Está Muito Frio Lá Fora Para Anjos Voarem escrita por EliTassi


Capítulo 1
Capítulo Único.


Notas iniciais do capítulo

Essa daqi é bem bobinha, bonitinha e pá, pq eu tava mó no hype escrevendo "O Plano de Deus Para a Pirataria e as Estrelas" e aí PAAA terminou.
Fiqei na bad.
E resolvi tentar de nv.
E aí saiu essa daqi qe é só uma mente entediada e ouvindo música trabalhando no modo tão aleatório qanto o da playlist ~
O título vem da música "The A Team" do Eduardo Cheirador (tbm conhecido como Ed Sheeran).
A fanart da capa eu tirei do DeviantArt e é do usuário PonuryGrajek.
Nos vemos lá embaixo, qerido ou qerida ♥



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 O mundo é um lugar curioso, não é mesmo? Em um momento a cidade de Londres está em agradáveis 72 °F, ou 22 °C, caso você não esteja acostumado com a escala Fahrenheit. Agradável para um passeio pelo parque ou, quem sabe, um jantar no Soho. Quando você termina o jantar e sai para a rua percebe que a temperatura caiu para 28 °F, ou -2 °C. 

 De repente você se vê assoprando suas mãos para conseguir sentir seus dedos sem que doa e correndo por entre montes de neve para dentro do Bentley preto estacionado do outro lado da rua. 

 - Por céus! Como isso pode ter acontecido tão de repente? 

 - O garoto deve estar fazendo uma visitinha por Londres e quis deixar a cidade mais interessante. 

 - Interessante?! – Aziraphale repetira em choque, inclinando o corpo para tatear as pernas enquanto o carro entrava em movimento. – Crowley...! – ele chamara em tom de pânico. – Acho que estou desencarnado...! 

 - É o quê?! 

 Os olhos claros viraram-se assustados para o amigo. 

 - Acho que estou desencarnando! 

 - Você só pode estar de sacanagem. Seu pessoal não vai mais se meter com a gente depois daquilo, lembra? 

 - Mas eu estou sentindo...! 

 - Sentindo o quê? 

 - Meus pés. Eu não estou sentindo eles! Eles estão desencarnando! 

 - Mas você está de sacanagem com a minha cara, Aziraphale! – Crowley retrucara, revoltado por ter seriamente se preocupado com aquilo.  Você está com frio! Vai me dizer que em seis mil anos nunca viu neve, não? 

 - É claro que eu vi! – o anjo retrucara, revoltado, cruzando os braços. 

 - Tá parecendo que não, ein. 

 - Vi sim! Mas é diferente ver e... Bem, e sentir isso. 

 - Então em seis mil anos você nunca sentiu a neve? 

 Aziraphale remexera-se no banco do carona, contrariado. É claro que tinha sentido a neve, mas fora só uma vez, algumas centenas de anos atrás. Estivera lendo um livro em que se passava em um dia frio e os personagens diziam o quanto a neve era agradável, macia e fofa, descrevendo-a como um presente dos céus. Naquela tarde começara a nevar do lado de fora. O anjo pusera a mão para fora da janela, testando a maciez da qual lera sobre, arrependendo-se no instante em que um floco de gelo pousara em sua mão. No mesmo instante a remexera, como humanos fazem quando pousa um inseto. Trancara a janela e fora fazer um chocolate bem quente. 

 Em resumo, Aziraphale não gostava nada do gelo chamado neve e tinha sérias dúvidas se não teria sido criado pelo lado de lá. 

 - Senti sim. 

 - Acho que não, ein. 

 - Senti sim! 

 - Tá mentindo. 

 - Eu não minto! Sou um anjo, não uma cobra peçonhenta. 

 Crowley erguera uma sobrancelha para Aziraphale. O anjo encolhera-se, sentindo-se mal repentinamente pela ofensa gratuita. 

 - Desculpe. Eu não quis... Você sabe. Ofender. 

 - Tá tranquilo – Crowley o tranquilizara, estalando os dedos e fazendo uma chama surgir logo abaixo do porta-luvas, acima dos pés de Aziraphale. – Antes ser uma cobra peçonhenta do que um anjo manhoso. 

 - Ei! 

 Crowley sorrira, tendo seu objetivo cumprido ao provocar o anjo. 

 O demônio estalara a língua, contrariado. O Bentley ia cada vez mais lentamente e suas intervenções para acelerar na marra estavam fazendo o carro derrapar pelo gelo. Não que fosse admitir, mas vez ou outra chegara a acreditar que realmente só com um milagre para desviar a tempo de alguns carros no caminho. 

 - Meu Senhor...! – Aziraphale exclamara ao ver desviar de um poste por milímetros. - Crowley... Vai mais devagar, por favor. Eu não quero desencarnar. Não acho que o pessoal iria querer me dar outro corpo. 

 - Você acha mesmo que eles iam querer te manter por lá? 

 - Bom, eu não quero descobrir. 

 - Está sentindo seus pés agora? 

 - Estou sim. Mas as minhas mãos, não. 

 Crowley revirara os olhos por detrás dos óculos escuros. 

 - Veja! – Aziraphale tinha as duas mãos esticadas na frente do próprio rosto, querendo mostrar para o outro. – Elas estão ficando azul! 

 Crowley resmungara um palavrão de forma tão baixinha que fora indistinguível para o anjo. 

 - Isso não é normal, é? 

 - Você tem razão – o demônio decidira divertir-se. – Não é. Acho que você vai perder as mãos. 

 - Oh Meu Deus! 

 Aziraphale começara a sacudir as mãos, como se pudesse se livrar daquilo. 

 - Isso não vai resolver. 

 - O que eu faço, Crowley? O que eu faço?! 

 

 O Bentley preto passara ao lado de um homem chamado Albert, quem acabara de sair de casa para não ter que ouvir a esposa Eliza gritando sobre ele nunca lavar a louça. Ele estava acendendo um cachimbo quando vira, pela janela, um homem gorducho e louro com uma careta de desespero, sacudindo as mãos como se estivesse tendo um ataque de nervos. Não vira o motorista, mas percebera ser um homem e imaginava tratar-se do namorado, marido ou o que fosse, do loiro histérico. 

 Albert desistira do cachimbo e entrara para dentro novamente, agradecendo a Deus pela esposa que tinha. Por pior que ela fosse, não poderia ser pior do que a noite que aquele motorista estava tendo, com seu namorado tendo um ataque. 

 

 - Oh Senhor, Oh Deus, me ajude... 

 - Eu acho que o senhor lá encima não vai resolver seu problema, não. 

 - Eu não quero perder as mãos...! 

 - Aziraphale... 

 - Como eu vou folear os livros?! 

 - Com a língua. 

 - Como vosegurar os talheres?! 

 - Com a língua. 

 Crowley estava escondendo um sorrisinho debochado. 

 - E a minha coleção de caixas de rapé de prata?! 

 - Com a língua. 

 Ele não aguentara e começara a rir. 

 - Não tem graça, Crowley! 

 - Calma, anjo. Eu estava brincando com você. Suas mãos não vão cair. Você só está com frio, precisa aquecer elas. 

 Aziraphale observara, com desconfiança, as próprias mãos. De fato, elas tinham a mesma sensação que outrora seus pés tiveram. Então ele olhara ao redor. Podia meter as mãos no fogo para aquecer, mas iam queimar. Ou poderia, bem, dar o troco. 

 (Não, aquilo totalmente não era vingança. Nada a ver. Vingança era algo muito malévolo e nada parecido com algo que um anjo faria. Não, sem vingança. Era “dar o troco”). 

 - Mas que porra, Aziraphale! – Crowley praguejara, encolhendo-se ao sentir as mãos congeladas do anjo pela sua nuca, arrepiando todos seus pelos. 

 - Você está quente! Mesmo com esse frio congelante! 

 - Não significa que pode meter essas pedras de gelo que você chama de dedos em mim! 

 - Mas eu preciso aquecer minhas mãos. 

 Crowley encolhera-se, tentando afastar seu corpo do anjo que teimava nas tentativas de enfiar as mãos frias em seu pescoço e, no ato, quase colidira o Bentley com um pobre pedestre. 

 - Cuidado! 

 - “Cuidado”?! Se eu passar por cima de alguém a culpa vai ser sua! E de suas mãos congeladas! Vade retro, Satanás! 

 Aziraphale encarara o amigo, atônito. 

 - Você está tentando... Me exorcizar?! 

 - Eu? Não, não. Que absurdo — Crowley retrucara em tom culpado, envergonhado pelo que deixara escapar. – Você que me ouviu mal. 

 Para aqueles poucos familiarizados com a história, “Vade retro, Satana” trata-se de uma expressão em latim cunhada no século XV. Diz-se que veio de São Bento, que foi encontrada na parede da abadia e seria utilizada para exorcizar demônios. 

 A verdade é que Crowley (sim, o próprio) podia ter ou podia não ter ficado com um certo peso na consciência ao ter tentado um homem a tacar fogo na sua antiga igreja porque seria muito divertido ver a cara derretida das estátuas de Santos que puseram, mas não esperava que ela estivesse cheia bem na hora. Então tentara evacuar o local, entrando naquele maldito solo sacro, sem óculos, e ter causado uma certa comoção por parte dos fiéis que o acusaram de ser, bem, um demônio. 

 Momento de histeria, bláblá, todos correndo e um cara lá gritando “Vai de ré, Satanás!” querendo que ele saísse pela porta em que entrou. 

 Mas aí o homem, William P. Mycroft, invadira a igreja, tacando fogo em tudo e a história (particularmente humilhante, embora Crowley não fosse admitir) poderia ter sido totalmente apagada. 

 Poderia. 

 Se um maldito churrasquinho humano não tivesse escrito na parede da abadia. 

 Era tipo um apelido que persegue e mesmo querendo muito esquecer, ele está sempre na ponta da língua. Porque você sabe que ele é seu, mesmo você o odiando e não querendo. 

 O Bentley parara em frente a livraria de Aziraphale. O anjo engolira em seco ao ver o morro de neve mais alto do que a porta, cobrindo a mesma e as janelas. Olhos claros desesperados voltando-se para o demônio. 

 - O quê?! Não, não. Eu não vou ajudar. Você se vira com isso aí. 

 Aziraphale engolira em seco uma segunda vez. 

 - Eu posso... Sumir com tudo, acho... 

 Como se na menção uma rajada de vento com neve soprara, passando como um véu e quase escondendo completamente a livraria. Aziraphale tremera só de imaginar. Um barulho de vidro estourando e, com dificuldade, ele vira uma janela do andar superior quebrada e sendo invadida pela neve. 

 - Oh Senhor... 

 Crowley, com seu coração mole, acabara ligando o motor novamente, acelerando para longe dali. 

 - Aonde vamos? 

 - Para meu apartamento. Mas se você quiser eu paro para você descer. 

 - Por Deus, não. Seu apartamento parece ótimo. Magnífico! Supimpa! 

 Crowley entortara os lábios para o palavreado do amigo, mas não comentara conforme avançava pela noite fria até seu apartamento, dividido entre achar graça e irritar-se com o escândalo que o anjo ainda fazia por conta do frio. 

 

 Não costumava usar a garagem simplesmente porque não precisava mesmo. Não quando se podia estacionar em qualquer lugar de Londres que quisesse. Mas assim fizera para que Aziraphale não reclamasse. 

 Não tinha muito o que fazer em seu apartamento porque essencialmente Crowley não morava ali, com poucas exceções. Tudo era como novo e intocável. Até o tabuleiro de xadrez que estavam usando tinha sido acabado de ser retirado da embalagem original. 

 Crowley já tinha acendido a lareira – tão intocada que não apresentava qualquer resquício de cinzas ou madeira, mas que demônio precisaria disso para fazer fogo? — o sistema de calefação estava funcionando e de tempos em tempos Aziraphale até se esquecia de reclamar do frio, até não precisar mais. 

 E Crowley era grato por isso. 

 Algumas horas depois, duas garrafas de vinho e três partidas de xadrez onde Crowley perdera todas, mas poderia ter ganho uma se não tivesse se comovido com a expressão de decepção de Aziraphale ao ver a derrota iminente acabara cometendo um deslize que dera a vitória para o anjo. Valera a pena e até mesmo sorrira ao ver o rosto do anjo iluminando-se conforme dava espaço para um grandioso sorriso de orgulho. 

 Mas, conforme o tempo passava também estava preocupando-se. A tempestade continuava na mesma. Crowley perguntava-se o que o garoto estava aprontando. 

 Aziraphale espreguiçando-se chamara sua atenção. Com classe, esticando os braços para frente e puxando os dedos. 

 - Isto foi muito bom para... Como vocês dizem mesmo? Tirar a fuligem. 

 - Desenferrujar – corrigira.  Acho que seria bom irmos descansar. 

 - É sim, seria bom. 

 Crowley observava a tempestade pela janela, então de volta para Aziraphale, considerando a situação. Ele não tinha como voltar naquela tempestade, nem se Crowley se oferecesse para levá-lo. 

 O anjo não parecera notar nada daquilo, levantando-se da poltrona e caminhando pelo apartamento como se estivesse na própria casa. Confuso, Crowley seguira atrás, atordoado. Vira Aziraphale indo parar em seu quarto, retirando o casaco e tudo. Crowley congelara na porta. Aquilo era, definitivamente, estranho. 

 - Hm? – Aziraphale murmurara ao perceber a presença de Crowley mas porta. – Algum problema, querido? 

 - Bom... Eu só tenho um quarto. 

 - Eu sei. Estive aqui vezes o suficiente para saber. 

 - E uma cama – Crowley insistira. 

 - Sim? – Aziraphale demonstrava uma certa simplicidade e confusão, como se nada estivesse fora do lugar. 

 - Você acha... Que nós... Deveríamos dividir a cama? – perguntara pausadamente para ter certeza do que estava proposto. 

 - É claro. Qual o problema disso? 

 - Humanos não fazem isso. 

 Aziraphale cruzara os braços, levemente ofendido e estufando o peito de forma orgulhosa. 

 - Claro que fazem! Eu já li nos livros. E vi nos filmes. 

 - Sim, mas... É diferente. 

 - Por quê? 

 - Sei lá, eles são casados essas coisas. 

 - Alguns. Outros são só amigos. 

 - Eu não lembro de ver isso não, anjo. 

 - Eu vi, sim. Nos livros. 

 - Que livros? 

 Aziraphale vacilara apenas por um momento, tentando resgatar na memória algum livro em que amigos dividissem a cama, no entanto, quando mais se precisava da memória era quando ela mais falhava. Poderia culpar o vinho, mas por um segundo ele indagara a si mesmo se realmente havia lido em algum lugar sobre amigos dividindo a cama. 

 - Você não saberia mesmo, não lê livros! 

 Crowley considerara aquilo por um breve momento. A verdade era que, se o anjo não se importava, ele é que também não iria. Não se importava em dividir a cama com Aziraphale, gostava dele e era só uma cama. Não era nada demais, certo? Apenas mais uma dessas coisas que os humanos fazem parecer uma grande questão, mas na verdade não é nada demais como, por exemplo, ser carnívoro. 

 - É, beleza, você está certo. Deve dizer por aí em algum lugar – Crowley dera de ombros. 

 Mas a verdade era que tinha algo, bem lá no fundo, no âmago do anjo caído que inquietava-se com aquilo, como se tentasse o avisar que havia, sim, algo de estranho naquilo. Claro que Crowley enfiara aquela vozinha bem lá no fundo. 

 Mesmo que ela houvesse lhe dito a mesma coisa sobre andar com Lúcifer e a galera do mal. 

 Crowley era das antigas, preferia trocar de roupa manualmente. Já Aziraphale estava pronto em um estalar de dedos, enfiando-se embaixo das cobertas como se o mundo fosse um lugar terrível e ele precisasse estar ali embaixo para estar seguro. Do frio. 

 Fizera o possível para não demonstrar sua inquietação conforme também subia na cama, a uma distância razoavelmente segura de Aziraphale. O quarto estava com a temperatura mais baixa que a sala por não ter o fogo da lareira, mas nada que o incomodasse. 

 Incomodava Aziraphale. 

 - Minhas mãos estão congelando. 

 - Ah, não! Não começa, anjo. 

 Crowley não queria virar de costas para Aziraphale, como se estivesse o ignorando. Não, não... Então pusera-se de barriga para cima, com as mãos atrás da cabeça, encarado o teto. Ao passo em que Aziraphale encontrava-se coberto até o nariz. 

 - Mas é sério. 

 - Espera um pouco e as cobertas vão te aquecer. 

 Aziraphale resmungara baixinho, contrariado. 

 Crowley sentia como se o ar do quarto estivesse mais pesado. Aquela vozinha o incomodando novamente, dizendo que ele deveria fazer algo. Aquilo era ridículo, pensava. Estava tentando a si mesmo. E seu coração parecia ter esquecido como bater direito. Legal, ótimo momento para que seu corpo começasse a estragar. 

 O anjo tinha dedos gelados. E ele queria aquecê-los naquele momento, não esperar até que as cobertas fizessem efeito. Lembrara-se do carro e observara Crowley, parecendo distraído em seus pensamentos. Então esgueirara sua mão, devagar, com cuidado... Até encostar calmamente no pequeno espaço exposto no quadril do amigo, entre o cós da calça e a barra da camisa. 

 - Aziraphale! – Crowley gritara no susto, recuando por instinto. Seu coração batendo tão rápido que o fazia tremer. – Que porra...! 

 - Cuidado com a linguagem, querido. 

 - O que você está fazendo?! 

 - Você está quente! – Aziraphale argumentara, certo de que a sua lógica fazia total sentido. – E eu estou frio. Só queria aquecer minhas mãos. 

 - E eu lá tenho cara de aquecedor?! 

 - Bem... Não. Mas eu não quis dizer isso. 

 - E que droga você quis dizer, metendo as mãos congeladas em mim?! 

 Aziraphale parecia culpado, escondendo mais o rosto. 

 - Você está sendo insensato. 

 - Eu?! 

 - Sim, você – Aziraphale resmungara com falsa confiança e um certo tom mal disfarçado de criança mimada que não consegue o que quer. 

 - Ah, pelo amor...! 

 Crowley revoltara-se e, sem pensar duas vezes para não se arrepender, pegando as mãos terrivelmente frias e as pressionando entre seu peito e suas próprias mãos aquecidas. 

 As pupilas de Aziraphale dilataram-se ao sentir, em suas palmas congeladas, o quão rápido e frenético o coração de Crowley estava batendo. Chegara a soprar um “wow” baixinho que torcia para que Crowley não tivesse ouvido. 

 Mas ele ouvira. 

 - Não faça eu me arrepender, anjo. 

 - Eu só estava... 

 - Não diga. 

 - ... Pensando... 

 - Não se atreva, anjo. 

 Aziraphale aproximara mais seu corpo do de Crowley, então um pouco mais e um pouco mais... Até que sua cabeça estava recostando no ombro dele. 

 - Que eu gosto de você, Crowley. 

 Aziraphale sentira a resposta para suas palavras na palma de suas mãos, na forma de batidas. Tinha lido romances o suficiente para ter uma mínima ideia do que aquilo significava – se não fosse absurdo pensar que seres sobrenaturais pudessem sentir daquela forma. 

 - E gosto de estar do nosso lado. 

 Crowley estava embasbacado. Aquilo era bem mais do que esperava – não que a surpresa o fizesse gostar menos de ouvir. 

 Quando se dera conta Crowley já havia levado uma de suas mãos para o cabelo loiro em seu ombro, acariciando como faria com um animal peludo. 

 - Eu também, anjo. Eu também... 

 Nenhum dos dois tivera antes um sono tão bom em séculos. 

 

 Anathema Device não queria ser uma descendente de Agnes Nutter pelo resto de sua vida. Não, não. Ela queria liberdade para poder fazer algo mais quando acordasse do que ler de cabo a rabo o jornal inteiro para tentar decifrar se alguma profecia havia acontecido. Não queria preocupar-se com possível Armagedom e tampouco passar horas desvendando o que sua ancestral quisera dizer quando esta vivera em uma época cada vez mais distante da contemporaneidade. 

 Anathema queria liberdade. Poder ser algo além, quem sabe tirar um outro PhD, focado em um assunto bem distante, tipo computação. Tinha certeza que Newt ficaria feliz com a ideia. 

 Por isso a decepção estivera estampada em seu rosto quando, menos de um mês após o Armagedom frustrado, uma nova encomenda surgir pelo correio: uma caixa muito, muito semelhante com aquela que Newt recebera. 

 Sentia-se desesperançosa e presa ao encontrar uma cópia das mesmas profecias que queimara. Claro que Agnes saberia de seus planos. Claro que ela ia frustrá-lo. E Anathema tinha sentido só um gostinho de liberdade...! 

 Fora com a tristeza e o pesar de alguém que poderia muito bem ter acabado de sair de um velório que Anathema sentara-se embaixo de uma árvore, folheando as profecias e procurando por alguma com seu nome. 

 “Profecia 263: Ei te digo e ouça-te bem, Anathema. Escolha-te com sabedoria, pois ão de fazer-se as profecias. E thais é a ti que deveis pores-la no lado serto.” 

 Mesmo todos os anos de sua vida não a prepararam o suficiente para entender de forma rápida o que Agnes queria dizer. Até porque, na maioria das vezes nem a própria sabia o que dizia. Por no lado certo, ela queria dizer? O que seria o lado certo? 

 O fato era que algumas profecias de Agnes Nutter somente foram desvendadas após elas terem acontecido, séculos após serem escritas. Nada era fácil quando se tratava daquela mente turbulenta e Anathema poderia levar horas, dias, meses ou anos para desvendar o que aquilo significava. Uma perspectiva nada encorajadora. 

 Mas alguém (sim, você sabe muito bem de quem estamos falando) queria que não demorasse. 

 O aviso viera direto para a cabeça de Anathema. Na forma de uma maçã, batendo direto na sua cabeça. 

 - Ai! 

 Ela pegara a fruta, olhando para cima. Não lembrava de ter visto maçãs naquela árvore e, realmente, não conseguia avistar mais nenhuma. Retornara a olhar para a maçã em sua mão. Vermelha e brilhante, do tipo que não parecia nada orgânica. 

 Olhara para a copa novamente. Nenhum sinal de outra fruta. 

 Imediatamente ela se lembrava da história bíblica de Adão e Eva, e do que a maçã significava: céu e inferno. Deveria por as profecias do lado certo, entre céu e inferno? Entregar para Adam? Não. Sem chances. Impossível. Seria loucura entregar profecias para o Anticristo, mesmo que ele não quisesse ser o filho do tinhoso e Príncipe das Trevas. 

 Bem... Tinha aqueles dois... De que lado eles eram mesmo? Um de cada? Ou de nenhum? 

 Aquela ideia a animara e Anathema decidira ir fazer uma visita, levantando-se e voltando para casa conforme mordia a maçã. 

 

 Foi assim que Anathema encontrara Crowley e Aziraphale dormindo, juntos, na mesma cama, de conchinha. O que Anathema jurava ser um demônio estava abraçando o anjo, com o nariz na nuca do loiro e tudo. 

 Ela não fazia ideia de como aquilo acontecera e nem como acordar eles. 

 Quer dizer, ela nem sabia que anjos e demônios dormiam. 

 Então Anathema fizera o que qualquer pessoa pouco-sensata faria: procurara por algo pesado, que acabara por ser a caixa que trazia embaixo do braço, e a jogara contra o chão com força, provocando um estrondo tão alto que a caixa de madeira se espatifara, espalhando os papéis pelo chão. 

 Crowley e Aziraphale despertaram de supetão com o barulho. Crowley primeiro, chocado em ter alguém dentro do seu apartamento. Já Aziraphale acordara somente porque o corpo grudado no seu o despertara ao agitar-se. 

 - Ei! Como você entrou aqui?! – Crowley indagara. 

 Anathema cruzara os braços. 

 - Eu sou uma bruxa e ocultista. 

 - E eu um demônio e tanto, nem por isso saio por aí invadindo a casa das pessoas, acordando elas e dizendo “oh, eu sou um demônio, é isso que eu faço, uhuhh”. 

 Aziraphale estava recém sentado na cama e esfregando os olhos. 

 - Eu tentei bater e chamar, mas ninguém respondeu. – Anathema puxara um grampo do cabelo. Uma peça única e exclusiva que ganhara do namorado, feita com um antigo alfinete de caçador de bruxa. – Então usei isso. 

 - Olha, você não deve ser boa em fazer amigos, ein. Porque bater e ninguém responder significa: “estou ocupado ou não quero atender, volte mais tarde ou no dia de nunca”. Não que você deve invadir! 

 Anathema revirara os olhos. 

 - Não seja tão duro com ela, querido – Aziraphale finalmente encontrara sua voz, embora sonolenta e meio perdida. – Tenho certeza de que Anathema Device tem um excelente motivo para estar aqui. Deve ser importante. 

 O olhar de Anathema viajara do demônio para o anjo, e vice-versa. Os dois sentados na cama, a centímetros de distância, dormindo abraçados... 

 - Eu não sabia que vocês dois... – ela começara a dizer, chamando a atenção dos seres ali presentes. – Bem, esquece. Não é da minha conta. 

 - Então desembucha logo. O que você quer? Rápido antes que eu me arrependa. 

 Em um lapso de memória Anathema lembrara do porquê de estar ali. 

 - Eu preciso saber de que lado vocês estão. 

 Crowley e Aziraphale trocaram um olhar cúmplice de surpresa e desconfiança. 

 - Do nosso lado – ambos responderam em uníssono. 

 - Nem inferno – Crowley propusera. 

 - E nem céu – Aziraphale completara. 

 Anathema considerara por um instante, rapidamente decidindo que aquilo era exatamente o que ela precisava – porque tinha um tremendo medo de perguntar algo mais, não receber a resposta que precisava e acabar sem saída, se não tendo que recolher o manuscrito do chão e seguir com a vida assombrosa de descendente, bruxa, ocultista e todo o negócio. 

 - Ótimo! Perfeito. Aqui estão as novas profecias de Agnes. São todas de vocês. Boa sorte com elas e com... Esse lance que estiver rolando entre vocês. Paz. 

 E tão de repente quanto surgira Anathema também havia sumido. O único traço de sua presença recente era a madeira estilhaçada no chão, a pilha de papéis e os passos distantes findando em um bater de porta. 

 Crowley suspirara penosamente, jogando o corpo de costas na cama. 

 Aziraphale, empolgado com a ideia de novas profecias, já estava levantando da cama quando fora puxado pelo braço com força, obrigando o anjo a retornar e deitar no peito do demônio. 

 - Você fica aonde está. Eu ainda não acordei. 

 - Mas elas... 

 - Não importa. 

 - São as... 

 - Não quero saber. 

 - E é raríssimo! 

 Crowley apertara o pulso de Aziraphale. 

 - Escuta aqui, anjo. Eu aqueci as suas mãos congeladas e impedir elas de caírem. Você me deve essa. Pode ir deitando e dormindo que eu não vou conseguir voltar a dormir sozinho. 

 Aziraphale gemera, frustrado, mas ele não tinha escolha. 

 Porque de repente Crowley precisava desesperadamente estar abraçado no melhor amigo para conseguir dormir. 

 E a primeira folha, encima de todas espalhas pelo chão, dizia o seguinte: 

 “Profecia 2347: claro e escuro; branco e vermelho; amigos e inimigos. Hum há de virar gelo e outro restahi pô-lo em seu peito. O fio vermelho os uni e nada hai de cortá-lo. Ceo e abaixo; bem e mal; amigos e amantes. Escuta-te com atencao: está muito frio lá fora para anjos voarem”. 


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Notas finais do capítulo

Obg por ler, bora enaltecer esses anjos ♥



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