Jornada escrita por Kyrion


Capítulo 2
Parte 2




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Meus pés me trazem de volta à minha plataforma. Estudo as pessoas e percebo que há poucas despedidas, muitas malas, uma névoa de expectativa. Seres solitários preparados para longas viagens, ou estadias duradouras. Eu carrego muito menos, e posso ir mais longe. Este pensamento me traz à superfície orgulho e insegurança, sem que qualquer um vença.

A máquina imensa já está lá para nos engolir, fazendo barulho, confiante, retinindo. Meu bilhete se mostra ao encarregado enquanto passo despercebido. Degraus, corredor, contornar pequenas malas, uma cabine vazia. Os bancos são verdes, com almofadas antigas e uma estrutura de madeira – aquele artesão tinha algo naquilo? – e as paredes têm um papel de tema entre o floral e o abstrato, entre areia e outro verde. Jardim móvel de metal. Mas só eu tenho a flor.

Minha bolsa repousa junto a mim até o local ser requisitado, se for. A janela ao meu lado só mostra o cinza que deixarei para trás. Não posso ver a loja do artesão. Dou-me conta de que aquela criança já pode ter dado todo um jardim.

Antes de ficar decepcionado com a chance de meu presente não ser o único, vem o encanto de imaginar uma missão tão bela e assumida tão cedo. Trazer de volta os adultos que já não estão em parte alguma, nem cá nem além.

E claro que minha flor é única. Só ela é minha.

O som do apito. O primeiro movimento arrastado que faz a cidade opaca deslizar lenta, mas continuamente. A plataforma já está quase de todo vazia. Um casal de aproxima, requisitando mais com os olhos do que com a voz, o lugar à minha frente, que cedo de forma distraída. Suas palavras são inaudíveis para mim. Estou mais concentrado no novo apito, no som do pesado deslocamento sobre os trilhos, nesta despedida entre mim e o tão pouco que deixei para trás, que cresce a cada passo.

O casal não compartilha deste sentimento. Não olham pela janela, mas para as mãos no colo, entrelaçadas. Para eles, não há o que deixar para trás, pois têm tudo consigo. Tudo o que importa.

Pode ser que eu também tenha.

Quando foi que parei de olhar para a vista emoldurada e mutante para vê-los? As construções poeirentas se abrem sobre a paisagem serena e quase vazia ao redor da cidade, onde outros trilhos perpassam caminhos próximos. Outro trem, saído pouco antes deste, começa a escapar de meu olhar após uma curva à direita. Não muito longe – adivinho pela fumaça que se eleva, mais fina que as nuvens – chegará mais um, trazendo seu quinhão de vidas que não conhecerei.

Eles não se mexeram. Nada ouço, e tudo o que vejo é um suave bailar de dedos que se faz carícia. Seu mundo se reduz até que eu os veja menores, encolhidos, ondulando mansamente com o percurso do vagão em total sincronia, debruçados sobre o mesmo amor, mas que vislumbram de ângulos diferentes.

É fácil convencer a mim mesmo que sou eu que me desloco enquanto o mundo não se move, mesmo que meus sentidos me digam o contrário. É fácil escolher no que acreditar. É fácil desconfiar de tudo.

O trajeto me é familiar em todas as suas novidades, sem que eu saiba como ou por quê. Oscilo entre estar presente no afora e estar dentro de mim, enquanto insisto em dar nomes às coisas. Um jogo de escapadas em que só eu perco. Perco tempo, perco foco.

Lembro que estou procurando minha estória. Procurando palavras que se revelam em locais inesperados, entregues sempre pelo acaso, em suas diversas vestes, que são o mundo inteiro, incluindo aquilo que encontro sempre que vejo um espelho. Palavras que encontro como o nome secreto das coisas, que precisamos descobrir sempre que buscamos outra coisa. Assim como orientamos nosso futuro olhando para o que foi feito no passado, e encontramos - ou, ao menos, entrevemos - nossas lembranças nos planos tecidos, às vezes, por outros. Passado e futuro dançam juntos; o primeiro com sobriedade, o semblante cingido de trágica imponência, ereto a despeito do peso descomunal de todas as faltas, culpas, mágoas, conflitos e perdas que carrega. Porque a ausência tem também um peso enorme. O outro tem a leveza efêmera dos desejos, o peso apenas da expectativa, o sorriso exausto de quem sabe que jamais cumprirá todas as esperanças ou promessas. Não pode. Mas dança, ainda dança, na eterna segurança de se transformar em seu companheiro.

O presente é apenas palco. E a música, e cada passo. Assim, ele mal existe, e já começa acabando...

Desta forma, ele é tudo.

Assisto a essa dança, indeciso. Com vontade de participar, sem, no entanto, saber dançar. Tendo a convicção de que jamais poderei imitar os passos do futuro, tão imprevisíveis. Tendo a certeza de que não quero imitar os passos do passado.

Diante disso, por um momento, apenas me movo. Sigo a canção que desconheço, mas que é tão minha quanto de qualquer outro. Se prestar atenção suficiente nela, e no espaço – no presente – é possível segui-la. Apenas isso. Não entendê-la, ou prevê-la, ou ter uma opinião sobre ela. Apenas segui-la. Isso já exige a concentração total.

Ainda assim, sinto o erro em cada passo, e em cada gesto. Errar tão continuamente, tão infalivelmente, é doloroso. A música e seus dançarinos continuam, mas eu não. De novo, algo cresce dentro de mim, algo sem nome, nascido no olho do mundo, e que me empurra quando quero parar.

Por isso começo a cantar.

E minha voz chega mais perto de acertar do que meus gestos chegaram. Não tenho certeza. Não tenho a certeza de nada. Por isso, posso estar certo.

Neste momento, o passado e o futuro param de dançar. Olham para mim. Sei que o fazem mesmo que feche meus olhos.

Pisco diante da paisagem já escurecida, um conjunto veloz de borrões sóbrios que nada querem me dizer ou revelar, querendo rapidamente livrar-se de meu olhar inquiridor.

Percebo que adormeci.

Trago na língua o sabor das últimas palavras que cantei. Nos tímpanos, o eco da última coisa que disse.

Mas a memória está vazia.

O casal à frente está de olhos fechados, um acolhido no ninho dos braços do outro. O que acolhe também adormeceu, confiante em sua fortaleza, os braços sem romper a malha que recobre seu tesouro. O acolhido, não. Está desperto. Noto-o pela ligeira tensão dos músculos, pela respiração regular demais, nem profunda nem rasa, na mão que aperta o braço que envolve seu corpo. Não, não está dormindo. O momento é muito importante, muito intenso para adormecer. É um momento que pode acabar e precisa ser bebido até a última gota. Por isso está amando. Está amando e sendo amado. Com tanta força que é quase uma angústia. Como coisas fortes e dolorosas deixam sempre marcas, algo daquele momento ficará guardado para sempre. Em pelo menos uma memória.

E talvez na minha, como testemunha. Tenho esse direito? De lembrar-me do amor que não me pertence, quando nem mesmo um dos integrantes lembrará, em tão profundo sono?

Começo a lamentar o desperdício do momento de amor... até escolher, apenas para apaziguar a mim mesmo, acreditar que este sono é fruto da imensa tranquilidade e bem-estar proporcionado justamente por esse amor. Nessas horas, é bom ser o pintor dos próprios quadros da consciência (ou, antes, estar consciente de que o pincel sempre esteve em minha mão, o tempo todo), e poder embelezá-las a meu bel-prazer.

Angústia de amor recostada na tranquilidade do amor.

O escuro rouba a vista da janela. Presto atenção aos sons, mas poucos ultrapassam a barreira do próprio deslizar e chacoalhar. Uma risada mais vaga do que as estrelas me faz lembrar que o mundo ainda existe para um pouco além daquela cabine.

Deixo o sono me roubar mais um pouco de minha vida. Como se estivesse tímido, não me tira mais do que um pouco de cada vez.

Incapaz de ficar mais tempo restrito no esforço de repousar, fracassando, descido me levantar e ganho o corredor, deslizando sem ruído a porta da cabine. Vejo as outras do vagão, algumas no escuro, outras com luz. Tomo o sentido do fim do trem. Lanço olhares breves para dentro do pequeno mundinho viajante dos outros, através do vidro em cada porta. Vejo formas indistintas, amorfas no escuro, de diversos tamanhos, indecifráveis; exceto por ocasionais cabeças erguidas voltadas para o mundo lá fora. Dessas, quase posso enxergar o emaranhado de pensamentos. Do claro, também me permito apenas vislumbres. Cenas que pertencem a famílias, a grupos de amigos, constrangimento de desconhecidos. Riso, conversa, sermão, sono, ansiedade, jogo de cartas; tudo antes mesmo de eu sair do vagão.

Estou diante de uma biblioteca, cujos livros se escrevem bem diante dos meus olhos. O ponto final virá de repente, com grandes chances de chegar no meio de uma frase. Nunca se adivinha a última página, apesar do nosso desejo de fazê-la sempre grandiosa. Livros que compartilham alguns capítulos, sempre tão diferentes de uma obra para a outra. Quem os ler todos, dificilmente saberá que o trem citado é o mesmo em todos eles.

É o mesmo?

Sigo com a intenção de não ser notado, não chamar a atenção. Raro quando sou flagrado por um olhar furtivo, mas leio o esquecimento antes mesmo que se desviem. Não interesso. Atravesso assim mais de um vagão, colecionando imagens que se deteriorarão, a abstração alheia.

Até ser perfurado. Atravessado sem piedade por um olhar tão intenso, tão sísmico, tão livre de pudor ou crueldade que jamais será tocado pela culpa. Um olhar preparado, na minha direção, como se esperasse por mim.

Estou imobilizado por este olhar, que me detém com mais obstinação do que qualquer corrente. Isso sem o menor esforço. Inconsciente do próprio efeito, do fino fio das próprias pupilas. Estou livre do peso das culpas, e minha alma não terá para mostrar nenhuma mancha para estes olhos. Nenhuma que eles possam ver. Espelho de inocência. Mas não o é toda presa que cai sob o predador?

Subitamente livre quando minha figura desperta alguma curiosidade, e o encarar passeia sobre mim; só há prisão no elo entre os olhos de ambas as partes, como entre os lábios de um e os ouvidos de outro. Pela primeira vez sinto-me grato por ser ao menos vagamente interessante. Fujo antes que seja tarde, e precise esperar o tédio alheio para me evadir.

Nada sei de meu breve captor, exceto sua juventude. Só ela tem tamanha autoridade, a confiança absoluta tão pouco desafiada pelo mundo. Ninguém devora com a visão como uma criança. Nenhuma convicção pode competir com essa. Um ser inteiro de vontades cristalinas como seu sorriso de mil faces.

Afasto-me ainda coberto com os frangalhos do que houve, absurdamente consciente de mim mesmo. Fui visto, realmente e intensamente visto, e de repente não sei o que fazer com esta volumosa certeza de que eu existo. De que sou real, observável, notório, denso. Há tanto tempo estava na posição de contemplador das formas do mundo, que me acostumava à etérea posição de quem olha sem ser olhado, de quem não tem importância. Nem mesmo ao olhar meu interior dou-me tamanha conta de mim: pouco me coloco lá, realmente presente, nas coisas que lembro, que sinto. Dou muitos passos sem saber o que fazer com esse súbito peso, caído de minha imaginada pose de transparência e irrelevância.

Com o escuro lá fora e a luz das cabines, vejo claramente meu reflexo no vidro das janelas. Um novo tapa nos meus sentidos. Como crer que aquilo já estava ali, e sempre esteve?

Passo a outro vagão na esperança de estar menos denso no novo território, onde ainda sou incógnito. Preciso, desesperada e apressadamente, abstrair de mim, como quem tem a certeza de que em algum momento sufocará ao tornar-se consciente da própria respiração em hora inoportuna. Consciente da própria vida – e do esforço de mantê-la. Não daquele mar de luzes espalhado nas retinas, mas na suave e débil vela por trás do mínimo véu da nossa pele.

Meu ato seguinte é o de pegar o segundo pão, que havia guardado. Como-o com mais gana que fome, mergulhado em cada ruído e textura que pode me oferecer. Aos poucos, deixo de ser, para entregar-me à simplicidade de comer um pão. Com ele pelo meio, sinto-me melhor. Guardo-o de novo como quem preserva um bálsamo.

Volto minha atenção às novas cabines. A terceira oblitera as outras duas sem que eu possa salvá-las. Uma voz elevada imediatamente capta minha atenção. Pouco grave, clara, do tipo que monopoliza uma plateia, mas o faz mais por coerção que por carisma. Não é do tipo hipnótico como uma boa contadora de estórias ou cantora de canções de ninar. Logo, com algum esforço, procuro me desvencilhar do tom para reter-me no som: é uma língua que me apreende. Não é aquela de onde eu vim – de onde todos viemos quando o trem partiu – tampouco aquela para onde nos dirigimos. É uma ilha flutuante, uma bolha de palavras. Um vegetal que dificilmente encontrará solo fértil para plantar seu vocabulário. Um olhar rápido me diz que seus três ouvintes dominam o idioma e o compreendem (ao menos a língua; que posso dizer do falante?).

É uma língua que também conheço, mas que mal me conhece. Do tipo que demanda uma atenção especial, que ainda é decifrada, como algo que se faz de repente com a outra mão. Pela falta de hábito, ainda posso saborear mais o ruído do que o sentido das palavras, se estiver distraído e atento na medida certa. Estranha na minha boca o suficiente para que eu não seja mais senhor de meus lábios, minha língua, meus dentes; ela os manipula como quer, enquanto involuntariamente a destruo aos poucos. É um jogo. Precisaríamos de muito mais entendimento para que pudesse sobreviver comigo. E mais tarde florescer.

Permaneço mais tempo ouvindo este idioma que tem uma única fonte. Minha memória presunçosa se esforça por mostrar que ainda recorda regras, padrões, vocabulário. Os ouvidos apenas dançam aquela musicalidade rara para mim. Sou o ouvinte anônimo e desnecessário, e quase um ladrão.

Em meio a tudo do qual estive alheio, me ouço, de repente. Ele fala de mim. Ou, antes, de algo que sou ou creio ser, algo que me define, grupo ao qual pertenço sem me haver lembrado de escolher. Ele me agride, nesta parte de mim.

Sem poder reverter, presto atenção no conteúdo. Sou testemunha de uma longa lista de termos desagradáveis, ferinos, cruéis e ignorantes. Um elenco de clichês que revela preconceito e violência. Os termos que não compreendo são por demais embebidos em veneno para serem inócuos. E tudo isto contra aqueles que, em um único traço, são como eu. Ouço sem trégua, de modo que me sinto imundo, recoberto pela sujeira das palavras, sujeira que vem dos outros, e nem um pouco de mim. Tenho plena consciência de minha inocência, coberto como estou de adjetivos que me ferroam sem que os mereça.

Sinto a acidez da fúria subir até o fundo da boca, e uma vontade de reagir que me faz vibrar os punhos. Faltam ideias do que fazer. Retrucar seria uma rede de problemas. Minha habilidade com o idioma é fraca e a angústia seria tão proveitosa para minha eloquência quanto uma mordaça. Precisaria admitir que estivera bisbilhotando antes. Qualquer atitude intempestiva equiparia meu adversário com mais argumentos do que a mim mesmo. Dele ignoro tudo, e o que quer que diga seria nutrido com a mesma ignorância que nutre seu discurso; com a raiva que sinto, também com semelhante violência.

E meu desprezo é grande demais para ousar agir como ele.

Dos outros, nada posso dizer, já que eles nada podem dizer. O verbo é desperdiçado de maneira exclusiva. Não leio em seus rostos nenhum tipo de concordância ou aprovação; a tensão pode igualmente ser fruto da repugnância pelo que ouvem, quanto pela fadiga pelo que houve – e continua havendo. Posso no máximo culpá-los pela passividade... mas sem saber que há uma guerra, como teriam consciência de que deveriam tomar partido na disputa?

As atrocidades se acumulam. Meu léxico se expande por ramos totalmente dispensáveis.

Atraído por alguma força desconhecida que se tenha desprendido do meu corpo – não o questiono – o olhar se ergue de seu pequeno público cativo e se encontra com o meu. As últimas palavras se atropelam, a linha do despejo se rompe, a confiança absoluta escorre como areia fina. Ele lê, em um único momento ele lê toda a verdade em meu semblante. Sabe o suficiente de mim para saber que o desprezo que sinto é fundamentado em raízes mais firmes que os trilhos por onde deslizamos; que sou muito mais do que o vazio que estivera transmitindo com tanta pompa e afinco. A faísca do medo se ilumina em seus olhos, paralisa seus lábios. Ah, a canalhice flagrada! A idiotice exposta! O peso de um olhar que eu sentira há tão pouco tempo e me arrebatara, vindo de uma forma miúda, era tão mais ameno que este, em que meus olhos sentem prazer em lançar, arremetido com todo o conjunto efervescente (e, em breve, pútrido) do que eu sentia.

Digo tudo com meu rosto, na eternidade fornecida por este instante. O opressor é oprimido e baixa os olhos. Desapareço como uma sombra antes de uma segunda inspeção.

Perfeito.

Nenhum dos outros me viu, confusos com a interrupção súbita de seu palestrante. Sou uma visão que existiu somente para ele, para assombrá-lo em seu susto e julgá-lo em sua memória, sem ser compartilhada com mais ninguém, e que sumiu sem que um novo exame pudesse revelar a materialidade, a imperfeição. Como interlocutor mortal, sou ponte para um debate inútil que terminaria na exaustão ou na alteração; como fantasma em sua mente, sou invencível.

Perfeito.

Apresso-me rumo ao vagão seguinte, para não ser visto nem mesmo no corredor. Não há interesse em me investigar por enquanto.

Estou no último vagão. As cabines oferecem a visão de viajantes adormecidos, em silêncio denso e repousante. Ou então olhos brilhando no escuro, sempre voltados para fora, para a distância, e a mente voltada para uma distância maior ainda; neste caso, o silêncio é prenhe de expectativa.

Já estou prestes a desistir da minha inspeção quando noto na última cabine uma mão acariciando a cabeça de um pequeno em seu colo. Parece adormecido, ou quase. Os lábios dela se movem de maneira cadenciada e não escuto som algum, tão baixa e suave está sua voz. Adivinho a canção de ninar. Pergunto-me se é daquelas realmente ternas e tranquilizadoras, ou daquelas horripilantes que nos são deixadas de herança junto com algumas das medonhas estórias infantis. Ou ainda daquelas moralizantes, que são igualmente terríveis. A cultura infantil tem muito do mundo onírico: povoada de elementos maravilhosos, cândidos e perversos em medidas desiguais, sem grande lógica, e um sentido profundo que escapa a todos, principalmente a quem a criou. Podem marcar para sempre, ser estudados indefinidamente, e todos adoram ter uma vítima a quem contá-los.

Nunca ninei alguém. Qual será minha escolha quando a hora chegar?

Nem por um momento duvidei que de que ela fosse mãe. Ela é. Talvez não do pequeno em seus braços, nem de qualquer outro, talvez nem saiba. A maternidade já a escolheu, clara como o dia. Ela já canta canções de ninar e sabe afagar outro alguém. Sabe ser leito e canção em uma viagem de trem.

Em poucos passos, chego à última porta, que dá para uma espécie de sacada mínima bem no final do veículo, e de onde vejo as sombras do caminho correrem velozmente para o meu passado, paradas no presente de outros seres, aguardando no futuro do próximo trem.

Contemplo a terra com sua velocidade contrastando com um céu impassível. Estou como ambos. Uma agitação me percorre, agitando meus fantasmas, enquanto pensamentos torrenciais me inundam, ora para o futuro, ora para o passado; ora trem, ora paisagem. Acima da turbulência, paira uma calma que poucas vezes me abandona de todo. Levo-a como alguns trazem olheiras, dores nas costas, um talismã, um vício, uma fobia ou qualquer outra coisa da ordem do quase-sempre.

Sem desviar os olhos das sombras passantes, mergulho a mão na bolsa e sinto a fieira de contas que sempre me tranquiliza, a superfície lisa quase macia das diminutas esferas sob a pressão de meus dedos, familiar como qualquer outra parte de mim. Um rosário que fora presente meu para mim, vindo pelas mãos de outro. Depois de tanto tempo, já era antes de tudo companheiro de viagem.

“Viajar de costas é mais saudoso. Estamos voltados para aquilo que estamos deixando.”

A voz rouca e mansa atrás de mim é tão compatível com a noite e com o ruído do trem que sequer poderia me sobressaltar. A silhueta é igualmente discreta, apenas outra sombra, só que solitária, e com uma história que transborda de si.

“Está deixando algo precioso para trás?”

“Nada mais precioso do que aquilo que estou indo encontrar.” Responde a silhueta, apoiada na grade de proteção a olhar para o breu.

“Então, o que faz a viagem saudosa?”

“Não serei mais o mesmo que era quando comecei esta viagem. Algo que me definia deixará de existir quando eu chegar.” É a nova resposta.

“O que é este algo?”

“A saudade de quem vou encontrar ao chegar.”

Reflito sobre essa resposta. É justa como uma porção de coisas que têm mais lógica do que sentido.

“Certamente encontrará algo mais que fará falta, assim nunca... faltará um vazio para preencher seu vazio.”

Uma risada breve, de humor verdadeiro com um toque de condescendência. Sinto que sou visto como cheio de uma inofensiva tolice.

“Quando tiver a minha idade, entenderá quantas coisas farão falta...” ouço dizer.

Penso um momento se devo responder ou não. Decido que sim. Seria fácil evitar uma discussão mais longa, se necessário.

“Ouço isso sempre, dos jovens também. Eles lamentam o que falta porque ainda não têm. Outros, o que falta pelo que já se foi. Deve ser cansativo ser definido sempre pela ausência.”

Um pequeno desconcerto.

“É a falta que nos move. O que nos motiva a agir.”

“Sou movido por outras coisas.”

Outro sorriso acolhedor, no escuro.

“Você entenderá na hora certa.”

Prefiro ficar em silêncio. Alguns monarcas usam coroas grandes demais, que lhes cobrem os olhos e ouvidos. Um dia, todos nós entendemos. Escolhi não tentar explicar quem era mais velho, e quem fazia uso da própria idade.

“Espero que encontre o que procura nesta viagem.” Deseja-me. Sinto-me feliz com a melhor frase de nosso pequeno diálogo.

“Sou grato. Desejo o mesmo para sua viagem.”

Parto antes que precise ver outro sorriso melancólico que explica sua eterna insatisfação. Volto ao interior do vagão, com seus habitantes adormecidos e murmurantes. Cruzo as cabines, que não se alteraram de maneira perceptiva, exceto pela macia quietude onde antes estava o palestrante simplório. Em muito menos tempo do que levei na ida. Faço a volta. Reencontro a cabine onde eu estava. Para minha imensa surpresa, apenas um membro do casal de amantes está aqui. Enquanto me realojo no antigo lugar, não consigo evitar chamar a atenção de quem ficou. Sua expressão parece encabulada, como se este súbito vazio fosse constrangedor. Procuro transmitir tranquilidade e uma delicada indiferença, mas é uma expressão difícil de compor. A última coisa que noto é que o retorno não é esperado para tão cedo.

E, de fato, ele não ocorre até os primeiros raios de luz denunciarem a profundidade das coisas, quando chegamos.


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