Jornada escrita por Kyrion


Capítulo 8
Parte 8




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Vejo meu destino se aproximando de maneira surpreendente. Mesmo através da janela, sei que faz bastante frio naquela região elevada, de montes aveludados escuros e de árvores magras e austeras. Percebo primeiro a presença dos dois sóis, tão pálidos que não valem um de minha terra natal.

O imenso lago sobre o qual a cidade foi construída parece inacreditavelmente imóvel de longe, formando um incrível espelho. Pouco maior do que a cidade em si, é preciso contar dobrado cada pico de prédio, cada templo, cada torre. Também nosso trem, aproximando-se da estação, tem seu gêmeo a acompanhá-lo até chegarmos a uma das várias ilhotas que servem de base para a cidade.

Pouco antes de saltar, deixo o livro sobre o banco. Ainda há margens suficientes para que o novo leitor complete a narrativa como lhe aprouver. Sempre soube que não daria a última palavra, como não dera a primeira.

O frio me agarra como um amante possessivo que teme me perder novamente, e puxo meu capuz ciente de que precisarei comprar rapidamente um agasalho. O nome da cidade figura em uma bela placa, em duas línguas, repetindo-se em ambas, o que me deixa intrigado. Parado, atraio a atenção de uma figura em belas roupas de frio, com arabescos bordados de grande delicadeza. Pergunta-me algo com ar solícito, mas não entendo o que quer dizer. Respondo, de maneira que perceba nosso obstáculo. Arrisco outro idioma, e mais outro, sem sucesso. A figura entende meu esforço e também se arrisca como pode, em vão. Com gestos, tenta me pedir algo que parece ser “espere aqui”. Por fim, despe-se do casaco bordado e atira-o sobre meus ombros, vendo-me com frio, e some antes que possa responder. Assim, atinge seu objetivo de me fazer esperar.

Retorna em pouco tempo na companhia de uma senhora de expressão amável.

“Sejam bem vindos.”

Assim, sem preâmbulos, uma saudação em minha primeira língua, com um sotaque musical que mais a adorna do que agride. Fico apenas curioso com o plural.

“Sou grato.”

“Precisam de algum tipo de ajuda?”

“Gostaria de saber onde posso comprar um agasalho, para que possa devolver este... e uma sugestão de um bom lugar para passar alguns dias seria ótimo.”

“Posso sugerir que passem a noite em nossa pensão. Ela não está longe, e podemos apresentá-la logo. Se aceitarem, será um enorme prazer. Quanto às vestes, gostaríamos muito de lhes oferecer como presente, mas temo que aqueles que temos não venham a lhes servir muito bem.” Sorriso culpado.

“Não se preocupe! Eu posso pagar!” insisto, para tranquilizá-la. “Agradeço a generosidade.”

“Venham conosco.”

Nosso trio – segundo minha contagem – segue para fora da estação, onde o ar gelado, mesmo sem vento, morde nossas faces. Atravessamos a rua e uma pequena ponte levando a outra ilha, que seguimos também até o final, antes de passarmos para um complexo caminho elevado sobre as águas, em longos pilotis, que chegam junto a vários prédios distribuídos de maneira irregular, quase nunca lado a lado, ou mesmo frente a frente. Alguns deles parecem brotar diretamente das águas tranquilas – ou imediatamente de seu próprio reflexo.

“Por que viajaram até nossa cidade?”

“Estava sem destino certo. Senti interesse por este lugar... ou por seu nome. Não conheço nada daqui.”

Um sorriso cordial e satisfeito enviado para mim. “Podem dizer então que foram ‘chamados’.”

“Acredito que sim.” Respondo. Percebo o jovem que me emprestou a roupa nos acompanhando com um jeito amistoso. “Ele não se importa de não entender nossa conversa?”

“Posso contar a ele depois.”

Desconfio dessa resposta.

“Estamos chegando.”

Entramos em um comércio onde todos os que ali trabalham têm expressões modestas e sorridentes como aqueles que me acompanham. Alguns cumprimentam a senhora de forma mais humilde e percebo um respeito hierárquico. São todos membros de uma mesma organização, possivelmente religiosa ou filosófica. Sou também cumprimentado com simpatia, mas alguns olhares estão mais surpresos.

Algumas palavras são trocadas e logo sou guiado para uma longa arara com muitas peças diferentes, em geral mais quentes e de maior tamanho. Percebo que são todas usadas, mas em ótimo estado, muito limpas. Começo a antecipar os próximos acontecimentos.

Vou buscando com as mãos e os olhos a roupa que me servirá; a opção mais provável é uma roupa mais justa, de gola alta, inteiramente preta, que posso usar por baixo das minhas peças, mesmo que as mangas fiquem curtas. Sou guiado ao local para experimentá-la e saio para um mar de simpáticos sorrisos silenciosos, como se fôssemos feitos um para o outro.

“Um cachecol pode lhes ser útil também.” A senhora me indica a peça, bela e pesada, com franjas em harmoniosos tons rubros.

“Prefiro algo mais...” pouso a mão em um lenço amplo e longo de verde profundo, vivo como uma mata intocada. A palavra que procuro não vem. Minha escolha é acatada com indulgência.

“Quanto devo pelas peças?” pergunto, pedindo ajuda para a tradução.

“São doações, fiquem com elas como sinal de boas vindas.” Minha anfitriã responde.

“Não posso aceitá-las assim.”

“Tampouco podemos aceitar seu dinheiro.”

“Então como posso retribuir?”

A satisfação é clara, já que cumpro tão bem o papel esperado de mim.

“Se seu espírito é mesmo tão generoso, seríamos muito gratos se nos ajudassem a separar nossos itens para donativos e encomendas.”

“Eu posso passar lá amanhã.”

“Venham conosco, temos quartos para hóspedes e...”

“Não, não, agradeço, prefiro sempre pagar o alojamento. Nunca sei meus horários de chegar ou partir...”

“Bom, posso lhes apresentar um lugar...”

Não retruco novamente. Agradeço a todos no lugar com um gesto antes de ser novamente guiado porta afora. O casaco emprestado já estava devolvido. O jovem gentil que o cedera ficou no galpão junto com os demais membros daquele grupo gentil e seus sorrisos.

“Se eu puder perguntar...”

“Claro.”

“Por que sabe minha língua?”

“Estudei várias línguas para poder me comunicar com o máximo de pessoas possível e ensinar. Recebemos vários estrangeiros, nestes tempos um pouco menos do que antes.”

“Também gosta de ler as obras de outros povos?”

“Leio muito, mas somente o que é verdadeiro.”

Prefiro não insistir. “Se me permite... por que se refere a mim sempre no plural?”

Riso breve. “Achei que essa seria a primeira pergunta. Dirijo a palavra não apenas a você, na verdade, quando nos falamos. É de nossa fé, na cidade, levar em consideração aquele que sempre lhe acompanha, e que aparece sob a forma de seu reflexo no Lago.”

Bem neste momento estamos cruzando uma das muitas curtas pontes que recortam a cidade – este caminho que tão bem une quanto separa – e vejo de relance meu reflexo na luz que se perde.

“Então sou considerado uma dupla?”

“Sim, como qualquer visitante ou outra pessoa que não tem consciência desta companhia.”

“Por isso não se refere a si mesma no plural?”

“Não preciso. Meu reflexo está desperto e consciente, e sabe perfeitamente como cuidar de si e fazer as coisas como devem ser feitas.”

“Um reflexo faz sempre exatamente o que fazemos, não? Apenas invertido...”

“Sim, claro. Mas o meu sabe que está fazendo. Decidiu fazê-lo tanto quanto eu decidi.”

Seguimos em silêncio até chegarmos a nosso destino, uma ampla pousada, baixa e simples, impecavelmente limpa, clara e agradavelmente geométrica, equilibrada em sólidas colunas. A falta de construções imediatamente próximas permite que se veja sua imagem no lago por inteiro, principalmente quando o novo dia nascer. Chegamos à entrada por uma passagem que descreve um gracioso e suave arco, com flores de ambos os lados. Atrás do balcão, outro sorriso, outra saudação humilde, outra amizade.

Palavras breves trocadas, um preço me é apresentado, com redução especial; adianto-me para pagar, mas minhas pedras realmente não são aceitas em nenhum estabelecimento, e o câmbio já está fechado.

“Não se inquietem, podem trocar o valor amanhã. Passarão essa noite aqui sem problemas, sob meu sinal de amizade.” Diz-me a senhora respeitada.

Agradeço, ansioso para encerrar os diálogos por um tempo. Sou guiado por corredores longos, virando algumas vezes, continuando pelo térreo até pararmos diante de uma porta branca igual a todas as outras, com uma indicação provavelmente numérica, como a maioria. O quarto é pequeno, sem banheiro, com uma ampla janela que – tenho certeza – dá para a água. A cama, a mesa-escrivaninha e as duas portas de armário são também brancas e limpas.

“Fiquem à vontade. Espero que tenham uma noite repousante. Será um prazer revê-los amanhã.”

Respondo com a cabeça e a porta branca se fecha. Ouço os passos se afastando pelos corredores, aguardo alguns instantes. Tomado por uma insegurança irracional, reabro a porta com o medo de que esteja trancada; não está. Contemplo o corredor vazio e silencioso, de luz suave. Volto para dentro, fecho a porta, repouso minha bolsa na mesa e entreabro a janela sem cortinas. Um retângulo de luz bem abaixo de onde estou, com o recorte de minha cabeça, confirma minha suspeita. Em minha silhueta escura, identifico apenas o brilho dos olhos, talvez iluminados pelo reflexo da luz.

Inspeciono o espaço. A cama é muito macia e range um pouco, e os lençóis têm um cheiro suave de incenso que não me desagrada. A mesa-escrivaninha está toda vazia, exceto por um grande volume branco em uma das gavetas, escrito de forma incompreensível para mim. Suponho que tenha ligação com a organização que está um pouco em toda a cidade. Uma das portas do armário é um cabideiro, com duas gavetas na base, enquanto a outra é toda de prateleiras regulares; em seu interior, apenas uma nova muda de roupa de cama e uma grande toalha.

Meus pés não cabem na cama comigo. Tampouco meu sono. Os ruídos são poucos, e não há nada de interessante ou funesto para me distrair. Fico um tempo observando as coisas que trouxe, reencontrando raízes, até sair para descobrir onde fica o banheiro.

Percorro alguns corredores, silenciosamente, sem muito sucesso, já que nenhuma porta tem qualquer daqueles símbolos universais para indicar a turistas perdidos onde podem marcar território. Acabo por encontrar dois funcionários que parecem conversar, mas que se interrompem sem grande sobressalto, voltando para mim rostos amigáveis, dizendo a mesma frase – qual seja – quase ao mesmo tempo. O sorriso da moça é um pouco mais amplo do que o do rapaz.

“Sinto muito...” balbucio, incapaz de me comunicar.

“Oh! Precisa de alguma ajuda?” o rapaz está surpreso, respondendo em idioma compreensível, depois de outras três tentativas. Vejo que não o domina, como tampouco eu o faço.

“Banheiro.” Respondo.

“Achei que sim.” Ele sorri, mas não do jeito que os demais fazem. Parece sinceramente divertido. Diz algo para a jovem antes de passar por mim, para guiar meu caminho. Não chegamos a andar muito antes que me indicasse uma porta com um desenho na frente. “Banheiro” apontou, e em seguida para outra, com algo escrito. “Banho.”

“Isso é...?” aponto para o desenho.

“É.”

Encaro de novo a imagem, percebendo a referência artística ao órgão que eu usaria ao urinar. Minha vontade de rir não chega aos lábios.

Abro a porta do local indicado para banho, onde vejo várias cabines abertas embaixo e não muito altas, com chuveiros individuais quase no teto, bem largos.

“São bons.” O jovem indica as saídas de água, e faz um gesto rápido com as mãos, que interpreto como ‘são fortes’.

“Tenho que...” não tenho a palavra certa, então apenas me adianto, ainda de roupa, e entro em uma cabine, de onde encaro o funcionário por cima da divisória. Assim ficamos um bom momento, até ambos começarmos a rir.

“Precisa... fechar” ele diz, ainda entre risadas, fazendo o gesto de tapar os olhos. Concordo com a cabeça, voltando para perto dele. “Você... demora...?” continua, ainda em tom de brincadeira, fazendo a mímica de quem está se secando, corpo e cabelos.

“Muito, muito.” Assentimento de minha cabeça. Saímos do lugar. Não nos afastamos.

“Não dormir?” ele pergunta, depois de alguns instantes de silêncio. Outra vez concordo.”

“É.”

Ele reflete por um momento. “Jantar.”

Sou orientado a segui-lo, até chegarmos a um tipo de refeitório de funcionários. Lá, aguardo alguns minutos enquanto ele se serve de comida suficiente para duas pessoas e meia. Na saída, agarra outro prato vazio.

***

Uma varanda vazia nos fundos é nosso ambiente de refeição, onde podemos conversar sem perturbar outros hóspedes. Ganhamos prática em nossa língua entrecortada e adornada com gestos, enquanto o simples uso e diálogo trazem de volta à memória algumas palavras perdidas. Assim, descubro que trabalha lá há pouco tempo, e por isso é menos sorridente que os demais.

“Estava sem caminho. Passado ruim. Futuro...” dá de ombros. “Cheguei aqui.”

Aquela organização controla toda a cidade e parece bastante boa para a população. É especialmente interessada em recém-chegados. Quando pergunto o que ele acha dela, a resposta não é muito expressiva. “São pessoas boas. Estranhas. Mas boas.”

Também sou questionado sobre minha viagem e minha terra-natal. Acabo surpreso com a franqueza de minhas respostas.

“Quando pequeno. Estórias. Desse lugar. Seu lugar. Pessoas estranhas... criaturas.” Ele diz, fazendo gestos para chifres, asas, cauda. “Hoje, eu te vejo.” risada. “Acredito.”

Pergunto sobre os reflexos e por que são tão importantes. Ele reflete longamente.

“Outro mundo.” Diz, por fim. “Não imagem. Real. Outro. Outro hotel. Outra cidade. Outro eu e outro você. Tudo.” Com gestos, quer me dizer ‘por fora e por dentro’.

Finalmente compreendo. A ideia de que há toda uma cidade invertida logo abaixo desta, não apenas exterior, mas completa; quando terminarmos, meu reflexo vai atravessar corredores e se deitar em um quarto como o meu, e adormecer junto comigo, repetindo cada ação.

“As pessoas... acreditam. São vistas todo o tempo. Os reflexos sabem. Nada é sozinho. Você e reflexo sempre. Você é...” falta-lhe o termo. “O reflexo precisa de você. Ele é feliz quando você é feliz. Tudo seu é dele. Duas vidas. Exceto se...” outro dar de ombros.

“Se nós somos o reflexo?” completo.

“Alguns acreditam. São vários tipos de acreditar.”

Imagino se o meu reflexo está pensando o mesmo que eu, com as mesmas dúvidas, se gostou mais do jantar que comeu com a outra mão.

Já tenho o suficiente para esta noite. Despeço-me com um agradecimento que é retribuído. Volto para o quarto, hesitando pouco no caminho, e parando desta vez no banheiro. Sinto que vou conseguir dormir, assim como sinto que não vou resistir a olhar pela janela uma última vez.

Quando me recolho, tenho a impressão de que minha imagem sustenta o olhar um instante a mais que eu.


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