There Is a Heaven In Hell escrita por Urbvis


Capítulo 1
There is a heaven in hell - Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Eu criei essa história com alterações na narração. Ou seja, ela se alterna entre os dois protagonista, há uma hora também em que aparece um narrador, mas por causa de um terceiro elemento na história.
Não é tão complicado como parece, ao terceiro parágrafo já dá pra se acostumar com o ritmo da história.
Para que fique mais simples para os mais devagar, coloquei um asterico para identificar a troca.



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      E eu estava de volta ali. Era tudo que mais odiava no mundo, e parecia que a oportunidade de fugir do inferno me escapava pela mão mais uma vez. A oportunidade de ser livre pra voar para bem longe daqueles animais, daquela vida miserável que me foi apresentada como sem escolha. Tive a impressão que dessa vez eles iam ser as piores bestas que já havia visto – todavia, eu sempre pensava assim - mas como será que iam conseguir um absurdo desses? Bem, não estava ao meu alcance imaginar o castigo que sofreria aquela noite, estava cansado, machucado e ainda seria emendado de novo. Meu corpo inteiro latejava, o braço ganhava destaque. Mark o puxou com tal força, que pensei ter o arrancado fora, mas por algum motivo ele ainda estava ali. E falando em Mark, ele não parecia nada feliz, andando de um lado para o outro umas milhões de vezes, esperando, com certeza, o Senhor Barris aparecer, e os encontros com o Senhor Barris nunca eram agradáveis a ninguém, quanto mais a mim.

        Era a terceira vez que tentava fugir daquela prisão, o macacão laranja três vezes maior que meu corpo marcava claramente ‘Centro de Detenção Juvenil’ em um bordado preto, logo abaixo do peito, que no meu caso, ficava bem mais embaixo. Ouvi a porta se abrir, e vi o Sr. Barris entrar silenciosamente pelo cômodo em minha direção. Tremi. A presença do homem a minha frente me deixava com um medo fora do comum. Tudo que já sofri na mão daquela besta não era pra ser esquecido em poucos dias. As dores que ainda habitavam meu corpo e minha mente torturavam-me noite após noite, na qual eu todo o tempo rezava para a lua, pedindo com os olhos sempre molhados, que me tirassem dali, mesmo que a única saída fosse o céu. O homem parecia com sono, as olheiras eram profundas e se via claramente a luta para deixar os olhos negros abertos. Certamente ficara acordado até tarde vendo a TV, e não teve muito tempo dormindo até que ligassem avisando que um daqueles ‘merdinhas’ havia fugido, e para alegria de Alfred Barris, era novamente eu, Jonathan Jorkins.

     Meus pés descalços mal encostavam o chão, doíam só de pensar - no estado que estavam - em encostar no chão frio, ascendendo a dor. De tanto correr, a sola estava tão fina quanto o papel higiênico que nos davam pra usar, quando davam. Sentado na cadeira fria no centro daquela sala vazia, vi o Senhor Barris chegar na minha frente, fitar meus olhos verdes vibrantes, encarando os dele, tão negros quanto aquela noite. Não tive tempo de pensar, senti a mão pesada dele cair sobre meu rosto, deixando-me atordoado com a mão sobre o ferimento que já ficara vermelho sobre minha pele pálida.

 

- MAS QUE MERDA VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO? – Vociferou na minha cara, me segurando pelo queixo e obrigando a encará-lo enquanto cuspia ao falar. – SERÁ QUE NÃO ENTENDE QUE ESTÁ DIFICULTANDO AS COISAS, SR. JORKINS?

    

    Com um certo tempo naquele lugar, a gente acaba aprendendo a nunca responder se não quiser complicar a situação. E eu com uma boa experiência, apenas escutava, tentando ignorar meu rosto já molhado por aquele porco imundo demoníaco. Fazia já quatro meses que eu estava lá. Era quase uma tentativa de fuga por mês, mas eu estava desesperado. Não era o único, nem o primeiro a tentar fugir, mas o mais necessitado. Eu não iria sobreviver muito tempo lá, os meninos que lá viviam eram três vezes maiores que eu, e no mínimo cinco mais egoístas e frios, sem dizer que eu devia ser um dos mais jovens do estabelecimento. Se é que aquele chiqueiro podia ser chamado assim.

    Quando Sr. Barris finalmente parou de falar, deu outro tapa no meu rosto, na outra bochecha, e saiu, em silêncio. Fiquei imóvel por algum tempo, até a levar a mão ao outro ferimento. Tive vontade de chorar, mas sempre reprimia esse tipo de sentimento. Não queria aparentar fraqueza. Apesar da minha idade, agüentava muita coisa que deveria ser insuportável. Mark entrou em seguida, rindo. Me dava vontade de vomitar só de olha-lo, mas, isso também me daria problemas.

-         Seu merda enfia na sua cabeça vazia que só sairá daqui aos 18 anos, se continuar a tentar fugir desse jeito. – Isso era o que ele achava, mas eu só ia saber tentando. Ele me pegou pelo mesmo braço que pegara mais cedo, despertando a dor que estava quase esquecida. Num bruto movimento, me levantou da cadeira e mal pondo os pés no chão fui carregado daquela sala. – Vai passar a noite na Unidade de Crise, sem comida e sem cobertor, amanhã, dependendo do meu humor, te tirarei de lá.

  

   Merda. Unidade de Crise era a solitária daquele inferno, e lá era frio, muito frio. Quando me vi descalço, sem cobertor, trancando entre quatro paredes minúsculas, meu desespero despertou. Merda. Tudo dava errado pra mim. Parecia minha sina. Sentei no chão e me encolhi, buscando pelo calor do próprio corpo para me aquecer, era tudo que tinha. Minha mãe havia morrido há dez meses, e sem pai, fui mandando para a casa de uma tia. Ela era uma boa mulher, mas humilde, já passava por dificuldades, e um garotinho de 13 anos não era o que ela precisava. Porém, me recebeu de braços abertos. Fiquei pouco tempo lá, mas foi uma época feliz. Ela trabalhava o dia inteiro e eu mal a via, mas à noite, costumávamos a jantar vendo televisão, e jogávamos uma partida de xadrez antes dela me por na cama. O apartamento que moramos era pequeno, limpo, incrivelmente confortável, e eu adorava aquele lugar mais que qualquer outro. O lar que me acolheu. Que me fazia feliz, que me fazia crer que minha mãe estava feliz por mim. Até que via ela cada vez menos, ela dizia sempre que precisava trabalhar um pouco mais, imaginei eu que ela fazia horas extras pra me sustentar, percebi que nós quase passávamos fome, e sem querer ser um fardo para Tia May, fugi de casa uma noite. Poucos dias na rua, logo vim parar aqui. Só de pensar nisso, um frio surgiu em minha barriga, e parando de pensar nessas coisas, dormi. 

 

 

*   

    

      Ele nunca aprende. O que será que o nanico tem na cabeça? Deitado na cama desarrumada daquele suposto dormitório, pensava no meu companheiro de quarto. Johnny tentara fugir de novo. De novo. Era a terceira vez que tentou, pensei no tamanho do desespero do menino para sair dali, afinal, se nunca tivesse tentando escapar, já estaria livre. Sua sentença era de dois meses, e já estava ali a quatro, tendo outros quatro pela frente, e com certeza, essa terceira fuga não sairia impune. A primeira noite que soube que o anão tentou fugir, me surpreendeu que ele não voltou no mesmo dia, nem no seguinte, sendo pego apenas no terceiro dia, da segunda vez ele acertara um dos supervisores com uma pancada na cabeça, o que lhe custou severos castigo e vários hematomas. Sabia que ia passar essa noite sozinho, não que me importasse com aquele idiota.

    Havia visto Mark passar para sala de supervisor chefe, ou chefe dos guardas, por que na realidade, os supervisores eram guardas, e se minha capacidade de dedução fosse tão boa quanto eu pensava, já haviam pego Johnny, e estava indo ligar pro Barris. Merda nanico.  Na realidade, eu e Johnny nunca conversamos em dois meses em que dividíamos a mesma cela. Eu ignorava sua presença indiferente, e ele parecia ter medo de mim. Não o culpo, mas confesso que me surpreendi quando ele me deu um ‘boa noite’ no primeiro dia que dormiu aqui. Não respondi, mas na noite seguinte ele repetiu, e continuou repetindo até hoje, mesmo sem nunca ter obtido resposta alguma vinda de mim.

   Eu odiava o Centro de Detenção Juvenil acima de tudo, dos polícias, do meu irmão, e dos cães da vizinhança de onde cresci. Aquele lugar era podre, assim como as pessoas que haviam ali, tanto os internos quanto aos supervisores. Tinha um ódio em especial por Mark, o supervisor chefe, que devia ter seus 33 anos, e uns dez trabalhando ali. Era um homem bem forte como já havia sentido na pele várias vezes, tinha profundos e vazios olhos azuis, e o cabelo preto, curto. Era uma presença incrivelmente desagradável, que descontava toda a raiva de sua miserável vida sobre os internos que, aliás, eram todos porcos também. Porém com eles nunca me preocupei, já havia consolidado uma reputação, a de ser um dos mais perigosos daquele lugar. Não sabia que motivos havia, na minha concepção esse medo era indiscritível, mas de qualquer forma apreciava o respeito e fazia de tudo para mante-lo, até mesmo ignorar um pobre menininho que me dava ‘boa noite’ todos os dias. Johnny era diferente das pessoas daquele lugar, e muito diferente de mim. Parecia ser a única alma com salvação na filiação do próprio inferno na terra, tendo apenas caído no lugar errado. Não tinha pena dele, apesar de que era apenas uma criança, não que eu com meus 16 anos fosse um grande adulto, mas já havia visto muita coisa nessa vida, e sabia que o lugar de garotinhos inocentemente angelicais não era ali.

 

*

   

    O dia nasceu, o sol não era quente aqueles dias, mas iluminava o pátio do Centro de Detenção Juvenil de Washington. O prédio era enorme, por fora tinha uma aparência estável, as paredes brancas, e um gramado respeitável, parecendo uma escola primária de qualquer bairro classe média. Mas por dentro era quase Niflheim. As paredes amareladas e sempre sujas continham todo tipo de escrita, o chão fedia a urina, a comida parecia ser a mesma de décadas atrás, e o lugar era frio como um iceberg, bem contraditório ao inferno. Os internos eram como animais irracionais buscando sobrevivência, e os supervisores, domadores de leão tentando lidar com dinossauros. Havia de tudo naquele lugar, pirataria, drogas, prostituição, e claro, corrupção.

      Um dos supervisores, Harry Michaels, era novo naquele lugar e não sabia muito bem lidar com os adolescentes em fúria. Com seus 22 anos e um coração mole, ele havia sido encarregado de liberar o menino na Unidade de Crise apenas às 5h da tarde, dando-lhe apenas um copo de água como almoço, e era isso que ele estava indo fazer. Com um copo de água quente na mão, se dirigia pelo corredor extenso, até chegar a uma das 15 portas daquele andar, tendo apenas uma ocupada. Abriu a porta para deixar o copo de água no chão, mas se paralisou com o que viu. Um menino estava todo encolhido no canto do chão, se tapando com um lençol finíssimo, tremendo de frio. Os cabelos castanho claro - ou louro escuro, ele não sabia definir - estavam grudados à cabeça, sujos e bagunçados. Pôde notar também os pés dele descalços, vermelhos, e inchados, cheio de feridas que ainda estavam sujas, as íris verdíssimas se abriam lentamente para ver quem abrira a porta e perturbava seu sono. Era uma visão realmente confortante dentro de toda aquela jaula de lugar, o rosto dele era delicado como uma pena, da cor das nuvens. Seus olhos eram grandes e envolventes, e seu nariz era bem definido, se ajustando perfeitamente ao contraste com os grandes olhos. Sua boca tinha uma coloração rosada e natural, seus lábios pouco carnudos. Havia algo naquela fisionomia que reconheceu imediatamente como vida. Aquela face de porcelana a sua frente ainda parecia viva, diferente de todos sobre aquele mesmo teto. Michaels ainda pôde notar o rosto pouco inchado e um corte sobre o lábio inferior, deixando-o ainda mais carnudo, as olheiras dele revelavam poucas horas de sono, e ao vê-lo espirrar, imaginou que deveria ter pegado um baita resfriado uma noite inteira ali. Harry pôs o copo no chão e olhou-o, com um fraco sorriso nos lábios.

-         Seu almoço, Jorkins. – O menino levantou devagar, ainda meio lesado pelo sono, olhando o supervisor como se fosse de outro planeta.

-         Obrigado... Senhor... Senhor... - Apertou os olhinhos para poder enxergar o crachá que ele pendurava no bolso do uniforme. – Sr. Michaels. – Michaels achou engraçado o modo que o menino agradeceu e se perguntava como aquela criaturinha fora parar num lugar como aquele, afinal ele parecia ser tão bonzinho.

-         Então menininho, o que fez para parar aqui? – Johnny olhou-o confuso, mas sorriu encantadoramente.

-         Aqui no centro ou aqui na Unidade de Crise?

-         Na Unidade de Crise. – Riu Harry.

-         Ah, eu tentei fugir... - Jonathan o olhou meio tímido. As pessoas nunca conversavam com ele, muito menos um supervisor, mas aquele cara parecia interessado no seu caso. -... Mas só tentei por que não posso ficar aqui!

-         Não pode? E por que não pode?

-         Por que vou morrer. – Os olhos castanhos do homem a sua frente o fitaram confusos e perplexos. Morrer? Do que o menino estava falando? Será que a imaginação dessas crianças era tão fértil assim?

-         Por que vai morrer, Jonathan?

-         É a primeira vez que me chamam pelo primeiro nome aqui. – O pequeno ria se esquecendo por completo da pergunta que o adulto fizera. Pegou o copo de água que estava ao chão próximo à cama e o bebeu em um único gole. – Obrigado, estava com cede.

 

 

 

 

   *

 

       Senhor Michaels parecia ser uma boa pessoa, mas boas pessoas não duravam muito tempo ali. Se sentiria agoniado com as injustiças daquele lugar, e logo para não acabar enlouquecendo, ou tendo o peso de um elefante na consciência, ele iria embora. Todavia, algo nele me afeiçoou, uma afeição familiar, como de um irmão mais velho. Tinha um rosto amigável, e não parecia ter muito mais que uns 20 anos. Se encontrava agachado ao meu lado no chão enquanto conversava comigo. Levantou-se num instante, espreguiçando-se.

-         Tenho que ir agora, baixinho. – Por que todo mundo me chamava assim? Eu ainda iria crescer! – Tenho trabalho a fazer.

-         Ah... O.k. então, Sr. Michaels. – Não pude deixar de entristecer, baixei a cabeça ao pensar em mim sozinho novamente naquele lugar. Logo eu precisaria fazer xixi - já estava segurando há muito tempo - e aí o lugar ficaria fedorento. Harry parecia ter notado minha rápida mudança de humor.

-         ...Podemos fazer um acordo?

-         Que? Que tipo de acordo? – O supervisor riu, e abaixou o tom de voz.

-         Vou deixar você sair daqui mais cedo, mas tem que me prometer que ficará quietinho no seu quarto e...

-         Cela. – Corrigi.

-         ...Não sairá de lá. E caso te perguntem, você saiu às 5h. Pode ser? – Meu sorriso cresceu de orelha a orelha.

-         Sim! Claro! Ficarei quietinho! – Disse empolgado, já me levantando do chão.

-         Certo, então passa daqui. Corre. – Dizendo isso, dei um rápido abraço na cintura de Harry e corri para meu dormitório. Abri a porta com presa e fechei-a batendo. Quando olhei para frente, Dexter Gilstrap havia matado aula pra variar, e estava parado, deitado em sua cama.

 

     O garoto brincava com um canivete, o que não me deixou mais calmo. Era pálido como papel e tinha cabelos incrivelmente negros, seus olhos eram castanhos amarelados, e sempre tinha mais olheiras que eu. Apesar, seu rosto era extremamente delicado, formado por linhas sutis que lhe dava uma beleza mal cuidada, quase escondida por seu relaxamento. Tinha lábios finos, quase sem cor, como a pele. Seu nariz era comprido e ossudo, dando lhe um ar mais sério. Parecia sempre desgastado, e irritado. Seus olhos de serpente fuzilavam tudo ao seu redor. Eu sempre admirei as mãos dele. Eram grandes, com dedos delgados e compridos. Não eram gordinhas como as minhas. Ele era magro e alto, e eu realmente tinha muito medo dele, dormir todo dia ao seu lado era muito pra mim. Eu buscava ser simpático, mas não tinha coragem de lhe dizer nada, o que talvez fosse melhor. Senti seu olhar cair pesadamente sobre mim quando entrei. Estremeci.

   

    

*   

 

     O sangue saia lentamente de baixo da minha unha. Idéia estúpida de limpar a unha com o canivete, é lógico que iria me ferir, não que doesse, mas sangrava. Ouvi a porta bater de repente, surpreso, vi o menino Johnny entrar. Estava com a respiração acelerada, havia corrido, e o modo que estava parado atrás da porta denunciava certa preocupação com alguma coisa, afinal o garoto era quase inabalável, qualquer mudança de humor era perceptível.

   Devagar, Jorkins se dirigiu até a cama dele, sentando-se na mesma, ainda procurando acalmar a respiração. O segui com o olhar analítico, e o loiro abaixava a cabeça fugindo de me encarar. Achei graça e pela primeira vez, não consegui evitar rir com o nariz. Ele me olhou curioso, e fitando aqueles olhos tão mágicos e verdes, senti uma gigante estranheza. Era como se houvesse uma imensidão naquele olhar tão perdido e confuso. A profundidade contida ali era até de assustar. Fiquei completamente hipnotizado por aquele olhar que conhecia há meses, sem nunca ter sido engolido pelas íris verdes. O loiro piscou algumas vezes, o que quase me irritou, por me tirar a visão que tinha, nem que por questão de milésimos. O baixinho, já sentado na cama começava a se assustar com meu fitar de olhos tão penetrante, e me dando conta do que fazia, desviei minha membrana ocular tão amarelada do tão perfeito verde que ele continha dentro de si. Não pude olhar para contemplar, mas tenho certeza que o moleque, num gesto tão singelo e imaginável, sorriu.

    Ignorando a talvez demonstração de afeto daquele anjo sentado na cama ao meu lado, me virei para a parede, fugindo de olhá-lo. Era a primeira vez, em toda minha vida, que fugia de alguma coisa. Desde criança encarei tudo que me aparecia com o peito estufado, não me importando com as conseqüências que sofreria – Por isso estava ali –. Apanhei diversas vezes por conta da minha maneira impulsiva e quase irracional de agir em determinados momentos, mas era a forma que eu tinha de aprender a lidar com esses momentos de minha personalidade duvidosa. Mas pela primeira vez me vi sem saída. O que ia fazer, bater no menino por ter me olhado? Descontar nele minha irritação de ter tido minha garganta seca ao encarar o vibrante verde de seus olhos também não era plausível. Me afoguei naquelas esmeraldas, e a única maneira de não me perder completamente por elas, era fugir, parar de admirar tão perfeita obra da natureza humana. Não acreditei nas coisas que pensei aquela tarde, ao fitar a parede, perdido em meus próprios complexos.

               

 

*

 

    Estranho.  Era a única palavra que encontrei em minha mente para definir os minutos atrás. Agora, Dexter estava virado para a parede, provavelmente dormindo, mas ter aqueles olhos de serpentes tão fixos em mim deixou todo o meu corpo em clima de natal, nevando por dentro. Minhas mãos tremiam descontroladamente. Tentei me acalmar, mas foi a primeira vez em mais de dois meses dividindo a mesma cela que o outro me olhara, e de forma tão profunda que me senti perfurado pelas íris amarelas. Aqueles olhos de serpentes tão fixos e inexpressivos, que me destruiriam se continuassem a me hipnotizar como haviam feito.

     A tarde se esvaecia, o céu alaranjado podia ser visto atrás da pequena janela do dormitório, atrás das grades. Ver o sol se pondo quadrado mais uma vez. Eu estava ciente que era o horário de aula – Ou algo parecido – já tinha terminado faz tempo. Agora podia sair, e dizer, em todo caso, que passei a tarde inteira na Unidade de Crise. Ainda com medo do moreno deitado na outra cama, levantei-me, e com pressa, saí do quarto. O sistema do centro de detenção juvenil não era complicado. As 7h eram abertas às portas do corredor, onde se deveria ir tomar café da manhã. As 8h começavam as aulas, normais, com direito a almoço 12h e término às 15h. Desde então até a hora do jantar, às 20h, os jovens ficavam soltos. Animais soltos. Cadelas no cio, e cachorros com raiva. A biblioteca era pobre, porém suficiente, e abrigo para mim.

     A biblioteca ficava um pouco mais afastada dos outros aposentos, o que a fazia ganhar um ar ainda mais pacífico. Era um lugar grande e bem iluminado, apesar de como todas as outras câmaras do lugar, suja e mal cuidada. Além das várias estantes com livros, havia umas cinco mesas, rodeadas de cadeiras de madeira, sem o mínimo conforto. Mas adiante, um sofá velho e rasgado, meio escondido atrás das estantes, era meu canto favorito em toda a filiação do inferno. O bibliotecário, Senhor Jones, era um homem extremamente calmo, e como a biblioteca, a maioria dos dias passava sozinho. Quando entrei pela porta, ao lado da mesa do senhor de cabelos grisalhos, que sorriu para mim como de costume, e eu devolvi-lhe o sorriso, logo passando por ele para escolher que mundo novo eu viajaria para fugir da prisão aquela tarde. Escolhi qualquer coisa que vi na minha frente, tendo a estranha certeza que não voltaria minha completa atenção à leitura. E eu estava certo. A visão dos olhos amarelos não me saía da cabeça.

 

*

      Não estava afim de jantar. Aquela gororoba que eles serviam só mal dava pra forrar o estômago. Preferia comer algo melhor no café da manhã – E ficar com fome até lá – do que ingerir aquele grude. Meu corpo chegava a ficar dormente só de pensar que passei o dia inteiro deitado naquela cama, levantando apenas para ir até o banheiro e comer alguma coisa nas refeições anteriores. Não existia mais uma posição de extremo conforto naquela cama dura na qual era obrigado a dormir. Não tomava banho há dois dias, nem estava a fim de tomar. Meus cabelos chegavam a brilhar de sujeira, mas num lugar sujo pela hipocrisia, as caspas não me pareciam tão mal. Sentei na cama, de novo. Olhei no relógio, marcavam 20 horas e 23 minutos. Ainda bem, mais um dia estava acabando. Logo, às 21h os portões seriam fechados e aquela encheção de saco de todos os dias, de passar de cela em cela verificando os animais apreendidos logo começaria.

       A porta do quarto se abriu, dessa vez com delicadeza, e antes de vê-lo, sabia que era Johnny. O menino entrou no quarto de cabeça baixa, me impedindo de acabar devasso novamente pelas esmeraldas esculpidas em seu rosto de porcelana. Com um livro nas mãos, foi até a cama onde caiu de bruços, completamente esparramado na mesma. Continuei ignorando a presença do menor, voltando ao que estava fazendo, mesmo que fosse nada.

      Ouvi barulho no corredor, e obviamente os supervisores estavam passando. Era um supervisor por andar. O nosso andar era Mark. Não sei se era sina, mas tinha uma explicação para a perseguição do supervisor. Como já sabe, Mark era o infeliz supervisor chefe, um verdadeiro guarda policial. O andar de dormitórios que eu habitava, era no último, e o mais atrás possível. Essa distância se deve a classificação dos problemáticos para os não tão problemáticos. E eu me encaixava no primeiro citado. Minha cela ainda era a última, do lado da parede, o que faria demorar um pouco mais para ver a cara nojenta de Mark.

 

*

 

      Não queria que ele visse. Não queria que ao fixar aquelas pequenas esferas amarelas em mim, percebesse o quanto eu era fraco. O quanto eu era pisado pelos outros. Os garotos que comandavam o tráfico de drogas naquele lugar certamente adoravam tirar uma com minha cara. Diziam diretamente que eu deveria ser gay e dar o cu para Dexter Gilstrap, que era a única maneira de eu estar vivo a tanto tempo no mesmo dormitório que ele. Eu negava, e por isso, apanhava. Meu olho estava roxo e inchado, e também havia marcas nos braços e no meu peito, mas essas o macacão laranja escondia muito bem. Já ouvia a voz de Mark se aproximar, e como nosso dormitório era o último, aposto como ia parar ali pra zombar de nós com aquele maldito ar superior dele, como aquele verme sempre fazia questão de exibir sua cara porca só de saber que tinha vontade de vomitar ao vê-la.

     Como infelizmente esperado, Mark abriu a porta e conferiu que os dois estavam lá dentro, mas não se contentou com isso.

-         Gilstrap, você tá sendo chamado. – Disse o supervisor com uma fisionomia séria, chamando aquelas íris amarelas que o fitavam – na qual eu adoraria ter sob mim novamente – que pareciam imóveis. – Eu disse que você está sendo chamado, Gilstrap, agora.

-         Por quem, e aonde? – Perguntou meu companheiro de cela, impassível como sempre. Enquanto eu olhava pelo olho que estava inteiro, e sem dor, escondendo o outro no travesseiro.

-         No 5º andar. Pelo supervisor de lá. – Deu de ombros sem se lembrar do nome do companheiro de trabalho. Gilstrap arqueou uma sobrancelha, ainda estranhando a situação, mas mesmo assim se levantou, todos os gestos com calma, e dirigindo-se até a porta, saiu, batendo a mesma no lugar. Ótimo, eu estava sozinho com Mark.

-         E você moleque? – Levantei-me para olhá-lo, perguntando com os olhos o que mais ele queria, mas o filho da puta caiu na gargalhada ao ver meu rosto roxo pelas pancadas dos outros meninos à tarde. – Olha só o que fizeram com você, bonitinho. O que andou aprontando? – Raiva me tomou a cabeça. Minha vontade era enforcá-lo ali mesmo, mas além das conseqüências, eu não tinha forças para isso. Porém o supervisor de olhos azuis na qual me afogava com o olhar gélido que me mandava, agia estranhamente.

 

 

*

     É claro que havia algo errado, todo mundo sabia que o supervisor de dois andares abaixo era o novato Michaels. E o que um novato poderia querer com comigo? Cruzei os braços e encostei na parede ao lado da porta, esperando que Mark saísse para voltar a minha cama e dormir, mais. Alguns minutos se passaram até eu ouvir algo que realmente não esperava ouvir. Lá de dentro, Johnny gritava, como se tivesse algo sufocando sua boca, mas eu podia ouvir claramente que pedia para que Mark o soltasse. Fiquei intrigado, o menino já apanhava o suficiente dos caras do crack e agora seria castigado fisicamente pelo supervisor também? O que todos tinham contra o dono de olhos tão bonitos? Dessa vez, talvez por descuido de Mark, o grito ecoou pelos corredores e eu não me movi. Se ele estava apanhando ou não, era problema de todos, menos meu. Se ele tinha uma rixa com o supervisor e se resolviam por contatos físicos, o problema também não era meu. Mas me ocorreu um pensamento mais egoísta ainda, e sem pensar duas vezes abri a porta. Não estava pronto pra ver aquela cena.

      Mark estava, não batendo como imaginei, mas assediando o pequeno Jonathan. Ver o supervisor sobre o menino, com o zíper da calça aberto, e o cinto desafivelado foi grotesco. Ver meu anjo, chorando na cama, com todos os botões do macacão laranja abertos, exibindo-lhe até a roupa íntima, foi uma visão.

-         Mark, Mark, apelou agora, não? – O olhei de forma tão fria, continuando de braços cruzados encostado com o ombro na porta, que acho que o próprio supervisor se assustou com a surpresa.

-         Não se meta! Não se meta! – Disse enquanto se levantava, tentando se recompor.

-         Se Johnny o denunciar, eu serei testemunha, que fique claro. Se acontecer de novo, serei obrigado a tomar medidas mais... Práticas. – Não entendi por que o ameacei, mas de qualquer forma, via a gratidão verde me olhando.

-         Não se atreva moleque, ou as coisas podem piorar ainda mais para o seu lado. –Ele se encaminhava para fora do quarto, passando exatamente ao meu lado.

-         Além de pedófilo, está me ameaçando?

-         Não, você que entendeu errado. – E com um sorriso de deboche irritante nos lábios, o homem saiu, fechando a porta atrás.

 

 

*

     Nojento. Nojo. Sentia nojo de mim mesmo. Nojo por ser fraco e não conseguir afastar aquele homem sedento de mim. Ainda imóvel na cama, assisti Dexter expulsa-lo do quarto. Quando a porta bateu, por algum motivo maior, minhas lágrimas voltaram a cair. Senti as íris de serpente sobre mim, mas nem pude olhá-lo, sentia vergonha, minha vontade era de morrer ali mesmo. O que ele pensaria de mim agora? Gilstrap me acharia um dado, que obtia por meios sexuais conseguir sobrevivência. Não enxergava nada além da figura distorcida do meu companheiro de quarto. Distorcida pelas lágrimas. Observei com dificuldade sua sombra caminhar lentamente até a sua cama e sentar-se ali. Seguiu com essa cena por alguns instantes, até eu levar as duas mãos a esconder o rosto, chorando feito uma menininha que deixou a boneca cair e quebrar.

       As horas passaram sem que nenhum movimento brusco acontecesse. Eu ainda estava deitado na cama, macacão aberto, olhos marejados, expondo todos os hematomas já roxos que havia adquirido aquela tarde. Fitava o teto daquele lugar. O medo ainda dominava meu dolorido corpo. Tinha pavor de pensar que Mark poderia tentar de novo. Tinha pânico ao pensar que amanhã ele apareceria na porta do mesmo jeito que havia acontecido, e eu seria obrigado a vê-lo, a ouvi-lo, quando tudo que eu mais queria era sua morte, lenta e sofrida. Num impulso de me auto afirmar vivo, me sentei – Atraindo a atenção do mais velho – virando as pernas para o lado de fora da cama, encostando meus pés no chão. Apoiei os cotovelos nos joelhos, e segurei firme minha cabeça, como se a mesma fosse despencar a qualquer momento. A luz ainda estava acessa, e decidi me levantar. Precisava ir ao banheiro. Queria lavar meu corpo, mesmo sabendo que seria impossível limpar minha alma. Me encaminhei para a porta que levava a um micro banheiro, que só tinha direito a uma privada e uma pia. Tudo fedia. Abri a torneira, e deixei o uniforme de presidiário cair pelos meus ombros, sendo mal segurados pela minha cintura fina. Joguei água em todo meu corpo, senti as marcas dos punhos daqueles meninos à tarde acordarem. Enfiei a cabeça embaixo da água, e de novo senti raiva de mim mesmo. Reconhecer a dor daqueles hematomas era a melhor coisa que fazia no momento, me despertava, me fazia crer que eu ainda estava vivo, e que dor física nenhuma me impediria de chegar onde queria. Eu estava amadurecendo, estava me tornando alguém como os outros. Fui contaminado com o veneno daquele lugar. Tirei a cabeça debaixo do jato expelido pela torneira, e a fechei, apreciando as gotas me escorrerem pelo corpo, levando embora qualquer vestígio do supervisor que ainda pudesse ter, o mínimo cheiro. Preferia feder a cheirar a Mark. Minha vontade de gritar foi mais forte, vociferei um urro rouco, que despertou a atenção de quem quer que habitasse aquele andar. Cego por algo que nunca senti, espanquei a parede de murros e chutes que ficariam dolentes em mim mesmo. Bati a testa na parede, procurando me acalmar, mas o ódio corria em minhas veias como nunca tinha acontecido antes.

 

*

      Ouvia com atenção as ações de Johnny, que estava descontrolado. Tinha motivos para estar. Sentado na cama, podia claramente perceber que descontava sua raiva na parede, que era esmurrada pelo menor. Minutos depois o mesmo apareceu, vestindo o macacão ainda aberto, e agora molhado como todo o corpo dele. Captei algo indecifrável em seus olhos. As esmeraldas estavam rachadas. Ele se sentou na cama, suspirando alto, como se conseguisse exorcizar os males através da respiração. Não resisti, estava curioso pela primeira vez, na vida do companheiro de cela.          

-         Foi a primeira tentativa? – Perguntei sem olhá-lo, deitado na minha cama, de braços cruzados atrás da cabeça, olhando o teto.

-         Primeira e última. – Respondeu firme, mesmo estranhando minha súbita vontade de conversar.

-         Qualquer coisa, você pode me chamar. – Não entendi por que estava me oferecendo de guarda costas, mas não gostei da idéia de Mark encostar seus dedos imundos na minha personificação de beleza. – Que eu acabo com aquele miserável. – Me virei para poder observá-lo, e me deparei com o brilho ainda acesso em seus olhos fixos em mim.

-         Obrigado... Por ter me ajudado hoje. – Uma sincera gratidão estava exposta em seu lindo rosto, como sempre, me senti perdido no meio verde.

-         Não agradeça, Mark merece coisa pior. – Suspirei, sentando na cama. Interessado, passei a observar o menino. – Posso te fazer uma pergunta, Johnny?

-         P-Pergunta? – Gaguejou, coçando graciosamente os cabelos escuros pela água. – Pode.

-         Como veio parar aqui? Digo... Não parece ter nascido para isso. Não precisa muito para saber que aqui não é o seu lugar.

-         Bem – Ele riu. – Minha mãe morreu há uns dez meses, fui morar com a tia May, ela era um amor, mas eu só atrapalhava ela, ai saí de casa. Passei cerca de uns dois meses com os meninos de ruas, mas um dia, fui pego em um roubo pro almoço, e vim parar aqui.

-         Foi besteira. – Dei de ombros, não acreditava que estava ali só por conta disso. 

-         E você...? Se me permite saber, o que aconteceu? – Era um pergunta que eu não gostava de responder. Mas ele se abriu para mim, e seria injusto da minha parte não fazer o mesmo com ele.

 

*

 

Me arrependi da pergunta. Estava ganhando a confiança de Dexter e não queria me meter em sua vida. Mas foi instantâneo perguntar. Seus olhos perderam o pouco de brilho que tinham e subiram. Sofri ser presa da serpente naquele instante, concentrado em tudo que ele fazia.

-         Tentei matar meu irmão – Recitou tais palavras com tanta naturalidade que me petrificou. Ele notou meu estado e riu com o nariz, do jeito que eu adorava quando o mais velho fazia. Acordei, mas ainda estava mudo, o que poderia responder-lhe? Nada. – Mas ele merecia ter morrido.

-         Por que diz isso...? É sua família, certo? Seu sangue. – Tentava entender. Eu estava ali por não ter família, enquanto o moreno tentou se livrar da própria. Pra mim não fazia o menor sentido.

-         Não. Sou adotado. E ele sempre me jogou isso na cara, dizia que meu lugar não era ali, que meus pais tinham escolhido justo um problema para adotar em vez de um gêniozinho. Isso me abalava. – Ele abaixou os olhos que tanto admirei, visivelmente triste. Nunca havia visto Dexter em um momento como aquele. – Um dia resolvi, como você, sair de casa, meus pais ficaram desesperados e me procurando, e eu vi que apesar de tudo me amavam, mas quando Josh me encontrou, disse que era pra eu fugir, que fingiria que não me achou. Mas eu neguei, e disse que voltaria para casa. Foi quando ele me ameaçou. Tirou uma faca, pequena, da calça e disse claramente que era pra eu ir embora, que a herança da família seria toda dele. Me irritei com seu egoísmo. Não queria dinheiro nenhum de meus pais. Apenas meus pais. Avancei contra ele, e começamos a brigar, quando a polícia, junto aos meus pais chegaram, era eu quem segurava a faca. – Meus olhos marejavam por ele, que continuava impassível quando terminou de contar sua história.

-         Eu... Eu sinto muito.

-         Não sinta. – Ele sorriu, regressando a posição inicial, deitado, girando-se para a parede.

-         Boa noite. – Desejei-lhe, deitando na cama também, mesmo sabendo que não iria pregar os olhos a noite inteira.

-         Boa noite. – Foi a primeira vez que ele me respondeu. 

 

 

*

 

Foi uma das noites mais bem dormidas de todos os dias naquele inferno. A conversa na noite anterior tinha me despertado. Desabafei com meu companheiro de cela e me sentia mais leve, de corpo e de consciência. Acordei hesitante com uma gritaria do lado de fora. Aos poucos me levantei, Johnny não estava mais em sua cama. Cocei a cabeça ainda lesado pela noite bem dormida, a porta do cubículo de gelo estava aberta, e por ela vi um amontoado de gente na jaula em frente a minha. Sem a mínima vontade, fui lá ver o que havia acontecido. Atravessei o corredor, e fiquei nas pontas dos pés para tentar ver o que ocorria ali. Os habitantes daquele andar observavam ao chão um corpo. O macacão laranja justo denunciava ser uma menina. Ouvi várias vezes a palavra suicídio. Uma sacola plástica estava envolta de sua cabeça, banhada em sangue. Por trás da sacola transparente pude perceber os cabelos loiros da menina, e só então a reconheci. Era Laura, a puta. Todos, incluindo eu, já haviam fodido com ela. Uma das pessoas, e sem dúvidas a garota, mais influente do lugar. Conseguia de tudo através do sexo, que por sinal, era bom. A cena assistida era repugnante, logo me virei de costas.

Encostado na parede, ao lado dos urubus, estava meu pequeno anjo. Seus cabelos estavam mais arrepiados e desarrumados que os meus, suas olheiras eram mais profundas que as minhas, e seus olhos, naquela hora, eram mais opacos. Seu brilho natural que eu tanto admirava não estava mais lá. Sua pele já alva estava completamente pálida, o que me levou imaginar que ele havia visto Laura morta. Me encaminhei timidamente até ele, e sem lhe dizer nada, parei em sua frente.

 

*

 

 

O que leva alguém a acabar com a própria vida? E pior, com a própria vida e com a vida que carrega dentro de si. Aquela menina, jovem e bonita não deveria ter visto o mundo com aqueles olhos. Um filho na idade dela, e num lugar como aquele, podia ser um desafio, mas que ela venceria. Desistir assim foi um choque. Tanto sangue frio pra fazer uma brutalidade vista ao vermelho me deixou completamente atordoado. Ela não suportou a pressão... Eu também poderia não suportar.

Me assustei ao perceber o conhecido macacão laranja a minha frente que marcava ‘D. Gilstrap’. Não olhei e por um impulso mais forte que eu, o abracei. Ele certamente estranhara o meu gesto, mas Dexter me passava confiança, e eu precisava de apoio. Apertei meus braços em volta da cintura dele, apreciando o conforto que não sentia há meses. Tanto tempo sem uma demonstração de afeto, mínima que fosse, me fez sentir protegido. Confesso que eu mesmo me espantei ao sentir a mão dele sobre meu ombro, num gesto fraco. Ficamos daquele jeito, em silêncio por um bom tempo. O corredor esvaziou, por mando de Mark, e não demorou muito para a polícia chegar lá. Nessa hora, já estávamos fechados em nosso calabouço. As paredes pareciam menores, consequentemente me sentia mais sufocado, como se as próprias respirassem o ar que seria meu. O dia lá fora estava escuro, ameaçando chuva, criando um clima ainda mais sombrio ao que eu tinha presenciado. A água que eu via era a que segurava para não cair de meus olhos. Foi a primeira vez que vi um cadáver. Sentir aquele cheiro de sangue seco, e de morte revirou meu estômago. A imagem não me saía da cabeça. O mais alto estava parado, costas contra a porta, afundando em seus próprios pensamentos.

Mais que nunca senti necessidade de sair daquele lugar. Depois do ocorrido com Mark, sentia pânico de até mesmo sair da cama. Eu precisava fugir, mas dessa vez com calma e planejamento. Como? A segurança não era tão falha para ser quebrada por um moleque de 13 anos que mal conseguia se segurar nas próprias pernas. Os muros do lado de fora eram altos, lisos, e continha uma cerca elétrica no alto que era ligada a noite. Havia os vigias de andares, mas pensando por outro lado, não tinha quem cuidasse do lado de fora. Se conseguisse ao menos me livrar do querido Supervisor chefe, poderia dar um jeito de pular o muro, ou abrir o portão.

 

*

 

Ele estava incomodado. Podia ver isso em seus olhos sempre transparentes. Não estava nem aí para Laura, ela se matou por que quis, achou melhor assim, pelo menos agora ela estava livre. Também não me importava se era verdade que ela estava grávida, apesar de achar mais do que certo, ela era egoísta demais para acabar com a própria vida sem achar que a mesma já tinha acabado. Pobre Laura, não agüentou a pressão que sempre lutou para impedir que entrasse em sua mente. Todavia, era tarde para fazer algo por ela. Paciência, e descanse em paz, coisa impossível aqui em baixo.

Senti os olhos de esmeraldas me olharem, de uma forma que eu ainda não conhecia. Estavam firmes, determinados, e arrojados. Me encararam assim por alguns instantes, até meus ouvidos serem privilegiados com a voz suave do menor.

-         Eu vou fugir. – De novo? Não acreditei no que ouvi.

-         Sua punição da fuga de dois dias atrás ainda nem saiu.

-         Não importa, eu tenho que ir embora daqui! – Notável certo desespero no jeito que ele me olhava. Suspirei ainda pensativo, mas não hesitei em lhe responder.

-         Vou com você.

-         Preciso da sua ajuda. – É claro que precisava. Ele era muito inteligente, mas precisava de força e sangue frio para sair. Isso eu tinha.

-         Conte com ela. – Vi um receoso sorriso surgir nos lábios tão delicados e rosados daquela perfeita criatura. Não podia mais negar que estava completamente encantado por Johnny. Em uma necessidade nova de proximidade, me sentei ao seu lado. – Como pretende fazer isso?

-         Não sei. É uma idéia lógica, mas por isso não sei se daria certo. Hoje à noite...

-         Peraí! Quer fugir hoje?

-         O quanto antes!

-         Temos que planejar algo direito!

-         Cala a boca e apenas escute! – Ri baixo, nunca havia imaginado, nem pensando em Jorkins falando assim, ele percebeu e corou graciosamente, mas prosseguiu com o assunto. – Hoje à noite, quando Mark vier fazer a chamada, nós o desacordamos, pegamos seu molho de chaves, e fugimos. Temos que ter cuidado pois será inevitável passarmos pela entrada do primeiro andar.

-         Ih, ferrou. – Revirei os olhos.

-         O que?

-         Nada, prossiga.

-         O que ferrou, Dexter? – Insistiu.

-         Nada. Esqueça. Eu vou com você. Precisamos de cautela ao passar pelo primeiro andar, e principalmente sair dos limites do centro sem o mínimo barulho.

-         Vamos conseguir.

-         É. – Ele me olhou sorrindo, esperançoso de uma chance de vida que tínhamos novamente. Meu coração bateu mais forte. Tanto pela ansiedade daquela noite, tanto pelo singelo fato de olhá-lo sorrir. – Posso te beijar? – Vi seus olhos arregalarem, e surpreso não me respondeu. Talvez tivesse sido precipitado. Levei uma das mãos até o pescoço do mais novo. Sentir aquela pele tão macia me deu mais vontade ainda de tê-lo só pra mim. Com o polegar no rosto dele, me aproximei. Senti sua respiração bater contra minha pele, e aqueles olhinhos verdes diminuírem cada vez mais. Toquei com meus lábios os dele. Rocei-os ali por alguns instantes até pedir passagem para a língua, lambendo a divisão dos lábios do loiro.

 

 

 

*

 

Congelei com sua pergunta. No momento achei que não houvesse entendido com clareza, mais ao notar sua aproximação, meu corpo paralisou. Não sei por que minhas pálpebras se tornaram pesadas, e sentir aqueles lábios finos tocando os meus, fizeram uma tempestade de sensações em mim. Não resisti e meus olhos fecharam, a verdade é que não queria me separar dele. Os cabelinhos da minha nuca arrepiaram ao sentir sua língua tão quente contra mim. Não pensei ao entreabrir meus lábios permitindo a passagem dela para o encontro da minha própria. O contato entre as duas foi maravilhoso, pude sentir seu gosto, explorar suas texturas, e quando me dei conta estava completamente entregue ao seu beijo. Ele era delicado como ninguém imaginou que fosse, e eu segurei com as duas mãos seu macacão laranja, impedindo-o de me deixar. Aos pouco senti algo mais forte, os movimentos dele se tornavam mais rápidos e lascivos, e eu correspondi à altura. Uma forte falta de ar me atormentou, mas ignorei-a preocupado inteiramente em aproveitar cada instante de Dexter. Notei sua também dificultada respiração, e suspirei ao ter meu lábio inferior entre seus dentes. 

Aos poucos ele me encheu de beijos superficiais, e se afastou. Ao reabrir os olhos, contemplei o sorriso mais maravilhoso do mundo, aquele que nunca tinha visto. Ele mostrava quase todos os dentes, em uma alegria epidêmica. Não pude deixar de rir. Eu o abracei, jogando-o deitado na cama. Deitei em seu peito, e o mais velho passou um braço pela minha cintura. Me senti protegido como nunca. Nada nunca foi tão agradável no Centro de Detenção Juvenil de Washington.

 

*

 

Passamos a tarde inteira deitados na cama trocando carícias e reformulando o planejamento para a noite. Não era uma má idéia. Mas o primeiro andar me incomodava muito. Não quis contar para Johnny, mas o supervisor do primeiro andar recebia uma quantia mensal de Joshua Gilstrap. Para me vigiar logicamente, qualquer atividade fora do normal, ele sabia. Minha casa não ficava muito longe dali. Me doía que meus pais não me visitassem. Apenas foram uma vez. Claro, pensavam que eu quis matar o filho deles. Não os culpava, eram pessoas maravilhosas. Não sabia o que podia acontecer, mas tinha certo receio que chegasse aos ouvidos de Josh. Por isso o primeiro andar me preocupava tanto. Entretanto, tinha um bom pressentimento para aquela noite indiscritível, só de pensar em ter eu e meu pequeno Johnny em liberdade, em uma vida.

A noite já havia chegado, era hora de jantar, mas nem eu nem o pequeno estávamos com fome. A hora se aproximava devagar, e nós dois começamos a ficar nervosos, mas outra vez repassamos tudo que faríamos. Levantei-me do confortável abraço do meu pequeno anjo, e parei em frente à micro janela. Pelas grades pude ver o céu cheio de estrelas, como se elas brilhassem para mim. O mundo parecia mais bonito depois que conquistei Jonathan Jorkins pra mim. O pátio ainda era sombrio e sem graça, as paredes ainda eram sujas, e o lugar inteiro ainda fedia a podridão. Mas eu estava suficientemente feliz para ignorar tudo isso.      

 

*

 

Acabei cochilando. Ao abrir os olhos, apreciei meu protetor em pé observando alguma coisa no céu. Estava pensativo, lindamente pensativo. Eu sorria sem perceber só de poder grudar meus olhos nele. Aqueles olhos de serpente se viraram para mim, o que me fez por um instante a pessoa mais feliz do mundo. Ele caminhou devagar até mim, e tomou meus lábios num beijo rápido, mas que me pareceu durar horas.

-         Você está pronto? Não quer adiar? – Perguntou-me com o semblante visivelmente Desassossegado.

-         Não. Será hoje. Não agüento mais. É tudo ou nada. – Respondi-lhe firme. Precisava mais que nunca fugir, sumir, viver longe dali. E com Dexter ao meu lado.  – Tá chegando a hora.

-         Eu sei... - Disse ele, se afastou de mim e foi até o banheiro. Ouvi um barulho, e ele voltou com um pedaço de ferro enferrujado na mão. Fiquei com medo dele pegar um doença só de encostar naquilo. – Está solto no banheiro há meses. Isso será o melhor amiguinho de Mark.

-         Você é terrível. – Ele riu. – Mas vai conseguir derruba-lo com uma pancada só? Ele não pode gritar.

-         Eu sou terrível. Pode deixar. – Ele veio até a mim de novo, e dessa vez, roubou meus lábios em um beijo demorado, ao mesmo tempo calmo, ao qual eu apreciei até o que não pude.

 

 

*

 

 

Eram nove horas. Já ouvia a voz de Mark no corredor. Meu parceiro e amante estava sentado na cama, apenas esperando. E eu, escondido atrás da porta, com um pedaço de ferro nas mãos. Era tudo ou nada, como o próprio havia dito. E nós pretendíamos ter tudo. Ouvia a voz porca daquele ignorante aumentar pouco a pouco. Num susto, a porta se abriu, ele olhou para o mais novo, e antes que pudesse se virar, acertei-lhe num golpe só a ponta do ferro em sua nuca, o que o fez cair como um boneco de neve se desfazendo. Vi Johnny correr para fechar a porta, e enquanto isso me veio a mente a imagem da noite passada, onde o vi se aproveitar do meu anjo. Aproveitei para descontar minha raiva naquele filho da puta, e sem pensar bati de novo, na cabeça, fazendo-o sangrar dessa vez. O mais baixo me olhou assustado, mas fez um sinal positivo com a cabeça. Se aproximou do supervisor desacordado e roubou o molho de chaves que ele guardava pendurado na calça do uniforme. Não podíamos parar para respirar. Logo dariam conta da demora de Mark para retornar. Aproveitando que os outros supervisores ainda faziam à chamada, eu e meu parceiro de fuga saímos correndo pelo corredor. Ao sairmos do andar, fomos mais cautelosos para descer as escadas, mas estas sempre estavam desertas a noite.

Chegou à hora de passar no primeiro andar. Meu coração disparou, e foi a primeira vez que o dono dos olhos verdes não era o motivo. Atrás do vidro do porteiro, onde deveria ter o subordinado do meu irmão mais velho, não pude ver ninguém. Porém a porta que dava para alguma câmara logo atrás estava aberta. Quando me dei conta, já estava para trás. Jonathan estava engatinhando, pretendendo passar de baixo do nariz dele. Apressei-me, e o segui, também engatinhando. Meu corpo tremeu, e nessa hora achei que meu amante era mais corajoso que eu. Esperei abaixado enquanto Johnny, sem procurar por muito tempo, achou a chave, e abriu a porta o mais silenciosamente possível. Ele saiu. Fui logo atrás. Fechamos a porta com a mesma cautela e corremos.

 

*

 

Não acreditei quando corremos para longe. Já tínhamos saído do centro, faltava apenas o portão. Ao chegar ao mesmo, procurei novamente a chave que encaixava perfeitamente no cadeado. Dexter estava inquieto atrás de mim, olhava pra um lado e pro outro, procurando o mesmo silêncio que nos cercava. Abri o portão, corremos feitos loucos, não sabíamos para onde, mas apenas corríamos. O Centro de Detenção Juvenil ficava em cima de uma pequena colina, próxima a cidade. Teríamos apenas que atravessar a trilha e chegar no centro urbano. Era um longo caminho pela frente, e nós não conseguíamos tirar o sorriso bobo do rosto. Tudo parecia perfeito. Eu e Dexter, correndo para a nossa liberdade, para uma vida de verdade, com amor. Pelo menos, o que eu sentia por ele. Eu já estava ofegante, mas não parei de correr. Não até ver meu protetor, que corria na minha frente, parar. Não entendi, mas quando percebi, tinha alguém na nossa frente.

Pra mim, era apenas uma sombra, mas logo que meus olhos se acostumaram à iluminação no local, percebi ser um homem, um pouco mais velho, porém jovem, e nos olhava com algo que não pude identificar. Notei logo que meu parceiro estava com uma mistura de ódio e medo nos olhos. A serpente estava encolhida.

-         Dexter. – Disse o moço a nossa frente, sem se mover.

-         Joshua, seu desgraçado. – Surpreendi-me ao conhecer tão inesperadamente o irmão odiado.

-         Oh, não fale assim. Fiz uma visita surpresa e é assim que me recebe, irmão? – Fez questão da ênfase na palavra, o que fez o cenho do irmão mais novo franzir violentamente.

-         O que vai fazer?

-         Como assim, Dexter?

-         Não seja cínico, não viria até aqui de passeio. Aliás, seu comprado deve ter olhos de águia.

-         Não é preciso, você que é um idiota. E respondendo sua pergunta... - Congelei. Havia puxado uma arma da cintura, e apontou a mesma para o Gilstrap mais novo. Eu ainda estava atrás dele, e meu protetor fez questão de ficar na minha frente. No desespero, meus olhos já estavam marejados.

 

*

 

Não me assustava. Meu único medo momentâneo era a segurança da pessoa que eu amava. Fiquei na sua frente, nem sei se Josh havia o visto ou não. Olhei bem fundo, dentro daquele cano que mirava minha cabeça, e fechei os olhos por um instante. Voltei a fitar a morte, e vi a ameaça sorrir.

-         Vou acabar com você aqui mesmo. Mamãe e papai ficarão tristes, mas num lugar como esse a morte é certa.

-         E então, ficará com os cem por cento da empresa do papai, o que tanto deseja, né?

-         Menino esperto, até me orgulho ter sido meu irmão um dia. – Ele falava sério, e sabia do que ele era capaz de fazer. Me preocupei quando Johnny apertou minha cintura por trás. – E o que é essa coisinha aí?

-         Deixe-o fora disso, é apenas alguém que fugiu comigo, só. – Tinha que desviar a atenção do mais velho de cima do meu anjo. Era minha prioridade de vida. Nem que fossem os últimos instantes da minha vida.

-         Que seja, não é ele quem receberá metade das ações, então não me interessa mata-lo. – Por mais superficial que fosse, me senti aliviado ao ouvir a frase dita pelo portador da arma.

-         Então me mate.

-         Nããão! - Gritou Johnny.

 

*

 

 Os olhos azuis do mais velho me fitaram. Não sabia o que Dexter planejava, mas não iria permitir, nem que me custasse à própria vida que já não tinha sentido nenhum. Eu não tinha lar, não tinha pais, se alguém tivesse que morrer que fosse eu. Tomei o lado dele, saindo de sua proteção. Não sabia mais o que dizer. Era analisado pelo que ameaçava minha felicidade, mas não recuei um passo sequer.

-         Arrumou um namorado, Dex? – Quebrou os minutos em silêncio, em um tom claramente debochado.

-         Sim. – Respondeu firme, com aqueles olhos amarelos querendo fuzilar seu irmão mais velho.

-         Você sempre foi uma decepção em tudo. Vou fazer um favor a papai e mamãe. – Ele destravou a arma. Gelei. Mas antes que pudesse atirar, ouvimos um barulho dentro a mata. Assustado, acabou disparando os tiros que eram para Dexter em direção ao barulho. Vimos Mark cair, dessa vez, morto no chão.

Dexter aproveitou o momento de distração do atirador para avançar sobre ele. Os dois caíram no chão, e lutavam pela posse da arma. Fiquei desesperado, os dois se socavam, e Dexter não soltava a mão do irmão que colou na arma como a super cola que eu sempre odiei no primário. Corri para perto o cadáver do supervisor para garantir que ele realmente estava morto.

 

*

 

Segurei o pulso do mais velho com força, tentando virar a mira da arma para longe de mim, o que ele lutava pelo contrário. Ele era forte, mas eu também não ficava atrás. Desferi vários socos em seu estômago, tentando enfraquece-lo, mas foi em vão. A guerra pela sobrevivência se estendeu, pude ouvir os gritos de Johnny, mas não tirei minha atenção da chance de matar aquele desgraçado e ter minha vida inteiramente de volta. Gelei, num momento meu braço falhou, perdi o equilíbrio dele sobre o braço que segurava a sentença de morte. Assisti em câmera lenta o cano se posicionar contra meu pescoço. Ao mesmo tempo em que ouvi o estalo provocado pelo dedo do meu irmão assassino, pude ouvir Johnny berrar.

Não foi apenas uma bala. Várias me perfuraram. No pescoço, no ombro, e no peito. O sangue me molhava rapidamente, e aos poucos cai para trás. Antes de atingir o chão, pensei em Johnny. Em como dois meses ao lado dele foi insignificante e como dois dias o conhecendo haviam mudado minha vida. Senti seu cheiro, seu gosto, sua pele. Pela última vez. Meu coração não sangrava apenas pela morte que corria em minha direção. Sangrava pelo medo de deixar o meu anjo perdido num mundo em decomposição sozinho sem minha proteção. Meus olhos fechavam lentamente enquanto me aproximava cada vez mais de cair no chão. Revi minha infância no orfanato, até os seis anos de idade quando meus pais me escolheram. Mudar para um lar foi a melhor mudança da minha vida. Ter o amor materno e paterno foi uma experiência única. Sentir na pele o ciúmes de um irmão e sua ambição foi escrever o fim da história. Minha vida inteira passou em um minuto diante dos meus olhos. Caí de costas no chão.

 

 

*

 

 

Não soube dizer se o barulho que ecoou foi o de tiros ou o do meu coração rachando. Assistir Dexter cair, diante dos meus olhos foi inexplicável. Meus olhos não conseguiram nem chorar, procuravam desenfreadamente a chance de se despedir da serpente que já estava sem vida no chão. Um pavor nunca sentido possuiu meu corpo. Era a Segunda pessoa amada que perdia. Mas vê-lo sangrar na minha frente, e cair com aqueles olhos abertos, amarelos sem cor, foi um enorme choque psicológico. Foi a quebra de uma esperança de uma vida feliz. Quando me dei contra do que realmente aconteceu, mesmo que não pudesse aceitar, agachei-me ao corpo de Mark, puxei o revólver que ele carregava na cintura, e disparei incontáveis vezes contra o assassino do meu anjo protetor, que ainda se recompunha da luta ocorrida na qual saiu vencedor, sem pensar duas vezes no que fazia. Assisti o irmão mais velho cair, tão morto quanto os outros.

Tremia de corpo inteiro. Estava eu parado entre três corpos sem vida no meio da mata com um revólver que pesava em minhas mãos, denunciando a vida que tirei. Soltei tudo, e corri até o cadáver de Dexter, me abaixei, abraçando-o, não me importando de manchar o macacão laranja com o sangue que parou de correr nas veias do meu amado. Não percebi quando minhas lágrimas destravaram e puseram-se a cair, misturando-se com o vermelho fresco que ainda jorrava das feridas mortais que ele sofreu. Não tenho noção do tempo que eu fiquei a me despedir do meu libertador. Aquele que deu a vida para me dar liberdade. Aquele que me deu amor para me dar vida. Aquele que me deu tudo para me tirar tudo em seguida. Me sentia sem um membro do corpo. Sem um órgão dentro de mim. Ouvi de longe o alarme do Centro de Detenção Juvenil disparar, me despertando que estava apenas na metade de minha fuga. Não faria da sua morte em vão, não voltaria para o inferno de jeito nenhum. Honraria o sangue que ele derrubou por mim. A polícia devia estar a caminho. Tateei os bolsos do macacão dele, procurando onde o mais velho guardava o canivete que sempre o acompanhava. Encontrei-o em um dos bolsos internos. Eu cheirava a seu sangue. Eu sentia seu cheiro. Eu guardaria para sempre aquela imagem na minha mente. Eu lamentaria para o resto da minha vida ele dentro dos pedaços do meu coração, que ficariam perdidos naquele local, me abandonando na minha jornada por algum sentido de vida. Olhei o D.G que havia marcado no canivete, e guardei-o. Seria a única coisa, que levaria como sua recordação a vida inteira.       


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Notas finais do capítulo

Comentar é legal. Sou novata aqui HEHEHEHE



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