Os sonhos de amanhã escrita por Nando


Capítulo 1
Um conto rejeitado




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Vasco

 

 

Pela centésima vez, o olhar da professora alternou entre mim e o caderno que lhe tinha entregado. Engoli em seco, esperando ansiosamente o que ela tinha para dizer, mas a boca dela permanecia fechada e os seus olhos estavam fixados nas folhas, deslizando rapidamente do princípio ao fim de cada página. Como não dizia nada tentei desviar a minha atenção focando-me noutros elementos da sala. A secretária da professora estava repleta de papéis, cadernos e livros, o que era de se esperar desta altura do ano com os exames á porta. O meu professor de matemática entrou na sala e agarrou num caderno que se encontrava em cima de uma secretária bastante organizada. O seu olhar focou-se em mim por um momento direcionando-me um sorriso e um leve aceno, indicando a sua saída. Esta situação repetiu-se com outros professores, com alguns dando as “boas tardes”, sendo respondidos com um “boa tarde” seco da minha professora de português. Não havia muito para fazer enquanto esperava e, como tinha decidido não tirar o meu telemóvel para mostrar o quão determinado eu estava, tive que me sujeitar a esta espera dolorosa. Eu tinha posto toda a minha alma naquela história, era sem dúvida nenhuma a melhor história que tinha criado o que me levou a mostrá-la á professora. Se ela gostasse iria imediatamente a uma editora para que virasse um livro, no entanto, se isso não acontecesse eu desistiria imediatamente da escrita e do meu sonho de ser escritor. O meu futuro estava, portanto, nas mãos daquela mulher de meia-idade, de olhar carrancudo, pescoço curto e cabelo castanho (claramente pintado) com alguns fios brancos aqui e ali.

                Depois de algum tempo (uma eternidade para mim), a professora deu-me de volta o meu caderno indicando que tinha terminado a sua leitura e tirou os seus óculos, pousando-os em cima da sua secretária. O meu coração começou a bater violentamente á espera de uma resposta. Houve um momento de hesitação e, por fim, a professora falou:

                -Ouça, Vasco, eu vou ser muito sincera consigo: você não tem jeito para a escrita.

Aquelas palavras congelaram por inteiro os meus movimentos. Eu não tinha jeito para a escrita?! Mas eu escrevo desde pequeno e as histórias que meto na Internet até têm boas reviews! Simplesmente não podia acreditar! Ela não devia ter gostado do género, tinha de ser isso! Tentei manter a calma e perguntei-lhe:

—Pode-me dizer o que é que acha que está mal na minha história?

A professora fulminou-me com o olhar mostrando que a minha presença estava a virar um incómodo para ela mas, mesmo assim, respondeu á minha pergunta:

—A sua história é muito simples e não tem nada de original. Não encontro diferença nenhuma entre a sua história e milhares de outras histórias de fantasia genérica. Não há grandes motivos para os vilões estarem a fazer o que fazem e os heróis são bastantes genéricos. A história e o enredo não têm nada de cativante e serve-se bastante de “clichés”. Para além disso, a sua escrita é muito simples, você não descreve os locais onde os personagens se encontram o que elimina um pouco a inversão do leitor na história. Mas, o pior de tudo, são os personagens, para além de genéricos não têm nada de especial, têm apenas uma personalidade e mais nada o que leva a que o conflito entre eles seja fraco. Podia continuar a enumerar os seus erros, mas todos iriam ter a um ponto em comum: a sua falta de talento. Escrever uma história não é para todos e só as mentes mais brilhantes conseguem agarrar e prender o leitor numa narrativa interessante e de cortar a respiração. Assim como os poemas de Fernando Pessoa que demonstram a sua complexidade e de como o seu génio era incompreendido pelas pessoas da sua época…

A professora começou um longo discurso sobre Fernando Pessoa e outros autores que ela considerava “génios” mas a minha cabeça já não estava dentro daquela sala. Coloquei o meu caderno na mochila, despedi-me e saí daquela sala. Fechei a porta atrás de mim e suspirei fundo. Tinha chegado o fim (embora nem tivesse começado) da minha carreira de escritor. Tentei começar a andar mas sentia um peso enorme dentro de mim que dificultava os meus passos. Os corredores da escola pareciam-me mais longos do que o normal e o fim parecia-me longe. Ouvia o meu nome ocasionalmente mas não prestava muita atenção. No fim das contas, eu nunca me importei muito com as outras pessoas, só com a escrita. Era aquilo que tinha e isso tinha-me sido tirado. Será que devia submeter a história de qualquer das maneiras? A resposta veio-me imediatamente á cabeça: Não. Eu tinha prometido a mim mesmo que iria desistir se a professora não gostasse da história! Mas outra perguntava pairava agora sobre a minha cabeça: O que iria fazer agora?

                As vozes que me chamavam chegaram mais perto e acabaram por me envolver, prendendo-me á conversa como se fossem tentáculos. Começaram por perguntar algumas coisas básicas, maioritariamente por cortesia, ao que eu respondi de forma ainda mais básica, até se terem fartado e começado a falar sobre exames e festas, etc. Não estava interessado nas conversas entre eles, pois, de qualquer maneira, depois dos exames não os iria voltar a ver. Mesmo assim não me sentia triste. Tínhamos passado bastante tempo juntos mas nenhum desses momentos me marcou. A nossa relação foi apenas por cortesia, nada mais. Como não queria que as pessoas me vissem como um solitário, fiz estes “amigos”. Estaria a ser uma má pessoa por estar a trata-los desta maneira? Afinal, eles não me causaram de nenhum transtorno e até me tentavam ajudar quando era preciso… Dei um sorriso para mim mesmo. Talvez fosse por esta minha atitude que os meus personagens eram fracos…

                Saímos da escola e um deles anunciou que deviam fazer uma festa para comemorar o fim das aulas no liceu. Eu achava aquilo um pouco inútil mas não o disse em voz alta, limitando-me a recusar o convite e a seguir uma direção oposta á deles. Os erros que a professora tinha apontado continuavam a pesar-me na cabeça, procurando motivos para os justificar. Falta de descrição: na minha opinião era preferível pois assim os leitores podiam decidir eles mesmos como era o mundo. História genérica: a maioria das pessoas gostam de ter elementos familiares entre as histórias que leem para mais facilmente mergulharem num novo livro. Personagens fracos: não sabia bem onde ela queria chegar com isto, obviamente que os bons tinham de ter personalidades agradáveis para o leitor poder torcer por eles e os vilões tinham de agir como tal para depois serem derrotados pelos bons. Não era assim que as histórias funcionavam? Colocar mais personalidades e ideias nos personagens não os iria tornar mais complexos, o que dificultaria o desenrolar do enredo?

                No entanto, outro ponto que ela tinha referido vagava pela minha cabeça: a minha falta de talento. Será que havia pessoas que tinham uma melhor habilidade para criar boas histórias? Custava-me a acreditar que algo tão injusto existisse…

                Parei em frente ao parque. Normalmente por esta hora tinha sempre gente a passear mas hoje estava deserto. Tirei o caderno da minha mochila e fiquei a observar o título que eu tinha dado á minha história: Harley. Um mundo mágico onde antigamente tinha havido uma luta entre dois guerreiros poderosos: Light e Dark. A batalha não tinha tido uma conclusão, originando num empate. Como as suas armaduras eram muito fortes as pessoas decidiram separar cada uma em sete partes e esconde-las á volta do mundo, mas elas acabam por ser encontradas por pessoas diferentes, com a armadura de Dark tendo o poder de possuir as pessoas dando-lhes o desejo de destruir tudo. Era uma história simples onde eu tinha colocado todos os elementos, na minha opinião, que formavam uma boa história… Ainda me ocorreu levar a outra pessoa para analisar aquela história. Talvez fosse só a professora que não gostasse daquele género! Ainda dei um passo atrás mas logo retomei a minha decisão. Tinha andado muito tempo com este desejo sem o conseguir realizar. Perdi muito tempo em coisas inúteis quando podia estar a melhorar as minhas habilidades… Bom, nada disso importa agora, iria para a universidade ter uma vida simples com um emprego normal. Nada mais. Respirei fundo e aproximei-me da berma do parque. Conseguia ver o rio dali. O vento estava a soprar fortemente, talvez me ajudasse a conduzir o caderno para o rio. Desculpei-me o que vou fazer ambientalistas. Apertei o caderno com força e puxei o meu braço para trás. Com tudo o que tinha dentro de mim, mandei-o o mais longe que consegui com o vento a fazer o resto. Virei-me de costas pois não queria ver onde ele tinha parado, fosse dar-me uma mudança de ideias de última hora. Segui o caminho até a minha casa sem pensar em mais nada…

                No dia seguinte, fui acordado pelo toque da campainha. Roguei umas pragas a quem quer que fosse e olhei para o telemóvel. Eram as 9 da manhã. Quem é que ia ter a casa de uma pessoa tão cedo?! As pessoas estão loucas só pode!

                Como não havia mais ninguém em casa tive que me levantar da cama e ir ver quem era. Saí do quarto e campainha voltou a tocar.

                -Já vou! – Gritei eu numa tentativa de evitar ouvir aquele som irritante da campainha.

                Cheguei á porta de pijama e com o cabelo totalmente despenteado, abri a porta e vi que era uma rapariga de estatura média, cabelo castanho e curto, olhos azuis cintilantes e seios relativamente pequenos. Trazia vestido uma camisola de manga curta barca com letras em vermelho que formavam a seguinte frase: “Be yourself”, e umas calças de ganga que lhe assentavam perfeitamente. Não era muito magra, embora a camisola se mostrasse mais larga do que seria de esperar do tamanho dela. A face dela era refinada sem nenhum tipo de maquilhagem, com os seus olhos azuis que me hipnotizavam a continuar a olhar para ela. No entanto, tinha quase a certeza que já a tinha visto. O que é que uma rapariga daquelas estaria a fazer ali? Será que se vinha confessar? Não, Vasco. Deixa-te dessas ideias.

                Enquanto a minha mente se focava nestes problemas a rapariga, enfim, falou:

                -Bom dia! Desculpa estar-te a incomodar mas tu é que és o Vasco Moreira, certo?

                Acenei afirmativamente. Para que é que ela queria saber o meu nome? Uma coisa era certa, para grande desapontamento meu, não estava ali para se confessar.

                Ela tirou da mochila um caderno coberto de poeira mas que eu conhecia em qualquer lugar: era o caderno que eu tinha atirado ontem no parque! Como é que ela o tinha encontrado?! Devia ter escolhido um sítio melhor para me livrar dele. Ela voltou a falar na sua voz suave:

                -Eu encontrei este caderno ontem no parque e queria saber se era teu.

                -Sim, é meu – Respondi – Eu tinha o deixado lá para me livrar dele mas pelos vistos encontraste-o, obrigado por me o teres trazido, eu já vou deitar para o lixo.

                Estiquei a mão para lhe tirar o caderno mas ela recuou imediatamente. Fintei-a e reparei que ela me olhava de uma maneira estranha, como se tivesse acabado de dizer alguma coisa chocante. O que é que ela queria afinal?

                -Tu não podes atirar com este caderno!

                -Porque não? Essa história é genérica e não tem nada de especial, os personagens são fracos e as minhas descrições são simples demais – Enumerei os erros que a professora tinha dito e cada palavra que dizia era como agulhas a entrarem no meu estômago.

                Ela olhou-me bastante séria, com os seus olhos azuis a perfurarem-me de um lado ao outro:

                -Nunca digas isso da tua própria história! E, além disso, eu acho que está bastante boa!

                Aquelas palavras ligaram a chama da escrita que eu ainda tinha guardada dentro de mim e fiquei expectante para ouvir o que ela tinha dizer:

                -De facto concordo que os personagens podiam ser melhores mas a história mesmo assim é bastante boa! O enredo é simples e vai direto ao ponto e a falta de descrição faz com que eu possa meter na história tudo aquilo que imagine, puxando pela minha criatividade. Por exemplo aqui - Apontou para uma parte do livro onde o personagem principal fala com a heroína – Nesta cena, o David está em cima de um ramo de árvore e a Alice está ao pé da fogueira, é uma descrição simples mas dá para perceber o essencial! Consigo imaginar um ângulo da câmara a vendo o David de baixo, e um ângulo vindo de cima, mostrando a distância entre o David e a Alice, que nesta altura ainda não estavam apaixonados um pelo outro…

                Começou a falar sobre ângulos de câmara e outras relacionadas com filmagem. O que raio ia na cabeça daquela rapariga? Não sabia se devia ficar chateado por ela ter lido a minha história, ou contente por estar a elogiá-la. Decidi interrompe-la:

                -Pois, mas há um problema: eu decidi desistir da escrita!

                Nos olhos dela ouve um momento de hesitação que logo a seguir foi substituído por determinação:

                -Não podes desistir, por favor!

                -Porque é que estás tão fixada em que eu continue a escrever?

                Ela olhou-me nos olhos e abaixou a cabeça mostrando-se envergonhada pelo que ia a dizer:

                -Bom é que tenho um sonho desde pequena… - Respirou fundo – Eu quero criar um filme para poder virar diretora de cinema!

                Era definitivamente um sonho grande. Se calhar, ainda mais difícil de ser concretizado em comparação com o meu, parecia até uma criança pela maneira que falava daquele sonho. Perguntei-lhe:

                -E então? O que é que eu tenho a ver com isso? É o teu sonho não o meu!

                Ela olhou para os seus sapatos e hesitou por uns momentos mas a coragem veio-lhe logo de seguida:

                -O problema é que eu estava a pensar em desistir. É um sonho estúpido e infantil e provavelmente não o conseguirei realizar mas, depois de ler a tua história descobri que há mais pessoas como eu, com sonhos fora do normal. Então eu decidi fazer-te uma proposta – Fez uma pequena pausa – Vamos fazer um filme juntos! Tu escreves o enredo e eu trato de tudo o que tenha a ver com filmagens, vamos criar algo fantástico!

                Dentro da minha cabeça gerou-se uma tempestade de palavras, ideias e outras alternativas para o meu futuro mas eu descartei tudo. No fim, eu só me sentiria realizado se o meu trabalho envolvesse escrever uma história que cativasse milhares de pessoas. E, de qualquer das maneiras, eu tinha desistido de escrever um livro, escrever um roteiro era uma coisa totalmente diferente. Para além disso, tive a sensação de com ela conseguiria criar coisas incríveis, por isso só havia uma resposta a ser dada:

                -Sim, eu aceito!

                Apertámos a mão um do outro, assinalando a nossa aliança. Foi aí que descobri o nome dela.

                Marta.


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