estudos de seus quatro irmãos.

Nada poderia estar melhor.

— E você, Lay? – Zain apoiou o copo vazio na mesa – O que vai fazer com o dinheiro?

A morena abriu um sorriso débil e encarou o líquido âmbar dentro do seu copo. A verdade é que além das suas necessidades básicas ela não tinha outra utilidade para o dinheiro. Não tinha família ou aspirações para uma fazenda. Na verdade, ela não tinha nada.

— Ainda não sei – admitiu com um suspiro – mas com certeza vai nos manter por algum tempo. Já pensaram na próxima proposta?

Erin se encostou no assento esticando os longos e musculosos braços por cima de sua cabeça. Os cabelos negros e rentes a cabeça afundaram em seus antebraços.

— Não. O quadro de trabalhos só tem peixe pequeno.

Zain bufou pedindo com um movimento da mão mais bebida a garçonete que passava.

— Às vezes parece que estamos fazendo nosso trabalho bem demais – desabafou deitando teatralmente na mesa – o que vamos fazer se os caras maus começarem a se esconder?

Layla cruzou os braços e respondeu rapidamente.

— Não vão. Os seres humanos são fracos e emotivos, quando tomados pela motivação certa sempre agem sem pensar. Os caras maus não vão deixar de existir. Até hoje, nunca deixaram.

Os dois homens, sentados a frente de Layla, a observaram calados e assentiram, concordando com a amiga. O silêncio foi dissipado pela chegada da garçonete animada, com três copos grandes de cerveja e outro com doses de cachaça.

Se entreolhando Layla e Zain abriram sorrisos animados, prontamente preparando as doses para si, e Erin sorriu pela animação da dupla. Era um momento de diversão e relaxamento familiar, onde riam, conversavam e bebiam, apostando tudo ali, sem pensar no amanhã.

E o amanhã, carregado de responsabilidades, era o fardo que eles carregavam consigo.

Numa contagem regressiva Layla e Zain entornaram a cachaça, que desceu rasgando suas gargantas e riram no final, limpando os pingos da aguardente que descia de seus queixos. Layla cantou vitória por ter terminado primeiro e Zain invalidou sua vitória.

Eles repetiram o processo, rindo ainda mais no final, quando o rapaz se engasgou. Enquanto Layla ajudava precariamente o amigo a se livrar do líquido que lhe pingava o queixo e os braços Erin fitou a janela vendo as luzes das casas ao longe se apagarem.

A noite estava começando e num pedido silencioso, olhando novamente para os amigos, ele pediu para que o amanhã demorasse um pouco mais para nascer.

•••

— Que dor de cabeça infernal – resmungou Layla sentando com tudo na poltrona estofada do escritório de Hilton.

Erin permaneceu calado ao lado da jovem, massageando as têmporas, enquanto Zain gemeu de dor enquanto fechava a porta pela qual passaram. O velho sentado do outro lado de uma escrivaninha robusta sorriu ao vê-los e acendeu discretamente um charuto.

— Vejo que a noite de ontem foi boa.

— Já o dia de hoje... – resmungou Zain caminhando até a poltrona ao lado da de Layla, sentando na mesma – o que você quer a essa hora da manhã?

Layla o encarou fazendo a mesma pergunta silenciosamente, com o latejar de sua cabeça tornando tudo mais doloroso. Erin suspirou se acomodando em outro assento do lugar, este mais próximo a escrivaninha.

— Me perdoem ter interrompido suas comemorações, mas recebi uma proposta há alguns dias – os olhos acinzentados do homem correram pelos três – e acredito que vocês sejam perfeitos para ela.

— Já? – Layla bufou pondo no mesmo instante a mão contra a cabeça pelo esforço – Nós mal voltamos de uma caçada, já tem outra?

— Desta vez, não é uma caçada.

Os olhos negros de Layla se estreitaram na direção do homem enquanto seus dois amigos olhavam atentos, na medida do possível, para a silhueta desgastada do velho.

— A proposta é sigilosa – alertou – e urgente. Eles requisitaram os melhores homens que possuo para fazer o trabalho.

— E não é uma caçada.

Hilon negou com a cabeça.

— Não, o pedido é que vocês levem uma garota até determinado lugar em segurança.

Ainda que Layla tenha se controlado a risada que escapou de seus lábios foi imediata e dolorosa, mas não surpreendeu o velho à escrivaninha.

— Você está pedindo para que escoltemos essa garota? – desta vez foi Zain que se manifestou, com o semblante confuso.

— Sim, é preciso que a protejam até a chegada no lugar.

— Nós somos caçadores— sibilou Layla levantando do assento num só movimento – não babás.

Erin olhou da amiga para o velho, mas o homem não pareceu se intimidar com a atitude da jovem, ainda que soubesse o quão perigosa ela era.

— Não estou pedindo para serem babás – retorquiu Hilon, com os olhos fundos aparentando o cansaço da idade – é necessário que sejam fortes e habilidosos pois há muita gente atrás da garota. É um trabalho de proteção, não de cuidar.

Erin se pôs de pé antes que Layla desse mais um passo, a interceptando. A troca de olhares entre eles aconteceu rapidamente, mas foi o suficiente para Layla recuar se jogando de novo na poltrona.

— Qual o valor?

A voz grave de Erin quebrou o breve silêncio e o velho sorriu, mostrando a falta de alguns dentes. Remexendo numa gaveta lateral ele puxou um papel e jogou-o sobre a mesa.

— Um total de 6 milhões de xiens.

Zain se engasgou ao ouvir as palavras do velho, com os olhos arregalados. Layla deixou-se paralisar sentindo além da dor de cabeça o corpo inteiro entrar num movimento de vertigem.

— Esse é o quatruplo, quíntuplo do valor da nossa última caçada – conseguiu dizer o rapaz, com os dedos cravados no estofado.

— Mais – sussurrou Layla – isso é muito mais do que quíntuplo, é... o duodécuplo do valor.

Zain virou instintivamente para a garota.

— Esse nome existe?!

Hilon riu de seu assento e encarou o grandão a sua frente, erguendo a sobrancelha. Erin não se mexeu e tão pouco se deixou espantar como seus amigos, mas sentiu a agitação crescer dentro de si. Era uma proposta além do que eles poderiam imaginar.

Antes que Erin retomasse seus pensamentos foi Layla quem interveio fazendo a pergunta que todos eles queriam fazer:

— Tudo isso só para escoltar uma garota?

Os olhos cinzentos caíram sobre ela e o sorriso do homem aumentou. Ela nunca pensou em quão velho Hilon viera se tornando ao longo dos anos, mas podia ver nas rugas de seu rosto os traços marcantes da idade.

— Por isso eles pediram meus melhores homens. Ela não é só uma garota.

O silêncio que se seguiu, cheio de olhares curiosos, lhe deu o gatilho para continuar.

— Ela é uma Deusa.

A boca de Zain se escancarou, os olhos de Layla saltaram e Erin perdeu visivelmente o equilíbrio. Os três olharam aturdidos o homem a sua frente que sorria como se não fosse nada demais escoltar um ser celestial.

Haviam lendas e rumores de divindades no mundo humano, escondidos entre as pessoas, vivendo vidas comuns. Alguns não conseguiam esconder suas origens e acabavam sendo capturados e vendidos no mercado negro, de onde aproveitavam desde suas asas ao poder que lhes preenchia o corpo.

 A presença de um ser celestial era indício de boa sorte pois só os de coração puro podiam descer a terra, para ajudar os humanos em seus momentos de sofrimento. Havia lendas de seres que entraram em batalhas ao lado de seus protegidos, de poderes usados nas curas de pestes e tanta fartura e bonança que fugiam aos olhos.

Eram essas histórias que escorriam entre o trio enquanto Hilton batia suavemente os dedos sobre a escrivaninha, esperando até que eles absorvessem as informações. A porta abriu rangendo enquanto o choque corria a sala e o som de saltos ecoou entre os presentes.

Os olhos negros de Layla foram certeiros na figura esguia parada e apoiada na porta. A jovem tinha cabelos loiros e cacheados, olhos de um azul anil e quando sorriu, seus dentes iluminaram todo o cômodo.

— Estou atrapalhando algo?

A voz era doce e afinada, como o canto dos anjos, e os três presentes a olharam com surpresa. Era sem dúvidas ela a deusa de quem Hilon falava. Tão delicada e com uma aura poderosa.

A dor de cabeça de Layla se tornou uma dor latejante e secundária quando ela processou quem estava parada ao seu lado. A ressaca era o último de seus problemas ali, com uma deusa de pé na soleira da porta olhando para todos.


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