A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 14
Capítulo 12: Desabrochar




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[P.O.V. Fera]

Não imaginava que os preparativos poderiam ir tão longe. Passar horas na cozinha combinando detalhes, vendo pratos e ingredientes, decoração... No começo, achei que estavam indo muito longe para um evento que se daria na própria residência dos envolvidos, sem ninguém mais para impressionar – guardei, claro, minha opinião para mim mesmo, porque não queria desmotivar ou estragar a ocasião para qualquer deles.

Aos poucos, fui entendendo. Queriam impressionar, sim, os colegas, cada um em sua área; impressionar Bela e mesmo a mim, quando perceberam que poderiam conseguir; impressionar a si mesmos, pois poderiam superar as próprias expectativas. Entendi que preparar lhes dava tanto prazer, ou mais, do que a própria festa; que aquele era mais um motivo para ser feliz, e que uma saída da rotina era razão suficiente. Era o coração que decidia, e não a lógica.

Fui tentando participar, sem jeito, no começo sem conseguir vibrar tanto quanto os demais, mas me esforçando com sinceridade. Fui consultado em uma série de coisas (que nem sempre sabia decidir, e perguntava a Bela, com frequência) e indagava no que poderia ajudar. Logo fui expulso da cozinha, onde meus pelos eram inimigos da perfeição.

Acabei encarregado de providenciar alguns ingredientes, como trazer sacos de farinha ou açúcar, e caçar carne fresca. Demorei mais do que de hábito, tentando escolher a presa perfeita e insistindo nela até conseguir. Depois fui usado na decoração e na arrumação. Notei que até Chef Bouche estava mais comunicativo e não procurava disfarçar a expectativa depois de algumas horas. As pausas eram para descansar e comer.

No próprio dia, meu principal trabalho foi transportar alguns dos convidados até o local da festa. Cadenza, com suas pernas longas, precisava apenas de algum apoio nas escadas. Garderobe, por outro lado, precisava de bastante ajuda: foi esvaziada por outras servas do Castelo, e então sustentei mais da metade de seu peso enquanto descíamos lentamente.

Pela primeira vez, tirei roupas mais vistosas do armário, prontas há algum tempo, nunca usadas: uma camisa branca com botões duplos e adereços dourados e negros, com calças negras de detalhes dourados formando o conjunto. Não consegui usar a capa que acompanhava (senti-me tolo com ela), mas gostei bastante do lenço ao redor do pescoço, sobre a gola, quando aprendi a amarrá-lo. Até encurtei um pouco os pelos do maxilar – minha “barba” – para que ficasse mais visível. Prendi um broche simples com uma flor-de-lis dourada no peito, já que não havia adereços que me coubessem. Ou estaria enganado? Descobri um bracelete pequeno que dava a volta no meu chifre. E estiquei um olho comprido para as joias antigas, organizadas em caixas tão bonitas de madeira, marfim e madrepérola, onde ficavam os brincos.

Bati na porta do quarto de Bela. “Não quero atrapalhar. Se puder me ajudar com uma coisa, acho que será bem rápido. Estou aqui com uma agulha e... queria que furasse as minhas orelhas.” Pedi, um pouco sem graça, um tanto indeciso.

***

[P.O.V. Bela]

Já em meu quarto, olhava cada peça retirada de Madame de Garderobe, criando combinações e mudando de vestido algumas vezes antes de me decidir. Olhava ilustrações de penteados que recolhia na biblioteca, esboços e desenhos da moda, acabando por me divertir com alguns. Como sempre, escolheria algo um tanto mais simples.

Minha ajuda havia sido apenas com certas decorações, mesmo que não muitas e, quando me dei conta, estava lustrando Lumière e Horloge. As risadas pelo castelo eram até mais altas do que o normal.

Já suspirava em frente ao espelho, olhando uma das últimas combinações escolhidas, gostando um pouco mais, quando ouvi a batida na porta. Disse que entrasse, ainda olhando o resultado, pondo os brincos. Voltei-me ao ouvir sua voz com uma expressão doce.

“Claro...” a voz saiu meiga e sentei-me à cama, esperando que chegasse perto. Pedi que se sentasse e peguei a agulha com alguma preocupação, mas não quis demonstrar muito. “Você é muito grande... tenho que ficar de pé.” Disse, rindo, parando à sua frente e esperei que virasse o rosto. Furei as duas rápido, colocando brincos pequenos para manter o furo e limpando imediatamente. Olhei para os dois, averiguando que estavam alinhados.

“Está ótimo... o que vai usar? Gostei da roupa...” sorri a ele mais uma vez. “Vou aproveitar que está aqui... estou em dúvida entre estes dois. O que acha?”

Mostrei a vestimenta que usava, sem alças ou mangas e até os pés, em duas peças de tons diferentes de lilás, e a outra opção sobre a cama, azul marinho com manguinhas bufantes de princesa. O cabelo já estava arrumado com algumas partes presas.

“Eu não estava querendo usar luvas longas, mas com esse vestido mais aberto em cima... até que fica bonito. O que prefere?”

[P.O.V. Fera]

Agradeci enquanto entrava, e notei o quanto já estava bonita, resmungando alguns elogios sem saber se seriam ouvidos. Mesmo sentado a seu lado, não conseguia encará-la muito tempo... percebendo que havia algo diferente em minha maneira de olhá-la.

Mantive os olhos baixos enquanto segurava minhas orelhas com tanta delicadeza que fazia cócegas. Seu trabalho foi rápido como imaginei que seria, preciso, e quase não senti dor alguma. Quando terminou, senti com os dedos os brincos no lugar, tão pequeninos que quase sumiam nos pelos.

“Ainda vou escolher quais usar... segui essa ideia em um impulso. Parecia... familiar. Vou procurar algo com um ganho ou uma argola grande. Nunca vou acertar o fecho de agulhas tão pequenas com esses dedos...” abri as patas com garras, que não conseguiriam ser tão precisas, até com certo humor. Ergui a cabeça muito rapidamente, baixando as orelhas com o elogio. “Que bom que gostou!...”

Seu cheiro próximo e seu toque tinham mexido comigo, e precisei disfarçar o melhor que pude quando fui consultado sobre as roupas, desta vez obrigado a olhá-la por mais tempo. Estava realmente linda, e acho que minha expressão boba denunciava minha opinião. Mesmo com esforço, não consegui evitar passar os olhos por sua silhueta, me demorando um pouco mais no pescoço e no colo descoberto.

“Por mais que esse vestido azul seja bonito...” pousei a pata na peça sobre a cama “...acho difícil ficar mais bonito do que este que está usando...” Fiquei encabulado, com as orelhas ardendo de tão vermelhas. “Não precisa usar luvas longas se não quiser... elas são mais comuns em bailes e festas sérias. Mas pode querer proteger as costas se o vento da noite incomodar. Talvez uma estola leve e meio transparente.” Quase me mordi pela sugestão intrometida.

Levantei-me da cama. “Muito obrigado pela ajuda.” Peguei de novo a agulha de osso, pegando em sua mão com meus dedos. Queria dizer mais alguma coisa, talvez outro elogio, mas consegui apenas sorrir. Somente meus olhos fizeram um último esforço para dizer algo de bonito ou agradável antes que eu saísse pela porta, voltando a meus aposentos com o coração acelerado.

[P.O.V. Bela]

Não consegui esconder para mim mesma a alegria de claramente estar começando a mexer com ele. Sorria de leve enquanto não me olhava, “Bem... há ganchos e argolas sem enfeites aqui, se precisar, mesmo que imagine que também tenha. É só dizer.” Procurei ser solícita, como sempre. “Se... suas patas foram grandes demais mesmo para os enfeites maiores, eu posso sempre colocar. Será um prazer.”

Seu modo sem jeito de me olhar provocou um sorriso, mesmo que ainda de princesa. Estava feliz. Assenti quando falou sobre as luvas serem mais formais, já que eu realmente não sabia disso. Optei por não usá-las, no fim. Abri um pouco mais os lábios e baixei o rosto ao comentar sobre um tecido transparente. Assenti, um pouco corada.

Quando pegou minha mão, toquei-o também com a outra, retribuindo seu olhar com um carinho doce e especial. Sabia que havia gratidão dentro de si e, talvez, se não estivesse enganada, certo amor. Deixei-o ir demorando um pouco a soltar-lhe a mão com as duas deslizando, voltando-me ao banheiro para acabar os últimos detalhes e digerir os minutos que acabavam de acontecer. Fitei feliz a pia por algum tempo, permitindo-me não voltar à realidade por um tempo. Por último, peguei a echarpe que mais poderia combinar, quase branca, porém transparente e com um pouco de brilho.

Desci para o salão onde tudo aconteceria.

Vários já se encontravam posicionados, conversando animados quando cheguei. Saudaram-me cheios de elogios e eu já podia ver o cravo treinando suas melodias e a madame-armário de meu quarto acompanhando-o com a voz mais doce que possuía.

Mademoiselle! Como está magnífica!” Lumière, como sempre, era o primeiro a chegar perto, depois de todos os cumprimentos. Sentei-me à mesa junto aos músicos e a ele, a senhora-bule também chegando. Já me servi de chá, animada com a alegria geral, esperando que o senhor do castelo chegasse. Roubei um bolinho.

***

[P.O.V. Fera]

Quando cheguei a meus aposentos, ainda ouvia em minha mente suas palavras de gentileza, mesmo que na hora tivesse apenas assentido com a cabeça, agradecendo. Ela se dispunha a me tocar sempre que eu quisesse e precisasse...

Por mais difícil que fosse acreditar, eu não poderia ser tão... – como ela dizia? – incrédulo. Seus gestos, suas palavras, a maneira como confiava em mim e estava à vontade na minha presença... Tudo aquilo indicava afeto, e mesmo algo mais. Algo mais que também eu começava a sentir.

Assim como não conseguia mentir, também tinha facilidade em ver as ações e palavras sinceras. Mas como? Por quê? Gostar assim de mim? Andei um pouco a esmo pelo quarto. Parei diante do novo espelho colocado lá há pouco tempo, uma vez que quebrei os anteriores mais de uma vez ao longo dos anos; os servos deviam achar que já era seguro e que, com os novos hábitos que vinha adquirindo, eu até precisaria dele.

Minha insegurança viu um monstro que tentava se fantasiar de civilizado, uma causa perdida. Procurei me forçar a ver outra coisa: lembrar que já não usava roupas rasgadas há um bom tempo e que as peças novas tinham um tamanho adequado; que estava mais limpo, sem nós nos pelos e cabelos que, mesmo ainda muito longos, não pareciam tão descuidados.

Não, eu não conseguiria passar por um nobre dos livros que li, mas minha natureza também não era a de um monstro. Eu tinha consciência, era sensível. Meu lugar estava entre aquelas duas posições, ao menos até que minha forma anterior se revelasse.

Consertei a postura, ficando tão ereto quanto podia, e encarei meus próprios olhos por um longo momento. Então, desci o corpo e fiquei de quatro, mesmo todo vestido, mas com a cabeça bem erguida, e me encarei novamente. Os “dois” eram “eu”, pó podiam ser, segundo minha natureza e minha dignidade.

Ergui-me de novo, peguei dois brincos lisos e longos com gotas na ponta, levando alguns minutos para conseguir prendê-los. Depois, atei os cabelos na parte de cima e de fora, o que deixava as joias mais visíveis, com a parte de baixo solta. Desci para o salão fingindo muito mais confiança do que sentia.

Fiquei feliz de ver os servos arrumados: metais e louça impecavelmente brilhantes, madeira bem lustrada, até algumas joias e lenços. Vários usaram flores, como Garderobe, que parecia até mesmo mais leve. Muitos olhares pousaram sobre mim, o que me deixou um tanto constrangido.

“Amo, o senhor está... está...” Horloge hesitava, surpreso.

“Incrível!” Plumette completou, mais espontânea. Outros concordaram, comemorando que eu estivesse festivo pela primeira vez. Minha cauda se colou junto ao corpo enquanto agradecia. Os responsáveis pela costura foram felicitados pelo bom trabalho, inclusive no tamanho.

Com a minha chegada, a música efetivamente começou; Cadenza adorava exibir seu repertório, mas notei que sua satisfação tinha algo a mais: Garderobe acompanhava-o cantando com uma voz esplêndida, que nunca ouvira. Separados desde a maldição, como teriam podido desfrutar de canções juntos? Uma porção de congratulações e vivas se elevou do grupo, tão feliz com o evento. Ainda achei que flagrava alguns olhares especiais entre aqueles dois...

Logo localizei Bela, que parecia ainda mais bonita depois dos mínimos minutos que passáramos separados. Ela seguira meus conselhos... o que me deixou satisfeito de um jeito confuso. Fiquei acompanhando com os olhos aquela dança leve, os movimentos suaves de seu vestido enquanto circulava antes de nos falarmos; senti vontade de estar no lugar de Chevet. Quando terminaram, peguei rapidamente algo para comer e beber, para parecer que já estava me integrando à festa e não apenas a olhá-los, com os olhos compridos...

“Sei que... não é sua primeira festa na superfície.” Comentei, pela primeira vez mencionando que sabia da bela apresentação que os servos haviam-lhe feito na mesa de jantar. “Mas, assim mesmo, acho que essa tem algo de especial. Espero que me ensine... sobre como me comportar.” Falei, entre a brincadeira e a sinceridade.

***

[P.O.V. Bela]

 Curtia cada segundo, já erguendo um pouco os braços para acompanhar o som incrível que os dois maiores objetos faziam juntos. Às vezes, fechava os olhos, quando era mantido um cantar quase angelical.

Ergui-me mais uma vez quando Chevet me pediu a mão. Com um sorriso quase cúmplice, aceitei. Adorava me girar e confesso que sempre me divertia bastante. Não perdiam mesmo tempo quando seu desejo era entreter.

A chegada de Fera causou uma parada geral e fiquei feliz com a empolgação e os comentários... Estava realmente bem diferente daquilo que poderiam ter visto durante toda a sua convivência.

Acabei minha dança animada com Chevet e fizemos uma divertida reverência antes de a música mudar e eu pegar um copo de suco fresco, também me aproximando do dono do castelo enquanto sorria para a dança de Lumière e Plumette.

Falou baixo e me aproveitei para avançar um passo e ficar mais próxima enquanto ouvia. Acabei por dar uma risadinha com sua preocupação. Peguei sua mão, levando-o para onde estava sentada, no meio de todos, ficando ao seu lado ainda com os dedos nos seus antes de falar o mais próximo possível de sua orelha, quando se abaixou:

“Tudo o que eu gosto de festas formais são as vestimentas. Não dançaria nunca do jeito que me viu agora em algo real...” revirei os olhos com humor. “É o que mais gosto daqui... Há classe, mas com diversão e liberdade. Comporte-se sendo você mesmo! Se conhece descontraído? Se não, é hora de descobrir...” apertei carinhosa um dos dedos grossos com uma expressão animada e bondosa.

Os músicos entreolharam-se parecendo possuir a mesma ideia e uma música nova começar bem devagar... parecia didática. Sorri, percebendo, e ergui-me novamente com Chevet posicionado ao meu lado.

“Vamos quebrar a vergonha com uma liçãozinha...” ri e uni o braço ao do cabideiro após a reverência. Cada passo novo que dava possuía uma pequena observação. “Mesmo as princesas do mar aprendem a dançar como corte porque nunca se sabe... mas veja como nem parece dança. É bem duro...” Chevet pareceu rir com meu gesto, mas concordava.

“Quer tentar?” estendi as mãos a ele.

[P.O.V. Fera]

Abaixei o corpo e ergui a orelha para Bela enquanto respondia ao meu pedido. “Acho que não sei o que é estar descontraído em público.” Comentei, pensando em voz alta. Mas não parecia tão difícil, já que ninguém prestava tanta atenção nos demais, exceto para aqueles que estivessem dançando. Plumette e Lumière atraíram alguns assovios enquanto rodopiavam, e também sorri ao vê-los. Aquele era um amor antigo, sincero, divertido e agitado, que facilmente despertava carinho, mesmo que há muito tempo não prestasse atenção suficiente para sentir aquele sentimento preencher meu peito.

Senti a mudança na música quando Chevet se reaproximou, e a nova dança começou, instrutiva, sobre como um baile realmente formal acontecia. Fiquei observando os passos atentamente, e não parecia mesmo tão difícil. Assim mesmo fiquei nervoso com o convite.

“Sim.” Falei rápido, pondo-me de pé, decidido e arrependido.

Fiz a reverência e dei-lhe o braço. Preocupava-me em não pisar em seus pés ou seu vestido com minhas patas, o que não ficou tão difícil depois de um tempo. Repetíamos várias vezes o mesmo passo até que eu estivesse mais confortável com ele, e percebi que a música ficou ainda um pouco mais lenta. Ainda me enganei em alguns movimentos e demorei um pouco mais a saber o que fazer com a cauda enquanto circulava.

Percebi logo que só estava encabulado por minha própria preocupação. Mesmo que quase todos nos observassem, não vi nenhum olhar de julgamento ou reprovação; Bela, mais que todos, sorria e me incentivava. Fui parando de me desculpar a cada engano. Depois de um tempo, conseguimos uma música inteira usando todos os passos que me ensinou, quase sem erros, e fomos aplaudidos com entusiasmo.

“Não é para tudo isso...” comentei, divertido.

Deixei que outros dançarinos mais experientes continuassem com danças mais elaboradas e com músicas mais vivas novamente; peguei algo para beber, notando que transpirava, mais pela concentração do que pelo esforço de dançar. Também peguei algo mais para comer, cumprimentando Chef Bouche alto o bastante para que me ouvisse da cozinha, cuja porta foi mantida aberta para a livre circulação.

“Obrigado pela chance. E pela paciência.” Disse a Bela. “Espero que... aceite me ensinar... outras vezes.” Completei, fazendo uma expressão esperançosa. Eu tinha gostado de “dançar”, e provavelmente pediria de novo antes do final da festa. Acabei pegando meu primeiro cálice de vinho.

[P.O.V. Bela]

Dei um passo para trás em reflexo quando sua determinação saltou-lhe à frente. Apenas sorri para não desmotivá-lo com alguma risadinha. Em pouco tempo conseguíamos dançar tranquilamente... principalmente depois que ele parou de se preocupar em me pedir desculpas a cada segundo.

“É para tudo isso, sim...” brinquei ao bater palmas junto com os outros, sabendo que não era exatamente a dança que estavam comemorando. Abracei-o animada antes de sentarmos novamente após pelo menos duas melodias.

Sabia que meu parceiro por mais tempo naquela noite ainda seria Chevet, adorando tudo, cantarolando para Lumière e sua parceira antes de ouvi-lo falar.

“Quando quiser... ainda hoje!” comentei, segurando sua pata com entusiasmo antes de me pronunciar, sentando-me na mesa em frente a todos. Entenderam minha deixa e percebi que o cravo já se preparava para chamar Madame de Garderobe para dançar, da maneira que lhes fosse possível.

Lune... qui là-haut s’allume...

Sur... les toits de Paris !

Vois... comme un homme peut souffrir d’amour.

Bel... astre solitaire...

Alguns me olharam surpresos, mas sorridentes com a escolha.

Engrenei algumas melodias com o ritmo tranquilo... permitindo algumas valsas, cutucando Fera com a ponta do pé vez ou outra por implicância e forma de chamar sua atenção.

[P.O.V. Fera]

Dançar tinha me dado uma curiosa satisfação, e já confabulava praticar um pouco para não estar tão despreparado para a próxima vez, enquanto a festa continuava e eu bebia meu vinho. Logo estava batendo palmas para aqueles que continuavam dançando, rindo um pouco mais, enquanto mais de uma garrafa vazia era recolhida.

Quando estava para chamar Bela novamente, todos se aprumaram para escutá-la, e fiz como os demais. Fiquei surpreso e extasiado com a escolha da música, que conhecia e tanto amava, da ópera que sabia de cor e sonhava em ver. Ouvi-la era uma experiência indescritível... e já não sabia o que fazer com o que sentia no peito.

A curta música terminou mais rápido do que eu estava preparado e não consegui voltar a mim mesmo imediatamente. Os aplausos dos outros foram quase chocantes... mas pelo menos me deram algo para fazer enquanto me recompunha. Bati as patas com força para produzir mais do que um ruído abafado. Sentia as bochechas úmidas, fazendo enorme esforço para tirar a voz de dentro do peito.

“Bravo!... Isso foi... lindo...” disse, tão rouco que parecia rosnar.

As outras músicas foram mais generosas com meu coração, e fui me sentindo mais senhor de mim mesmo aos poucos, apesar de algumas fungadas ocasionais. Sorria com as implicâncias, cutucando de volta com a cauda. Quando terminou suas músicas, fui de novo quem aplaudiu com mais entusiasmo. Tive minha chance de tirá-la novamente para dançar uma valsa tranquila, o que me fazia concentrar em outra coisa... mesmo tendo bem claro que algo irreversível estava acontecendo.

“Não imaginava que conhecesse a ópera que cantou. Está entre minhas peças favoritas.” Falei baixinho, enquanto nos movíamos no lugar aberto. “Se conhecer outras dessas canções, eu adoraria ouvi-las. Seria maravilhoso. Também... tenho livros sobre o lugar, se um dia quiser fazer deles algumas de nossas leituras.”

Eu poderia culpar o vinho... mas talvez não fosse justo. Sei apenas que meu coração continuava cheio daquela “coisa nova”, que seu perfume me agradava especialmente naquela noite, que eu estava feliz em aprender a dançar... que precisava admitir tê-la puxado para mais perto de mim, até ficarmos bem próximos, e ter acariciado sua cintura com a pata. Pensei e senti coisas que me deixaram cheio de vergonha em outro momento. Naquele, eu estava feliz, e queria que fosse eterno.

[P.O.V. Bela]

Fiquei bastante animada com as reações de Fera. Estava tão feliz e entregue ao momento que desejei vê-lo assim sempre. Por isso prolonguei... para vê-lo mais um pouco daquela forma.

Ri mais meiga do que eu mesma esperava no momento em que todos pararam para me aplaudir com quase louvor. Levei a mão ao colo, fazendo reverências enquanto eram fofos e levei o sorriso mais sincero e sem jeito a Fera, baixando os olhos por um segundo... antes de Lumière pegar minha mãe para dar alguns beijos e me tirar do transe.

Fui tirada novamente para dançar, com alegria, sentindo-o já mais fluido desde que pegou minha mão. Guiava com um pouco mais de divertimento... e também percebi que tocava em mim sem tanto medo daquela vez. Estava tudo apenas melhorando. Aproveitei-me disso... também curtindo, divertindo-me mais do que fazendo certo, como com Chevet.

“Ah, claro que conheço! Quando estava conhecendo as leis da Terra e fui aprender coisas sobre a França, essa foi uma das primeiras coisas citadas! Alguns de nós consideramos Notre Dame parte principal de nosso conhecimento e nosso repertório. Ajuda a aprender a língua, já que aprender cantando sempre ajudou as sereias com a assimilação. Também nunca assisti à ópera... mas poderíamos tentar ir juntos um dia, o que acha?” percebi-me de fato entusiasmada com aquilo.

“Claro que canto! Posso fazer isso na biblioteca um dia... E vou adorar conhecer a história. Vamos começar logo!” ri, tentando girá-lo sem qualquer chance de sucesso. Fiquei bastante tempo com ele, e consegui notar olhares felizes dos objetos para nós.

Deixaram que nos curtíssemos bastante antes de o Cravo começar a tocar um ritmo que reconheci, conseguindo perceber suas intenções. Pelo visto, todos... já que abriam um espaço para mim.

Bati palmas leves, indo de novo para o meio de todos, para dançar um pouco mais com as saias e os quadris, cantando: “Bohémienne... nul ne sait le pays d’où je viens... bohémienne!” as palmas me acompanhavam e fui ficando feliz pela chance de ser, uma vez na vida ao menos, a cigana.

Até que fiquei feliz com o que consegui fazer com os ombros e os passos. Era difícil fazer aquele papel... mas achava que poderiam estar perdoando meus tropeços risonhos.

Não demorou muito para, mais tarde, a festa começar a dar sinais de que estava perto do fim. Pelo menos aquela parte... já que imaginava que alguns casais ainda continuassem se divertindo juntos.

Já estava saindo com Fera da sala entre algumas risadas e fofuras com os demais. Fomos andando um pouco em silêncio pelos corredores.Ele acabou me levando até a porta do quarto e virei-me para ele da porta, sorrindo.

“Hoje foi tão gostoso! Quero muito que esse tipo de coisa não seja uma raridade...” falei sincera, com um sorriso sonhador antes de olhá-lo mais diretamente. “Gostei do quanto se soltou hoje... Vou adorar conhecer mais o que há aí dentro.”

Dei-lhe um beijinho longo na bochecha peluda depois de puxá-lo pela pata para se abaixar um pouco.

“Boa noite...” falei doce, fechando as portas do quarto encolhendo os ombros com doçura a ele.

[P.O.V. Fera]

Baixei um pouco as orelhas, com a sensação de que talvez não fosse acompanhá-la junto à ópera real, um sentimento rápido: sua tentativa de me fazer girar me fez rir enormemente, e mesmo abaixado, não consegui ajudar na ideia. A semente da tristeza não vingou naquela noite.

“Conheço todas as letras.” Gabei-me. “Mas ouvi poucas músicas cantadas por aqui. Cadenza conhece todas as partituras, mas quem aqui saberia a ópera e conseguiria cantá-la? Só você...” elogiei, com as orelhas vermelhas. “Embora... você possa ter uma boa aluna, se quiser.” Indiquei Garderobe, que se mostrara uma excelente cantora. “Então, cada vez que cantar, mais uma música nascerá para mim.” Sorri.

Fiquei feliz que tivesse aceitado o convite de nossas próximas leituras, e continuamos dançando livres de preocupações – cheguei a fazê-la rodar, o que deu mais certo – vendo encantado sua leveza, com a saia rodopiando. Também reconheci o ritmo de outra obra da peça tão comentada, e me adiantei para me posicionar com o público. Acompanhei as palmas com entusiasmo.

Fácil ser hipnotizado pela voz, pela cadência constante, pelos movimentos que, mesmo improvisados, eram mais ousados, envolventes. Senti de novo, e cada vez mais forte, algo me percorrer até na pele e nos pelos, absorvido e inquieto. Procurei dissimular o quanto estava agitado, principalmente após os aplausos finais, quando voltou para perto de mim. Tentei não olhá-la de modo diferente, mesmo que estivesse com... uma sede difícil de admitir a mim mesmo. Os elogios a ela, os diálogos, a comida e o tempo foram me distraindo, e quando nos erguemos para sair, já em hora avançada, podia me sentir mais seguro.

Ainda não sabia o que mais lhe dizer sem trair, com as palavras ou o olhar, o que trazia dentro de mim, e seguimos a maior parte do trajeto em silêncio. Notei que ela estava feliz, tendo percebido ou não algo que lhe fosse estranho, e que não se importava com a falta de diálogo. Foi com alguma tristeza que entrei com ela no corredor de seu quarto, maior ainda diante da porta.

Sorri, encabulado, com seu comentário. “Também não gostaria de esperar tanto para me sentir tão vivo novamente.” Sobre a segunda parte, não sabia o que responder e não o fiz. Não queria pressioná-la... a menos que visse aquilo como uma espécie de convite.

Puxado, senti seu contato suave contra minha face despertar um arrepio; antes de responder a seu “boa noite”, minha pata se lançou contra a porta que se fechava. Já percorrera com os olhos o quarto vazio atrás dela antes de raciocinar sobre o que estava fazendo – ou pensando em fazer. Meu coração derreteu-se ao olhá-la de novo, em sua doçura, fundindo-se em ternura, afeto e culpa. “Boa noite...” finalmente respondi, tocando o alto de sua testa com o focinho.

Retornei rapidamente pelo corredor, decidindo no meio do caminho retornar para a festa apenas para pegar mais vinho, assustando levemente os últimos convidados, quase sempre casais, que curtiam outro tipo de festa. Segui então para meus aposentos onde tirei, entre goles cada vez mais generosos direto das garrafas, minha roupa, minhas culpas e minhas fantasias aos poucos, até cair adormecido, embriagado de álcool, desejos frustrados e um amor que me fazia a mais perdida das criaturas.


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