A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 3
Capítulo 3: C'est la fête!




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[P.O.V. Bela]

O curto período que passaram cuidando de mim foi bem perturbador. Várias dores, mesmo que não insuportáveis, ardências e tudo mais. Tentavam não demonstrar demais para não assustar meus cuidadores-amigos, mas as duas primeiras noites foram as mais difíceis. Eu não possuía o costume de suar e mesmo com o gelo lá fora e a lareira bem controlada, era o que mais acontecia.

Madame Samovar possuía uma paciência sem tamanho comigo. Trazia refeições muito bem escolhidas visando minha rápida melhora e mesmo que as sensações fossem ruins, a aparência das pernas revelava o real funcionamento. Não sabia de onde tiravam tantas plantas diferentes que conseguiam manter-se naquele tempo, mas adorava experimentar cada uma delas. Era fácil mexer as pernas enquanto deitada, mesmo que não muito, mas era apenas colocá-las na vertical que uma dor de queimadura me subia até quase a espinha.

Lumière, em toda a sua forma brilhante de agir, reforçou o convite de andar pelo castelo, assim eu poderia passar algum tempo por fora daquelas quatro paredes. Depois de alguma insistência, aceitei. Em poucas horas eu completaria duas noites no lugar e estava de fato louca para parar de contar os anjinhos que compunham a decoração das paredes.

A poltrona que havia me acomodado na primeira noite chegou rapidamente, posicionando-se ao lado da cama para que eu pudesse passar diretamente da cama para ela. Gentil. Doeu bastante por as pernas novamente em 90°, mas diminuía rápido a sensação. Ela esperava pacientemente que eu estivesse confortável antes de retomar seu percurso para o lado de fora do quarto. O candelabro, o bule e a xícara pulavam para cima do “transporte” para me acompanharem.

Ao chegarmos ao térreo, os objetos pularam para o carrinho que vinha rápido ao encontro de Madame, dando-me mais espaço e conforto antes de começarmos o tour pelo castelo. Era incrivelmente fácil se entreter com eles. O candelabro começou a contar suas histórias de bravo e galã, tirando risinhos meus e da madame-bule que sempre o convencia a parar antes que se animasse demais. Passeávamos tranquilamente pelos corredores cheios de detalhes. Quadros e armaduras chamavam bastante a minha atenção e, vez ou outra, pedia para que parássemos para eu poder observar algo melhor ou entender do que se tratava com algumas de suas explicações.

Ficavam, em alguns momentos, espantados por eu não conhecer certos nomes, sendo que princesas são sempre muito bem instruídas. Contentavam-se com a explicação de que: de onde eu vinha, a educação era bastante diferente e com certeza eu também conhecia coisas de que eles não faziam ideia. Animaram-se, por fim, com a chance de ter alguém para ensinar e com quem aprender tanto.

“Como é seu reino, querida?” a moça perguntava interessada com o mundo afora. Sorri e pedi que parássemos em algum outro lugar para conversarmos sobre isso.

Fomos, guiados pela poltrona, para outro cantinho com lareira, dessa vez longe da porta principal, direcionado para a ala leste. Havia uma mesinha disponível, poucos quadros por perto e objetos de decoração nas paredes que eu não sabia dizer se eram animados.

Posicionados, Horloge juntou-se a nós, dessa vez com mais disposição a participar, apresentando-se mais formalmente antes de ficar ao lado de Lumière, que ficou feliz ao vê-lo não mais tão reativo. Todos estavam em cima da mesa com as atenções voltadas para mim quando finalmente comecei a contar.

“Nossas artes não são de tinta. Estragariam. Temos esculturas e joias. Meu castelo não possui escadas, pois não precisamos delas... é feito de material que lembra rocha, mas esponjoso, e aprendemos, sim, modos sociais, alguns módulos de luta, a cantar... mas não temos livros... ou móveis da mesma maneira deste castelo. Nossas histórias são passadas oralmente quando nos reunimos em certos lugares sagrados para compartilhar experiências.”

“Uau, mademoiselle! Que coisa incrível! C’est magnifique! Muito diferente. Um lugar que não possui livros!” Lumière estava de fato maravilhado com a possibilidade.

“Parece fantasia! De onde vem, menina?” Horloge dizia curioso, sempre parecendo nervoso.

“Me desculpem, mas não posso dar muitos detalhes. Quis contar o que posso para imaginarem o quanto podem ser diferentes os lugares daqui. Diferente até mesmo se tratando de um castelo encantado.” Dei uma risadinha.

“Ué, por que não pode nos contar os detalhes, Bela?” Chip perguntou um pouco decepcionado.

“Ora, pelo mesmo motivo que eu não posso saber a diferença entre vocês e os objetos que se mexem, mas não falam.”

“Viu o que fez?” Lumière queimou brevemente uma das partes de madeira do relógio que também bateu nele do modo que podia. Ri mais uma vez. Eram adoráveis.

***

Aquela noite havia sido bem mais fácil do que as outras. Dormi bem e ao tentar, consegui me levantar. O terceiro dia começava e eu estava disposta a fazer diferente. As pernas estavam bambas e a dor ainda vinha, mas consegui andar e depois de alguns minutos de prática, parecia estar realmente tudo bem para continuar.

Desci pelo mesmo caminho que sempre faziam em direção à cozinha, lugar que fiquei feliz ao encontrar. “Bela, está de pé!” Chip foi o primeiro a me notar e alguns objetos viraram-se para mim, inclusive o fogão. Este me fez tomar um susto e quase soltar um gritinho. Eu havia visto fogões, mas aquele era enorme e até um pouco assustador.

“Estou sim, hoje consegui mover-me melhor!” respondi rápido com um sorriso para que o sentimento se esvaísse com facilidade.

“Bom dia, princesa. Não abuse demais, está bem? O que quer para o café?” alguns já ficaram a postos para me servir com a fala de Samovar.

“Ah, eu gostaria de dar uma olhada! Se eu puder escolher...” perguntei insegura.

“Ora, claro, meu bem. Vejo que sua colega de quarto a arrumou muito bem.” Ela elogiou o que a senhora-armário-do-meu-quarto havia escolhido para mim. Agradeci docemente. Era um vestido cintado e bonito que dançava entre duas nuances de verde. O tecido era grosso, de inverno e, de todas as formas, eu me sentia confortável nele.

Comecei a olhar as cômodas e espaços mais refrigerados que guardavam as coisas mais frágeis. “A senhora me ensina a fazer chá? Na aldeia aprendi a fazer café porque era o que Gaston gostava e gostaria de aprender algo com a senhora.” Após pronto, com alguma ajuda do próprio fogão, derramei o conteúdo dentro do bule que se arreidou quentinho. Eu realmente estava amando o sonho que era estar ali.

Algumas torradas, geleias e queijos foram escolhidos e tudo se colocou no carrinho oficial de madame que levaria o conteúdo até onde eu escolhesse estar para comer.

O dia passou bem rápido. Com a chegada de Lumière e Horloge, as coisas se animaram ainda um pouco mais e, podendo andar, os segui para conhecer um pouco do segundo andar da habitação além do meu quarto. Fui alertada para não passar do segundo, pois era por onde o amo do local circulava. Concordei sem dificuldades.

“Seu amo é um objeto como vocês? Uma pessoa? Até tentei ouvir algum indício de família, mas não ouço outra voz que não a de vocês.” Comentei esperançosa que ao menos algo assim pudesse ser respondido.

“Nem um, nem outro, chérie. E o amo é um solteirão solitário. Mas é, sim, de carne e osso, se é isso que deseja saber.” Lumière sorriu.

“Ah, sim! Eu tinha esperanças de encontrá-lo em algum momento para agradecer tudo isso que ele permite que façam por mim.”

“Não conte com isso, princesa. O amo é bem recluso e não gosta de aparecer para hóspedes temporários. Mas transmitiremos o recado de gratidão, com certeza.” Lumière dizia junto à madame, com tranquilidade. Parecia mesmo ser assim desde sempre. Olhei para cima, ansiosa e um pouco pensativa antes de continuar a explorar.

Quando o reloginho que nos acompanhava marcou 17 horas, os objetos pararam na minha frente, animados. Também parei. “Chérie, por favor, volte aos seus aposentos e se prepare. O jantar será servido às 19 horas no salão com uma mesa grande por onde passamos hoje. Não se atrase. Temos uma surpresa para você, mademoiselle!”

Eu adorava surpresas e fiquei feliz quando todos se afastaram de mim. Confiavam que eu não desviaria o caminho e estavam certos. Demorei um pouco para me encontrar em alguns corredores, mas consegui achar o local com certa facilidade. Estava orgulhosa das minhas pernas terem passado o dia todo firmes.

Eu queria trocar de roupa, já que havia uma surpresa em jogo e Garderobe deu-me algumas opções. No fim, escolhi um vestido branco e marrom claro, as mangas eram um pouco folgadinhas e o comprimento ia até os pés. Era cintado, mas também o vesti com tranquilidade. Usei os espelhos da própria madame-armário para arrumar os cabelos em coque cheio de mechas soltas. Passei um batom nude e rímel, coisas que eu reconhecia daquelas que tinha a me oferecer. O sapatinho era preto e fechado. Um anel, brincos e um colarzinho discreto. Havia gostado. Ela ainda mais que eu.

Faltava menos de cinco minutos para as sete quando desci um pouco apressada para conseguir chegar na hora. Fui pontual. Apenas Lumière em cima da longa mesa e estranhei, mas ele sorria, beijando minha mão diversas vezes quando cheguei perto, apontando para que eu me sentasse na única cadeira grande que havia na cabeceira e o fiz.

Ele fez uma pose, apagando o foguinho da vela acima da cabeça com um “chapeuzinho” de metal e um holofote fez-se de repente em cima dele, iluminando apenas onde estava. Fiquei animada.

Ma chère mademoiselle!

C’est avec une profonde fierté et immense plaisir que nous vous invitons ce soir! Détendez-vous, ne pensez plus à rien, prenez place et laissez la haute gastronomie française vous présenter:

Votre dîner!”

Alguns pratos e talheres pularam na mesa atrás dele também fazendo pose. Tapei a boca em surpresa, logo depois dando o maior sorriso que me era possível. Era isso mesmo que ia acontecer? Era sim. Ajeitei-me na cadeira já cheia de expectativas. Lumière percebeu, começando a jogar ainda mais os seus charminhos.

C’est la fête! C’est la fête!

Service garanti impec! Mettez votre petite bavette chérie, et nous, on veille au reste!”

Às vezes passava a mão pelo rosto, encantada com o que começava a acontecer, as luzes repentinas aparecendo para fazer parte do espetáculo.

Apareciam das portas, pulando na mesa, talheres, pratos, guardanapos, pratos feitos se destampando para exibirem seu conteúdo... eu estava sem palavras com tudo aquilo. Até mesmo espanadores e taças participavam. Batia palmas quando Horloge apareceu para participar:

Tout le monde chante, tout le monde danse!

Oui, mam’selle, ça c’est la France!”

Os menores talheres contribuíam rapidamente construindo uma torre bonita e eu já mexia a parte de cima do corpo, dançando e batendo palmas o mais forte que eu podia no ritmo.

Não paravam de surgir detalhes: líquidos pulando de uma garrafa para outra, as taças fizeram-se lustre unidas e Lumière sempre à frente, comandando a apresentação. Eu não entendia 100% do que dizia a música, mas conhecia suas ideias e já estava feliz com isso. Houve um momento um pouco mais dramático e eu ri um pouco do drama teatral. Exageros de expressão.

Com a música voltando a ser animada, os estouros foram ainda mais fortes e espetaculosos. Madame Samovar entrou para fazer parte da música e fui cutucada na lateral do ombro. Era o cabideiro que ficava ao lado da porta da frente do castelo. Chamou-me para dançar. Levantei-me rápido para girar engraçadamente com ele e assim criamos nossa valsa feliz. Os objetos da mesa viraram-se para nós, continuando a apresentação. Alguns também formavam pares e eu senti que a música era levemente estendida para a curtição deste momento.

Assim que a música pareceu que daria sua última explosão, eu e meu parceiro de dança viramos para o show ainda de “mãos dadas”. Todos cantaram juntos e alto, tudo explodindo, pulando, girando e brilhando com a última longa nota. Tudo maravilhoso e até um pouco frenético. Difícil saber para onde olhar. Meus olhos brilhavam!

Sans façons, sans grimaces!

Jusqu’à ce que vous criiez grâce! Après dîner on poussera l’escarpolette! Demain vous irez mieux, mais ce soir tout est bleu, on fait la fête, oui, la fête!

Oui, la fête! On fait la fête!”

Pose final.

“Bravo! Isso foi ótimo!” Eu disse aplaudindo ao pular e batendo palmas altas que faziam minhas mãos doerem. Mereciam aplausos dignos e tentei o meu melhor, sendo apenas uma. Agradeciam, felizes, retirando-se e apenas ficaram meus amigos, os pratos que possuíam algo pronto e Chip, que posicionou-se na lateral superior direita de meu jogo-americano, madame derramando seu conteúdo nele.

“Oh, Lumière, muito obrigada!” Peguei-o na mão pela primeira vez, dando beijinhos em seu rosto, o que o fez rir daquele seu jeito, feliz. Fez-me uma reverência assim que posto à mesa novamente. Troquei ainda beijinhos e carinhos doces com Samovar e Chip, cumprimentando Horloge com apertos de mão animados. Lumière cutucou-o, como se dissesse para aprender de uma vez como se faz.

Passamos ainda um bom tempo à mesa contando histórias, comentando coisas com bastante humor. Já estávamos bem íntimos, mesmo que cada um ainda possuísse seus segredos. De repente senti um morninho no coração quando Chip resolveu fazer seu “truque” das bolhinhas no chá. Sorri, colocando-o na mesa depois de beber o restinho, um tanto pensativa. Madame percebeu:

“O que houve, meu bem?”

“Por um instante fiquei triste ao saber que terei que ir embora. Sabe? Já consigo andar e a neve está começando a ceder... e vou ter que voltar a procurar um lugar para ficar. Me sinto feliz aqui. É fácil esquecer a loucura que está a minha vida do lado de dentro do castelo. Sentirei muitas saudades de vocês.” Emocionei-me.

“Oh, chérie, não pretende mesmo voltar para casa?” o candelabro perguntou, preocupado.

“Não. Quando eu sair daqui, pretendo ir para além do castelo e procurar um lugar para mim. Um lugar mais amplo, coisas diferentes para fazer... e o que mais desejo é ter alguém para me entender...” me abri um pouco e o silêncio me trouxe as condolências.

“Tudo há de acabar bem, querida, vai ver!” madame sorriu a mim de maneira feliz e amiga. Sorri a ela, mesmo desesperançosa.

“Acha que poderei vir visitar vocês?” perguntei triste, segurando a “mão” de Lumière. Eles se olharam.

“Depende da vontade da floresta, princesa.” Lumière disse.

“... da floresta? Por causa dos lobos?” franzi o cenho.

“É! Por causa dos lobos! Dos lobos! E minha nossa! Olha a hora! Achoque precisamos todos voltar aos nossos aposentos!” Horloge não sabia mesmo esconder os indícios de segredo daquele lugar, permitindo-me sempre cogitar possibilidades.

Cheguei ao meu quarto ainda dançando e cantarolando a música que ouvira. “E então? Como foi?” escutei madame de Garderobe perguntar. Ora, ora, então ela sabia dos planos dos outros! Queria detalhes.

“Foi maravilhoso! Nem sei por onde começar a contar!” fiz algum esforço para não me esquecer de nada. Ela parecia bastante animada, dizendo conseguir imaginar. Tentei reproduzir um pouco do ritmo que ouvira e ela tentava dançar comigo à sua maneira. Nos divertimos juntas.

“Algumas das coisas que eles serviram eu ainda não conhecia. Algo chamado pudim... maravilhoso! Risoto que possuía alguma carne, algumas frutas e queijos muito diferentes... e um ensopado impressionante! Eu comi muito bem. Fazia tempo que eu não me sentia à vontade para comer em boa quantidade. Incrível como vocês são maravilhosos!”

Ela sorriu e a conversa continuou mais um pouco guiada por suas lembranças. Aconselhou-me logo a dormir, já que o dia havia sido bastante longo para pernas que ainda se recuperavam. Concordei. Apenas torci naquele momento para que a noite me ajudasse. Agradeci a camisola que me foi estendida e fui ao banho, que naquele momento parecia ser tudo o que eu precisava.

Deitei-me, sentindo as pernas tremerem um pouco, mas nada comparado aos dias anteriores. Estiquei-me algumas vezes, voltando a fitar aquele teto cheio de anjinhos.

O que exatamente acontecia comigo naquele lugar?

Era grata, mas queria saber mais, ficar mais. Juntava as peças daquilo que eu via e ouvia, tentando chegar a algumas conclusões... procurando pistas que eu pudesse ter deixado escapar. Teorias loucas começaram a surgir em minha mente, mas o que seria louco frente a tudo aquilo que eu vivenciava? Fechei os olhos sem que pudesse perceber, apenas com o pedido sincero de não acordar daquele sonho... caso fosse um.

***

[P.O.V. Fera]

Senti uma agitação no Castelo desde o fim da tarde; servos corriam, limpavam-se, pareciam ansiosos. Quando passei brevemente perto da cozinha, ouvi trechos de música sendo cantada enquanto preparavam a comida... e aquilo se parecia com algo que suspeitei ser um ensaio. Confuso, entrei na copa, e todos que ali estavam congelaram em seus lugares, como crianças que eu flagrasse em uma travessura.

“Posso saber do que se trata?” perguntei diante de todos aqueles olhares preocupados, com um tom curioso e sem recriminação. Foi Chef Bouche, sempre mais corajoso e capaz de me enfrentar, quem respondeu por todos.

“Estamos preparando o jantar da nossa convidada.” Disse, não sem um pouco de desafio na voz.

“E todos vocês participarão?” perguntei novamente, indicando com um gesto da pata todos que ali estavam, em movimento. “Quanta louça ela vai usar sem uma única refeição?”

“Lumière e Samovar quiseram preparar algum entretenimento para o jantar, já que a moça está presa aqui e não tem muitas provas de hospitalidade do anfitrião.” Foi a réplica.

Senti a alfinetada, e fui incapaz de não reagir à provocação. “Ela não está presa. Apenas aguarda a chance e as condições para partir. Sabemos muito bem o que significa estar preso.” Comentei com irritação e amargura. “E parece que não lhe falta hospitalidade.”

“O senhor nos proíbe?” veio a questão, também desafiadora.

“Não. Divirtam-se.” Virei-me para sair. A voz de Chef Bouche ainda me alcançou antes que eu me afastasse.

“O jantar será servido às 19 horas. O senhor está convidado.”

Rosnei qualquer coisa em resposta. Não gostei da sua ironia, e tampouco era a primeira vez que se comportava daquela maneira. Passei a pata na cabeça sentindo a raiva borbulhar, e afastei-me para a biblioteca, que abri com um empurrão. O ambiente escuro e silencioso parecia pouco convidativo e sequer me animei a providenciar alguma luz para que pudesse ler. Pensava ainda na minha dificuldade de lidar com todos os membros do corpo de serviço, mesmo depois de tantos anos; também naquela jovem que estava mudando tanto o comportamento e a rotina do lugar. Nenhum outro visitante recebeu tanta atenção e não compreendia o motivo. Procurando maneiras de investigar sem precisar confrontá-la diretamente, decidir ir ao seu quarto, enquanto estivesse no jantar; talvez lá tivesse qualquer pista de sua pessoa, além de ter mais alguém a quem interrogar.

Controlei o tempo pelo grande relógio da biblioteca, que conseguia ver apesar da penumbra. Saí pouco antes da hora mencionada, avançando em silêncio em direção ao quarto de hóspedes. O som do roçar das saias pelas escadas confirmou que o momento era adequado. Logo, estava diante da porta, que abri sem cerimônia.

“Amo!” Madame de Garderobe sobressaltou-se com minha entrada súbita. De fato, arrependi-me um pouco com o gesto abrupto. “Quase nunca o vejo aqui!”

“É verdade.” Concordei. Aquele era um cômodo que eu não frequentava, o que limitava nossa interação a quase zero.

“O que o traz ao quarto de hóspedes principal?”

“Gostaria de... saber mais sobre essa moça.” Respondi. Passava os olhos ao redor, porém não tinha muitos vestígios para me informar. A jovem não deixava visíveis quaisquer posses que tivesse trazido, e o quarto estava quase inalterado, exceto pelos sinais claros de uso da cama, pela limpeza especial feita pela equipe de Plumette, e pelo perfume de banhos femininos que pairava no ar. Junto a este, havia outro cheiro que não conseguia identificar e me fazia pensar na brisa marinha.

“Senhor, não é muito galante querer saber da intimidade de uma donzela.” Garderobe disse, na defensiva, com extrema delicadeza.

“Quero saber por que ela conquistou a todos tão facilmente, a ponto de ter um passeio turístico e um jantar festivo em meia semana.” Retruquei. Enquanto falava, notei que poderia soar como se estivesse enciumado. Certamente nunca havia ganhado nada daquilo, e ninguém sequer teria sugerido, considerando minha situação e minha personalidade. Haveria ainda algum ciúme ou mágoa em mim?

“Bom, amo.” Garderobe suavizou a expressão em seu grande rosto de madeira. Ela era uma dos pouquíssimos habitantes que eu podia encarar sem olhar para baixo. “... a donzela chegou com uma história bem triste e que parece toda verdadeira, tocando a todos nós. É natural querermos confortá-la. Além disso, nunca lidamos com uma pessoa que nos aceitasse tão facilmente como somos, em os tratasse desta forma amigável. Ela conversa bastante, ri conosco, é sempre tão gentil! Nunca parece assustada. Talvez o senhor pudesse começar a pensar em falar com ela...”

“Não diga bobagens.”

Se ela tivesse ombros, Garderobe os teria erguido.

“Esta festinha de hoje à noite não é apenas para ela, amo. É também por nós. Queríamos esta alegria, algo que em geral não temos. Foi tão bom escolher suas roupas! Há quanto tempo não ajudava uma mulher a se vestir?! Vê-la experimentar os vestidos, qua o corte e ajuste perfeitos, se queria algum xale para proteger os ombros da noite fria, quais cores combinam com os cabelos negros e aqueles olhos claros! Ah! Pena que não precisasse de um chapéu, e ela não tenha aceitado todas as joias que sugeri!” consegui sentir o entusiasmo de suas palavras e o quanto se apegava a essa sensação de ter uma nova amiga. “Já que eu jamais poderia participar de algo assim, ao menos tive o prazer de prepará-la, e adoraria repeti-lo!”

Eu não tinha nada de útil a dizer diante daquela confissão. “Também nunca poderei...” comentei, tolamente, para não prolongar o silêncio. Achava que compartilhávamos daquele desalento.

“Como assim o senhor não pode?! Bastaria pedir! E esta noite mesmo, se não passar pelas portas do salão, poderá ver e ouvir tudo o que estão fazendo! Aposto que mal começaram...”

Fiquei um momento surpreso, sem entender a dimensão de sua revolta. Em geral, teria achado aquelas palavras abusadas. No entanto, na minha mente que lutava com a curiosidade e com as poucas peças disponíveis do quebra-cabeça, a sugestão não caiu tão mal. Era um meio seguro de observar, com distração suficiente para que eu não chamasse atenção.

Quase automaticamente fui saindo do quarto, rumando para o salão de jantar até dele me aproximar. Ouvindo sinais de música, vi-me correndo em direção às grandes e decoradas portas. Fiquei de pé e as entreabri...

O espetáculo diante de meus olhos cortou meu fôlego. Vi os servos da casa e objetos encantados cantando, dançando, fazendo acrobacias e coreografias intrincadas e um tanto perigosas para sua frágil constituição. Lumière encabeçava com uma canção claramente de sua autoria e Madame Samovar não hesitou em participar. Nunca soube quão graciosas eram suas vozes quando davam tudo de si... eu apenas os ouvia cantando baixinho, enquanto trabalhavam sozinhos, ou quando Madame cantava para o filho.

Aquilo era diferente. Era grandioso e, para seu tamanho diminuto, a longa mesa era um palco excepcional. Nunca vi um grupo tão grande e tão organizado de objetos, o que significava que tampouco conhecia os limites dos poderes do Castelo. Eu estava absorvido pelas visões, sons e cheiros do jantar, colado à estreita passagem que abri entre as portas.

Vi quando Chevet aproximou-se da poltrona voltada de costas para mim e convidou a hóspede a dançar. Eu a vi pela primeira vez. A jovem se ergueu, divertindo-se muito, encontrado o passo para dançar com o cabideiro sem agredir as pernas que se recuperavam. Vi seu rosto sorridente mesmo através das luzes instáveis, emoldurado pelos cabelos negros presos em coque, assim como as belas formas dentro do vestido que rodopiava. Não era tão pequena e frágil como eu a imaginara; parecia alguém capaz de suportar as adversidades que Garderobe insinuou e continuar sorrindo. Capaz de acreditar em um Castelo mágico sem se sentir louca ou se apavorar. Forte e gentil.

E não era à toa que a chamavam de Bela.

Temi que, se a encarasse por mais tempo, ela pudesse sentir meu olhar e adivinhar minha presença, mas seus gestos graciosos com frequência me impediam de focar em outras coisas. Com esforço, voltei minha atenção para o espetáculo, que se aproximava de seu “grand finale”, tão estupendo quanto seria de esperar. Estava profundamente tocado, um tanto boquiaberto, processando o que testemunhei aos poucos.

A maioria dos objetos se retirou com o fim da música, a equipe fazendo o mesmo depois de um agradecimento, restando apenas o jantar e os que já eram mais chegados para acompanhar a hóspede. A curiosidade me deixou pregado no lugar. Assim, acabei acompanhando o diálogo que se seguiu junto à refeição.

Perdi a noção do tempo assistindo àquela cena, como se dela participasse, e nem me dei conta quando sentei-me no chão, sempre procurando uma boa visão pela abertura. Testemunhei os assuntos se sucederem, vagamente consciente de que aquele era um jantar feliz e que aquele grupo formava algo próximo a uma família. A jovem, em tão pouco tempo, soube reconhecer isso.

Era algo do qual queria participar, sem saber como.

A noite já avançara bem quando fui surpreendido pela confissão deque ela gostaria de ficar. Era uma fala que eu mal podia entender. Todos nós queríamos sair. Ter uma vida que não fosse restrita àquele lugar, por mais mágico que fosse. Então vinha alguém que encontrava ali um pouso, um refúgio, como se pudesse fazer daquele seu Paraíso. E pelas respostas, vi o quanto os demais queriam o mesmo. Seus olhares revelavam seus corações. Como Garderobe, cada um aproveitava a felicidade que esta Bela lhes proporcionava, este sopro de ar fresco do mundo de fora, o pretexto para agir diferente e trazer brilho à vida. Como parecia fácil!

Enquanto me perguntava como conseguiam fazer isso, nascia em mim a ideia de que este Paraíso só seria possível porque eu não fazia parte dele...

Horloge, sempre o mais preocupado em zelar pelos segredos do Castelo, deu o sinal de que não deveriam se prolongar mais. Já se despediam, e foi com um sobressalto que saí do caminho das portas, me escondendo junto às estátuas menos discretamente do que de costume. Felizmente, a moça estava ainda muito envolvida com os eventos da noite para notar, enquanto a seguia novamente com o olhar. Horloge e Madame Samovar foram mais atentos.

“Mestre?” o relógio indagou, vendo minha silhueta na escuridão. “Estava... nos observando?” perguntou, inseguro.

“Estava observando Bela?” Mme. Samovar foi mais precisa, com um sorriso discreto. “O quanto acompanhou?”

“Alguma coisa...” respondi, distraído, antes de voltar minha atenção completa a eles. “O que fizeram foi... formidável.”

“Oh, muito obrigado, patrão! Ficamos muito contentes!” Horloge sorriu, juntando as “mãozinhas”. Não recebiam de mim tantos elogios, e eu nem mesmo sabia quais palavras escolher. Imagino que adivinhassem isso.

“Realmente incrível. Eu não sabia destes... talentos. Parabéns.”

“Muito grata.” Madame inclinou-se de leve, como em uma reverência. Talvez sabendo que eu não tinha ideia do que fazer ou dizer a seguir, fez o convite: “Ainda temos muita coisa. O senhor sabe, mesmo sendo modestos, nos empolgamos neste jantar para uma única pessoa. Estaria servido?”

Fiz que sim com a cabeça e acompanhei-os porta adentro. Os pratos, que já se retiravam com os alimentos, hesitaram quando apareci, e retornaram prontamente a um comando da senhora bule, assim como um conjunto de louça limpa chegou logo até a ponta da mesa que eu viria a ocupar. Sentei-me largado na grande cadeira que Bela acabara de deixar, e congelei, emocionado.

“O senhor está bem?” Horloge não conseguiu se conter a certa altura, vendo minha expressão, meu corpo imóvel e meus olhos úmidos.

“Eu nunca... sentei em uma cadeira quente porque alguém esteve nela.” Murmurei, incapaz de processar facilmente a informação. Samovar foi quem melhor compreendeu minha situação.

“Aproveite o momento, mas não deixe o jantar esfriar.” Disse, com doçura.

Aos poucos fui me servindo, comendo como estava acostumado; o ensopado direto do prato, com certos utensílios de servir no lugar dos talheres, mordendo o queijo em grandes pedaços. Fui sendo distraído do choque enquanto comia melhor do que em todos os últimos dias.

“Cheguei a ouvir que ela gostaria de ficar.” Falei de repente, depois de engolir um naco de carne. Olharam-se me expectativa. “Não pretendo expulsá-la, mas não sei como isso funcionaria. Sabemos que se... quando... ela sair, provavelmente nunca encontrará o caminho de volta.”

“Talvez esse não seja o momento ideal para refletir sobre esse tipo de providência.” Mme. Samovar sugeriu. “Vamos deixar o tempo soltar algumas pistas.”

Consenti, ainda confuso. Resolvi atacar o pudim. Consegui acabar com ele.

“Dê os parabéns ao Chef Bouche e aos outros pelo que fizeram hoje.” Disse, já me levantando para voltar aos meus aposentos. Fizeram novas mesuras e me desejaram boa noite, trocando olhares e sorrisos cúmplices às minhas costas.

***

Garderobe compartilhou facilmente do entusiasmo de Bela quando esta chegou maravilhada com as coisas que vira, contando tudo o melhor que podia. Com sua imaginação romântica, visualizava acena com tanta clareza e beleza que se sentia lá, seus devaneios não deixando nada a desejar ao evento real. Quando “dançaram”, balançou até sentir a estrutura de madeira estalar.

“Oh ho ho! Querida, acho que baguncei umas três gavetas! Pena que eu não esteja tão boa deste pé!” disse, bem humorada, indicando um deles. “Que noite maravilhosa!”.

A bela dama armário ouviu os elogios com carinho e satisfação, movendo as portas. “Imagine, mocinha! Foi um enorme prazer. Você nem imagina o quanto nos faz bem, Ah, sinto tanta falta dessas coisas! Só precisava passar pelas portas e conseguir vencer as escadas...”

Sentindo que poderia falar demais, pediu os últimos detalhes e depois sugeriu que a moça repousasse para não por em risco sua recuperação. Ofereceu a camisola perfumada com muito afeto, acompanhando os preparativos para o sono de Bela.

“Boa noite, querida. Que os dias continuem fazendo você sorrir e seus olhos brilharem.” Era seu desejo sincero. Já em seu coração pairava também a expectativa do que viria a seguir.


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