Gotas de chuva escrita por Artemis Stark
A chuva açoitava a ilha com frequência. Nesses dias, os casebres resistiam recebendo rajadas de água e vento. Foram necessários décadas e décadas de aprendizado de casas voando para que as construções permanecessem fixas.
Observava os pingos escorrendo pela janela, tornando impossível ver a paisagem que se estendia pelo lado de fora.
— Saia daí! O vidro pode estourar em seu rosto. Sabia que meu avô ficou cego assim? Eram lascas de madeira. Imagine o que o vidro faria com seus olhos?
— Eu sei, vovó – levantou-se fechando a cortina – Sente-se, você já fez muito hoje. Farei o jantar.
— Obrigada, Lorna – obedeceu a neta, sentindo os ossos doerem pelo cansaço e pelo frio. Cerrou os olhos quando sentiu o cobertor sobre as pernas e o beijo em sua testa.
A moça foi até a cozinha e puxou a pequena cortina, olhando os pingos batendo freneticamente. Logo o som ganhou companhia: batidas na porta. Foi correndo até lá, pegando uma toalha no banheiro. Abriu a porta e encontrou-o, colocou a toalha sobre ele que entrou e ajoelhou-se na lareira que há muito estava apagada.
— Não conseguimos acender. A lenha encharcou. Tire essas roupas molhadas, Aran – ele foi até o quarto, enquanto Lorna jogava um pano no chão. Sorriu ao ver a velha dormindo num sono profundo.
— Eu seco isso, meu amor – falou, despindo-se.
— Não deveria se arriscar no mar – disse, cruzando os braços, de joelhos no chão. Aran trocou-se e foi até ela, puxando-a para si.
— Os peixes valem mais que carne vermelha – tirou um cacho ruivo que caía sobre os olhos dela.
— Sua vida vale mais que ambos. Aran, é época de chuva. Não posso ir para o mar por causa de vó Morgana, mas sou boa no arco-e-flecha. Caçamos juntos.
Beijou-a, sabendo a sorte que tinha ao ter uma mulher como Lorna ao seu lado.
— Amanhã caçamos, então. Perdi o barco de qualquer forma, preciso construir outro – disse, ao separar-se. Abaixou-se e terminou de secar o chão. O intervalo dos pingos começou a diminuir, enquanto a noite caía. Foi com a esposa até a cozinha e começaram a cozinhar juntos, enquanto compartilhavam uma jarra de vinho.
— Cortinas fechadas na sala? Ela contou novamente a história sobre o vô Brígido?
— Sempre – os dois riram – Não adianta explicar que agora são outros tempos. Vou organizar a mesa, ela deve acordar daqui a pouco – acenderam alguns lampiões quando a noite insistiu em chegar, nuvens escuras cobriam o luar e as estrelas.
— Você voltou, meu filho – apesar de Morgana ser avó de Lorna, sempre se referia ao homem dessa forma carinhosa – Ajude-me a levantar, por favor. Preciso ir ao banheiro.
O homem deu um beijo no rosto daquela que era como mãe e avó para si. Ajudou-a a ir até o banheiro e depois a sentar-se à mesa, servindo-a com um fumegante caldo de legumes e alguns pedaços de carne de porco.
Nas semanas seguintes a chuva cessou completamente e logo o sol voltou escaldante. Todos moradores da ilha se organizaram no plantio, encontrar lenhas, caçar.
As feiras voltaram para as ruas, crianças corriam e pulavam no que restavam das poças. E Aran voltou para o mar depois de construir um novo barco. Retornava geralmente depois de alguns dias, com peixes para ele, Lorna e vó Morgana. Outros tantos para venda e, alguns, que distribuía para as famílias mais pobre da pequena ilha.
Em casa, entregava-se ao amor de Lorna. A casa estava aquecida e tinham aumentado o estoque de lenha. A fogo bruxuleante de alguns candelabros formam matizes de tons escarlates no cabelo da esposa. Gostava de observar quando a tinha em cima de si, o suor escorrendo e os lábios tão rubros.
Gostava também das sardas que formavam constelações que só ambos conheciam o nome e compartilhavam entre sussurros mesmo quando ninguém podia ouvi-los.
Já Lorna, não conseguia adormecer antes dele. Precisa de Aran ressonando baixinho, como um pequeno filhote de gato. Sem tocá-lo, contornava seu corpo gravando na memória o que já estava cravado em sua pele. Um vento inesperado fez com que a janela abrisse. A ruiva caminhou até lá e colocou a cabeça para fora, observando o farfalhar das árvores e nuvens que brilhavam em silêncio. Fechou a janela e voltou a observar o marido. Os cabelos longos de fios claros, caiam-lhe sobre o rosto, sem incomodá-lo.
Sorriu e tocou a própria barriga. Quando o dia chegasse, contaria para ele, mas, antes, pediria que não fosse para o mar. Olhou novamente para o céu pelo vidro da janela, as nuvens estavam sumindo entre as estrelas.
Acordou ao sentir a cama vazia ao seu lado. Sabia que às vezes ele partia despedindo-se com um beijo em seus lábios, sem despertá-la.
— Aonde vai correndo desse jeito, Lorna?
— Eu já volto, vovó!
Correu pela trilha que levava até o mar, pulando por raízes, desviando-se de galhos e abaixando-se para não topar a cabeça.
— ARAN! – a voz dela fez com que o homem não entrasse no barco. Sorriu e jogou a trança para trás. Puxou o barco para a areia novamente e andou até ela – Aran, não vá!
— Lorna, é a última semana antes da chegada da chuva. Preciso ir.
— O vento mudou antes – respirou fundo, abraçou-o com força – Vi ontem à noite – O homem mirou o céu que estava tão azul quanto os olhos de sua esposa – Acredite em mim.
— Eu acredito. Se chover, será chuva fraca, trará bons peixes. Eu te amo – beijou-a e segurou a proa do barco.
— Estou grávida.
O homem parou novamente seu movimento e ajoelhou-se, sorrindo. Os olhos marejados.
— Voltarei antes. Por vocês – levantou-se, beijou-a novamente nos lábios e partiu.
A chuva começou naquela tarde. Veio depois de um vento que pegou a todos de surpresa, menos Lorna que estava na beira mar, observando o horizonte que sumia na escuridão que havia transformado tudo em escuridão.
— LORNA! LORNA! – a voz de Boyd fez com que saísse do seu transe – Sua vó está preocupada! – falava alto – Você está encharcada! Volte agora. Vou te acompanhar.
Sentiu a mão do amigo do marido em seu ombro e foi conduzida pelo mesmo caminho, já um charco.
— Minha filha! – vó Morgana recebeu a neta com a toalha preparada, uma caneca de café fumegante e a jarra de vinho cheia.
— Estava na beira mar. Fique aqui, Lorna, vamos começar as buscas em breve.
— O que estava pensando? – a velha perguntou, ajudando a neta a retirar as roupas molhadas. Secou-a. Entregou outras vestes – Lorna?
— Estou grávida, vovó. Eu avisei, avisei sobre a tempestade.
— E quando homens escutam o que falamos? – sentenciou enquanto a jovem trocava-se de forma automática – Sem vinho, então. Pegue – entregou a caneca de café. Precisa se alimentar e estar forte para que seu bebê cresça forte como você e Aran.
— Ele não vai voltar.
— Não diga o que não sabe, filha. Hoje eu preparo o jantar. Fique longe das janelas – ajeitou os cabelos grisalhos, recolheu as roupas molhadas e foi para a cozinha. Sabia que a neta aproveitaria sua ausência para ver a chuva caindo.
Observava a chuva, vendo os olhos cinza de Arlan.
Os últimos pingos caíram quando o primeiro vestido ficou marcado pela barriga.
— Vou caçar, vovó – pegou seu arco-e-flecha, mas seguiu primeiramente para a orla da praia. O mar ainda tinha cor de chuva e estava forte, quebrando-se com violência na areia e nas rochas. Pousou novamente a mão sobre a barriga e dirigiu-se para a floresta.
Separou uma parte da caça para ela e a avó e outra para vender, no entanto, a maioria das vezes trocava a carne por legumes, grãos, farinhas.
Boyd nunca trazia boas notícias. Outros pescadores saíram em busca de qualquer rastro de Aran, mas nada foi encontrado.
Quando a chuva voltou novamente, Lorna gritava em sua cama, enquanto sua avó limpava seu rosto e a parteira pedia para ela fazer força, uma força que ela não sabia de onde tirava para continuar empurrando, empurrando, empurrando até o grito da criança ser maior que os estrondos do lado de fora.
— É uma menina.
Lorna pegou a menina em seus braços que, aos poucos, parou de chorar e procurou por seu peito.
— Ela é linda, minha filha. Sabe o nome?
— Glaw.
As duas mulheres mais velhas olharam-se, sabendo que o significado daquela palavra era “chuva”.
Lorna sentou-se na areia, observando a filha engatinhar e rir com o atrito da areia. Todo dia e toda noite de chuva ela fazia o mesmo pedido para os pingos, para o vento, para as nuvens que levassem seu recado para onde quer que Aran estivesse. Contava sobre a gravidez, sobre o parto, sobre Glaw, sobre o primeiro riso, o primeiro dente.
Pedia, apenas, que a chuva que o levou, o trouxesse de volta.
Um ponto fez com que olhasse para o mar mais atentamente. Deveria ir embora, pois a época de chuva estava voltando. A cor do mar era outra.
— Mamã. Mamã.
Levantou-se e andou até a orla, enquanto Glaw a seguia engatinhando. Pegou a filha no colo, antes que ela entrasse no mar. O ponto amorfo foi ganhando forma, um barco.
O coração dela, partido, começou a se refazer, pois sabia quem remava daquele jeito, quem construía barcos como aquele. Não se importou com nada, apenas correu para dentro da água segurando a filha no braço que se divertia com gotas que voavam em seu rosto.
Tão pouco Aran esperou levar o barco até a areia. Pulou dentro da água e nadou até elas. Depois correu e as abraçou. Sal de lágrimas e mar misturavam-se no beijo que aconteceu entre os dois enquanto Glaw balbuciava sílabas e puxava cabelo e barba de Aran.
— Lorna... – os dois começaram a sair da água, sem soltar-se.
— Nossa filha, chama-se Glaw – ela falou, ao chegarem na areia. Os dois sentaram-se e a pequena voltou a engatinhar – Você voltou...
— Posso? – apontou para bebê que agora estava olhando para ele de forma curiosa, pegou-a delicadamente – Sou seu papai.
Glaw pediu para voltar para o colo de Lorna, quando se levantaram e seguiram a trilha que conduzia para o pequeno casebre. Vó Morgana estava do lado de fora, varrendo algumas folhas. Andou claudicante ao notar quem chegava junto da neta e bisneta.
— Eu sabia – murmurou – Vou preparar um ensopado. Você está muito magro – Venha, pequena – Glaw foi para o colo da bizavó, dando tchau para seus pais.
— Aran... – beijaram-se com mais intensidade, como se os corpos pudessem se fundir.
— Ouvi você me chamando pela chuva que nos separou. Ouvi gotas das histórias que me contava e respingos do nascimento e crescimento da nossa filha. A chuva me chamou e os ventos me trouxeram de volta – percorreu os lábios pela constelação de pintas no ombro que chamavam de Tynged – destino.
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
As palavras Glaw w Tynged procurei no google translator. As duas são palavras gaulesas.