Os Metais escrita por Izabella Andrade


Capítulo 1
Capítulo 1 - A Colheita




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O medo é um sentimento único. Há pessoas que temem o escuro e outras que se sentem perfeitamente confortáveis estando nele. Há aquelas se afligem com a altura ou com as ondas do mar, em compensação há outras que sonham em tocá-los. Para os bronzes, o medo era um sentimento simultâneo e concreto; para aprofundar-se no mar do desespero, bastava apenas ouvir o soar da corneta, os cascos da cavalaria tombarem contra a terra seca e a voz agitada de uma sentinela gritar:

 

“REI AMEL E O SEU EXÉRCITO ESTÃO CHEGANDO!”

 

A calmaria da terceira repartição de Chrysaur desapareceu. A melodia pacificadora dos bronzes flautistas acabou no meio de uma nota e uma explosão de tomou o seu lugar; todos os habitantes da barreira passaram a correr como formigas quando estão sob ataque de um tamanduá-bandeira. Cada bronze corria em direções distintas, alguns colhendo frutos ainda prematuros de suas hortas ou escondendo nas vestes esfarrapadas seus instrumentos musicais feitos a mão; outros recolhiam crianças que brincavam no pátio e os que nenhum destes tinha, procuravam lugares para se esconder. 

 

Corinne estava desesperada também. Junto de Albert, procuravam por Liam, irmão mais novo da garota, e não conseguiam encontrá-lo – o que era preocupante, já que o cabelo do garotinho era tão laranja quanto o fogo e o tornava impossível de não ser visto. O coração de Corinne batia em adrenalina e medo, pois sabia que se Liam fosse encontrado sozinho, provavelmente seria o fim de sua curta trajetória de vida. O rei não perdoava devedores, pecadores e muito menos órfãos. Liam acabaria sendo levado para a barreira Ouro e seria lá executado... Ou pior... Seria levado para os Pratas e o seu treinamento doentio em busca do soldado perfeito para o rei. Tal pensamento fez com que as pernas doloridas da garota se esforçassem para correr mais um pouco. Enquanto corria, Corinne usava cada prega de suas cordas vocais para gritar o nome do irmão, tendo a falsa esperança de deste modo ele lhe ouviria no meio da algazarra. Albert já estava metros a sua frente, as pernas longas se movendo tão rápido quanto um guepardo faminto em busca de um antílope. Estavam próximos o bastante da entrada e o relinchar dos cavalos já conseguia ser ouvido. O barulho de metal enferrujado ganhou som e um súbito silêncio se instaurou na repartição. Corinne se virou e como bonecos controlados a dedos, cada família estava defronte a sua barraca com sua colheita em mãos.  Não..., pensou Corinne.  Não, não, não! Agora não! O grande portão enferrujado se abriu e de dentro dele, surgiu uma dúzia de cavalos brancos galopantes. Suas celas eram douradas e ligadas a uma carruagem da mesma cor. Ao redor da carruagem, soldados com armaduras douradas e armas pontiagudas escoltavam o meio de transporte no qual estava o rei. 

 

O rosto de Corinne perdeu a cor e seus membros endureceram. Eles estavam dentro e agora não havia mais nada a ser feito; o rei provavelmente esmagaria qualquer formiga que estivesse em movimento. Com uma ação um tanto brusca, Albert agarrou o braço da amiga e a puxou para o lado, infiltrando-se em uma família qualquer, a qual apenas lhes direcionou um olhar silencioso de medo. Colunas eretas e olhares baixos, as famílias bronzes pareciam soldados no exército do pavor. Na frente de seus pés, haviam cestas e sacolas com frutas, hortaliças, legumes, galinhas mortas ou qualquer outra coisa que servisse para pagar a “estadia” e a “proteção” do reinado Ouro. O cálculo era simples: trabalhe, produza e dê ao rei o que foi por ti produzido.

 

A porta da carruagem foi aberta e dela desceu um homem com estatura não mais que 1.70; o seu corpo era franzino e recoberto por peças de roupa em ouro reluzente, o cabelo louro chegava até sua cintura e emaranhava-se milimetricamente em uma trança perfeita. Acima de sua cabeça havia uma coroa dourada com joias azuis escuras, assim como os detalhes da carruagem e da armadura de seus soldados. Um sorriso narcisista bordava seus lábios finos a medida que ele se aproximava dos cavalos. Assim como das outras vezes em que viera, bastou esticar as mãos para que o cocheiro descesse em um pulo e vestisse luvas azuis no monarca. Tocar em germes não era permitido na realeza. Amel caminhou até o pátio. Em passos calmos e escoltados por soldados, passava em frente a famílias e verificava com um olhar de desprezo as cestas postadas ao chão em uma análise prévia de seu conteúdo. O ar estava grosso e tenso, era quase difícil respirar. O medo pairava o ambiente. Caso o Rei decidisse que o dado era insuficiente, um integrante da família seria levado. 

 

 

— Bronzes. — ele iniciou seu discurso, um sorriso de escárnio combinando com a pose de superioridade. — Tenho certeza de que o que tens para me dar, darão de bom agrado. Espírito Ésper, O Criador, certamente ficará satisfeito com suas oferendas. No entanto, vejo que muitos dão mínima parcela do que de fato devem. Lembro-vos que a Colheita deve corresponder ao número de inset-... Integrantes, que compõe vossa família. Para o meu desagrado e o desagrado Daquele que nos rege, as providências serão devidamente tomadas pelo nosso efetivo exército de soldados, que uma vez já foram um de vós. Não há tempo para espera... Pratas. — e virou-se para o exército a suas costas. — Hora da colheita. 

 

Amel ergueu as mãos na altura do rosto e bateu a palma duas vezes. No instante seguinte, uma parcela dos soldados marchou em direção às cestas e o restante saiu em busca de crianças. O ar ficou ainda mais tenso. Familiares se abraçaram trêmulos que algum deles havia sido o escolhido para ser colhido e, ao fundo ouviu-se uma criança chorar. Na medida em que o choro ganhava volume, os pelos de Corinne se arrepiaram e ela sentiu Albert apertar forte a sua mão. Ela conhecia aquele tom. Albert segurava sua mão com tanta força que ela começava a formigar. De maneira discreta, a garota ergueu o olhar e o seu maior medo se tornou real.

 

Liam estava ao lado da carruagem real. Seus joelhos sangravam, ele mancava e o rosto sardento estava vermelho. O seu choro era quase silencioso, já que, como ensinado, ele mantinha as mãos na boca para evitar ser escutado. Os olhos negros buscavam apreensivos por ajuda. O coração de Corinne saltou pela a boca e sua nuca gelou.  Em um impulso, tentou correr até ele, mas a mão esquerda de Albert segurou sua cintura para impedi-la. Se saísse dali, não somente Liam seria levado, mas também ela e a família na qual se infiltraram. “Talvez  eles não o vejam”, o amigo sussurrou.

 

— Ouço alguém chorar em minha presença... — a voz de falsa calmaria de Amel cortou os ouvidos da dupla. — Onde estás?... Apareça...

 

Corinne viu Liam empalidecer, depois suas mãos apertaram ainda mais seu rosto e a vermelhidão voltou a tomar conta. Em menos de um segundo, o choro havia se tornado ainda mais alto. Em um momento de inconsciência, o desespero tomou conta do ruivo e ele desatou. No mesmo segundo, soldados correram em sua direção. O garoto correu o mais rápido que pôde, gritando em meio ao choro e tropeços pelo nome da irmã e o nome do pai. Em um ato irracional, Corinne desferiu uma cotovelada no estômago de Albert, desvencilhou-se e correu o mais rápido que pôde em direção ao irmão. Ainda estava distante quando os soldados o alcançaram. Ele berrou em desespero, debatendo-se como um animal em direção ao abate. O mundo a volta de Corinne desapareceu e as batidas de seu coração ecoavam em seu ouvido enquanto ela corria. 

 

— Faça-o se calar. — Amel ordenou, dobrando a face em uma expressão de desgosto. 

 

Tão rápido quanto um raio, um dos soldados desferiu um soco entre o pescoço e ombro do ruivo. Os gritos do menino cessaram e o corpo magricela amoleceu nos braços do soldado, o qual o soltou, deixando que seu corpo caísse no chão em um baque. 

 

— NÃO! — Corinne berrou, finalmente alcançando-os. Jogou-se de joelhos em frente aos soldados e puxou o corpo do irmão para si.  Corinne estava aos prantos, seu queixo e ombros tremiam enquanto ela dava batidinhas leves no rosto do mais novo em uma tentativa de acordá-lo. Ela passou a mão por seu cabelo ruivo, o que deixou sua mão ensanguentada. Corinne a encarou, completamente trêmula. Seu rosto voltou a ficar pálido e os ombros passaram a tremer em um choro.

 

Amel abaixou o olhar, observando a cena deslumbrado. Sua personalidade era cruel. O sofrimento, o desespero e a destruição dos sentimentos de outrem eram a sua energia vital. Os soldados ameaçaram avançar em direção aos bronzes caídos no chão, mas um elevar de mão do rei os impediu.

 

— Ora... O que temos aqui? — o rei indagou com um tom de humilhação. Com lentidão, Corinne ergueu o rosto para olhá-lo com desprezo. — És ele fruto de teu ventre? Tsc. Tão jovem para ser uma genitora... Porventura, tens tu oferendas suficientes para a colheita? Ou hei de termos dois novos soldados para o exército?... — Albert chegou no mesmo instante, se pondo atrás de Corinne. — Oh, o genitor. Três novos soldados.

 

— ...S-Senhor. — Albert pigarreou, encolhendo os ombros como uma tartaruga tímida querendo se esconder dentro do casco. As mãos movendo-se nervosas. Agachou-se ao lado da morena e tomou o ruivo em seus braços. — Desculpe, meu senhor. R-Rinne, vamos...

 

O rei cruzou os braços, curioso com a cena que se seguia em frente dos seus olhos. Cochichou algo com o soldado que estava ao seu lado e este saiu. Corinne se levantou com o olhar baixo, evitando olhar para Amel. Liam ainda estava inconsciente no colo de Albert, os braços molengas envoltos em seu pescoço e a cabeça deitada em seu ombro. Albert se distanciou, ainda proferindo pedidos de desculpa. 

 

— Pois bem. — ele disse a dupla. — Podem ir e tomem cuidado, da próxima vez não terei compaixão com sua criança.

 

Albert rapidamente puxou Corinne, a qual se deixou ser levada pelo mais velho. Simultaneamente, o soldado que havia partido retornou trazendo consigo três crianças e dois adultos. A mãe abraçava as crianças fortemente e o pai abraçava os quatro, ambos em pranto.

 

— Senhor, temos a família. 

 

Amel desviou sua atenção para o soldado e a família, sorrindo ainda mais largamente. Uma risada abafada ecoou de seus lábios, o que fez com que as pernas de Corinne parassem. Por alguma razão, a risada fez com que seu sangue corresse mais rápido.

 

— Não és esta sua família, bronze? Tenho a plena certeza de que vi tu correres daquela direção.

 

Corinne direcionou o olhar para o pessoal ao qual ele se referia e sua caixa torácica amassou seu coração. Era a mesma família a qual ela e Albert haviam se infiltrado. Albert recuou alguns passos e desviou o olhar, apertando Liam em seus braços em uma tentativa de diminuir a culpa.

 

— Eles não fizeram nada. Não temos o mesmo sangue. — a garota tomou força para dizer. — Apenas me escondi no meio deles. Tinham o suficiente para a colheita. Não pode levar quem bem entender na hora em que quiser. Deixe-os em paz. Está desagradando Ísper.

 

O rei arqueou uma das sobrancelhas, incrédulo. Os soldados a sua volta apertaram os punhos contra a espada. Amel era narcisista e poderoso, mas não tinha inteligência emocional o suficiente para lidar com situações de stress. Um sorrisinho delineou o canto dos lábios do homem, o qual se aproximou da garota em passos largos. A mão envolta pela luva de veludo azul-real apertou as bochechas de Corinne, deixando-as ainda mais vermelha graças ao seu estado anterior. Conforme ele lhe apertava, Corinne conseguia sentir toda a sua energia e coragem, junto da adrenalina, darem lugar para o medo.

 

— Muito bem. — disse, direcionando seus olhos amarelados aos castanhos da garota. Naquele momento, ela soube que mais para frente se arrependeria de ter aberto a boca. — Quem pensas que é? Achas que tem permissão para falares comigo desta maneira? Achas que pode dizer o nome dele em minha frente?

 

A mão do rei desceu com lentidão em direção ao pescoço da garota, obrigando-na a fechar os olhos. Corinne voltou a sentir sua nuca gelar e o coração saltitar em desespero. Os dedos afundaram contra a pele clara, mas antes que ela sentisse falta de ar, a mão em seu pescoço fora bruscamente retirada dali. Corinne abriu os olhos e recuou assustada, levando ambas as mãos até o pescoço livre.

 

— Está na hora de ir, Amel. — uma voz grossa invadiu a conversa. — Sua carruagem está farta. Ésper certamente já está satisfeito com a colheita. 

 

Corinne direcionou os olhos para o homem que falava e ao ver de quem se tratava, um choque de alívio percorreu seu corpo. O seu pai estava a sua frente, impedindo que o rei lhe tocasse. No entanto, sua cabeça estava encoberta por uma faixa transversal e ensanguentada que a própria garota havia feito no dia anterior. Um curativo para a ferida que havia sofrido na cabeça e corte profundo no sobrecílio. 

 

— És tu um conhecido meu, bronze? — a tonalidade do Ouro era de um desprezo cortante. Sem qualquer aviso prévio, o soldado guarda-costas acertou a ferida do homem com o punhal da espada. Corinne soltou um grunhido de surpresa, enquanto Fergus soltou um urro rouco de dor. — Ou achas que tens permissão para adentrar em meu diálogo desta maneira, sem que eu lhe ordene?

 

— Não, senhor. Não sou nenhum conhecido. — Fergus respondeu, levando a mão até a área que voltava a sangrar. — Esses... Esses três são meus filhos. Perdoe-me pelos seus atos, são apenas crianças.

 

— Aprendais a cuidar melhor de suas proles, portanto. — não dizia isso por preocupação, mas sim porque quanto maior a família, mais o rei recebia. — Espero que a sujeira que banha seu sangue não causes nenhuma infecção em sua ferida. Seria uma pena ganhar tantas crianças órfãs para batalharem em um só dia. 

 

Corinne percebeu o pai tensionar o maxilar, mas nada saiu de sua boca, apenas uma anuência fraca com a cabeça. O Rei Amel o encarou com firmeza, quase como se tentasse reconhecer quem era o rapaz com quem falava. Naquele momento, o bronze não sabia, mas futuramente se arrependeria de seus atos. Exausto, Amel suspirou e limpou as luvas em suas vestes e se distanciou. Os soldados, que envolviam Fergus e Corinne com lanças e espadas, se distanciaram e voltaram a cercar a carruagem. Um abriu a porta para que o Rei entrasse. De soslaio, o olhar do monarca foi em direção a família, a qual começava a ser acorrentada e presa atrás da carruagem.

 

— Deixe os três menores para que o nosso salvador cuide. — ordenou, referindo-se as crianças. — Tenho certeza de que ele possui o suficiente para alimentá-los e para a Colheita.

 

As crianças voltaram a chorar e a negar com as cabeças, mas os pais acabaram permitindo que ficassem. Há momentos em que ser um exilado é melhor que ser um prata e ver seus pais serem mortos. Os soldados retiraram as algemas dos punhos magricelas dos filhos e os jogaram contra a terra seca. Corinne logo saiu de trás da musculatura forte de seu genitor e correu em direção aos trigêmeos, os quais também correram em sua direção, buscando proteção. Ao erguer o olhar, as íris castanhas se chocaram com as do rei. 

 

— Vejamos como a sua querida família se saíra na próxima Colheita... — Amel disse, sorrindo para a menina. — Estou ansioso para ter a primeira garota a ser morta no Exército Prata. — e ergueu um olhar assassino para o pai. — Ou o primeiro adulto. 

 

O medo é um sentimento único.

 

E o de Corinne havia acabado de se realizar. 

 

 


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