Dendê escrita por Camila Moura


Capítulo 1
Os nomes do apocalipse


Notas iniciais do capítulo

Olá leitor(a)!

Esse novo projeto vem a você com muito amor, carinho e dedicação. Espero que você goste ♥



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Foi no dia em que viu o céu de São Paulo ficar quase completamente escuro no meio da tarde de uma segunda-feira fria que Lis pensou que o mundo definitivamente acabaria. Era quase como uma cena de filme apocalíptico americano, as cores marrom-esverdeadas, as mudanças repentinas, o vento forte típico daquela região do centro. Entretanto, ninguém parecia olhar para o céu com o mesmo espanto que ela, muito pelo contrário. Seguiam normalmente, absortos em seus pensamentos que talvez fossem mundanos, talvez transcendentais... ela nunca saberia. Então, aquilo não era o apocalipse afinal. Sua avó sempre dizia que notícia ruim se espalhava rápido e como não havia um só desvairado correndo pela avenida gritando “É o fim do mundo” a todos pulmões, pensou que tudo estivesse bem.

                Parecia errado, no entanto, agir como se tudo estivesse bem diante daquele dia que virou noite tão repentinamente. O sentimento de coisa-fora-do-lugar se apoderou do seu íntimo com força, aquilo mais parecia um alinhamento cósmico fatalmente catastrófico do que qualquer outra coisa. Aliás, aquele ano estava todo fatalmente catastrófico. Respirava com dificuldade enquanto subia as ladeiras do centro, fazendo o máximo para não deixar sua frustração ultrapassar seus poros e se mostrar para o mundo. Sentia-se inquieta como nunca – ou talvez como sempre – e a realidade lhe era tão enfadonha que a náusea passou a ser uma companheira constante.

                Calou seus pensamentos como tantas vezes já havia feito naquelas situações. Poucas vezes valia a pena remoer essas impressões esquisitas sobre o mundo que não lhe causavam nada além de inquietude e sofrimento. Pensava demais em tudo o tempo inteiro e aquilo a perturbava profundamente. Queria entender como as pessoas com quem trabalhava nos prédios gigantescos da Berrini conseguiam alienar-se da realidade de forma a não sofrerem tão fortemente com ela para - quem sabe - conseguir fazer o mesmo. Não era tola, porém. Bem sabia que essa equação aparentemente simples da alienação não funcionaria de forma tão precisa por duas razões: era impossível saber se essas pessoas realmente estavam impassíveis perante a realidade e, se estivessem, seria impossível que Lis se tornasse uma delas. Isso porque sua cabeça que pensava demais jamais a deixaria em paz.

                Sem mais perguntas a si mesma, colocou os fones de ouvido e tocou uma música qualquer, nem viu o nome. Só o fez porque os ruídos do metrô às vezes eram insuportáveis, só não piores do que o sistema hidráulico das portas de ônibus muito velhos e surrados pela lotação da hora do rush. Aliás, estava convencida que o conceito de hora do rush não existia mais em São Paulo, todo momento parecia ser hora do rush. Ela se perguntava quase todos os dias se havia bom humor que resistisse à vida cotidiana na capital.

                Quando desceu na estação de trem e seguiu para a avenida principal, teve a certeza incontestável de que aquela cidade era a amostra grátis do inferno – senão o próprio inferno. A Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini tinha menos de dois quilômetros de extensão e tanto nela quanto em seu entorno estava concentrada uma quantidade assustadora de capital financeiro e, como todo bom centro comercial, abrigava edifícios gigantescos que, por sua vez, abrigavam inúmeros funcionários que saiam todos para almoçar no mesmo horário e no mesmo horário voltavam, contribuindo um pouco mais para o caos costumeiro do lugar. Exceto nos finais de semana; nesses dias, a Berrini mais parecia uma vila deserta.

                O céu já estava completamente preto quando finalmente entrou no prédio comercial em que trabalhava. Não importava quantas vezes cruzasse aquelas portas pesadas de vidro e o quão alinhado seu terninho estivesse. Tailleur não a salvava dos seguranças que sempre a olhavam com desconfiança enquanto ela passava pelas catracas com seu cartão de acesso ao prédio. Recusava-se, no entanto, a colocar seu crachá de funcionária antes de efetivamente entrar no escritório de advocacia em que estagiava há pouco mais de um ano. Não se prestaria ao papel de ter que provar que realmente trabalhava ali, seu orgulho não lhe permitiria. Além do mais, já estava acostumada. Não se lembrava de um único dia na vida em que não foi vista com desconfiança em espaços como aquele.

                Ergueu os ombros e ajeitou a postura um pouco mais, o que a fez parecer ainda mais alta do que já era. Enorme. Uma mulher gigantesca que chamava atenção estivesse onde estivesse, vestisse o que vestisse. Os cabelos trançados com jumbo loiro ajudavam, é claro, mas eram mero detalhe. “Incontestavelmente linda” era o que sua melhor amiga, Elisa, dizia toda vez que saiam e outros olhares se voltavam para Lis. E Lis sabia bem que tinha sorte de crescer se achando assim tão linda, porque meio mundo insistia em lhe ensinar o contrário.

                Já em sua mesa, checou as notificações no celular e desligou a música, se forçando a não mais dar uma de multitarefa. Essa paranoia surgiu depois que descobriu que, na verdade, é impossível fazer duas ou mais coisas ao mesmo tempo. Que, na verdade, o seu cérebro fica rapidamente mudando de uma tarefa para outra e que isso enfraquece a concentração. Por isso, insistia em trabalhar somente focada naquilo que tinha que fazer a despeito de, muitas vezes, preferir não ouvir certas coisas que ouvia ao longo dos dias. “As pessoas realmente não têm um pingo de noção de realidade” pensava consigo mesma e balançava a cabeça ignorando com veemência os absurdos proferidos.

                Absurdos de toda e qualquer sorte. De comentários classistas a racistas, de machistas a homofóbicos, ou de pura falta de noção e empatia. Ela duvidava muitas vezes que as pessoas que preenchiam aquele escritório tinham algum senso de alteridade ou coração. Sim, preenchiam. Porque a grande maioria ali só estava ocupando cadeiras, preenchendo seu tempo e enchendo seu bolso e o bolso de outras pessoas. A alma delas, pensava, das duas uma: ou deixaram em casa ou não existe. Claro, era uma generalização banal baseada em puramente observar o comportamento delas à distância. Em seu íntimo, Lis ainda gostava de acreditar que cada pessoa é um universo a ser explorado, complexo e interminável. Coisa que ficava difícil de comprovar dadas as pessoas com quem ela mais convivia.

                Levantou-se e foi até a recepção, a mente ainda habitada por reflexões inoportunas demais para o horário. Balançou a cabeça mais uma vez tentando ignorar a divagação, porém, o que veio a seguir era bonito demais para simplesmente ser ignorado. Ou melhor, bonita. Ela era pequena, tão pequena que quase poderia ser confundida com uma adolescente. Por alguns momentos, Lis realmente pensou que ela fosse uma adolescente. Seus olhos colaram nos detalhes do rosto de traços delicados, na pele tão branca que fazia o batom escuro se destacar ainda mais. Travou sem conseguir concluir seu caminho até o balcão da recepção onde deveria receber um documento supostamente urgente. Seu senso de urgência foi para o espaço quando viu o sorriso que saiu daquele rosto quase juvenil.

                -Boa tarde – A garota disse à recepcionista que devolveu o sorriso. “Ela nunca foi simpática assim comigo”, pensou Lis.

                -Boa tarde. Você que é a Naiara, professora de inglês?

                -Sim, vim dar aulas para o Roberto e para a Fernanda.  

                -Ah sim, vou chamá-los – E pegou o telefone para discar os ramais – Você é tão novinha! Nem tem cara de professora.

                -Imagina – Riu – De novinha é só a cara mesmo.

                Lis saiu de seu torpor quando se deu conta de que não podia continuar parada ali que nem uma doida. “Naiara... que nome bonito”, saboreou enquanto seguiu até o balcão e acenou com a cabeça para Márcia - a recepcionista - que mal a olhou e entregou-lhe o documento. Tentou não revirar os olhos, mas era tão óbvio que a recepcionista não gostava dela que ficava difícil se controlar todas as vezes.

                -Boa tarde – Disse para Naiara que sorriu e abriu a boca para responder, mas foi interrompida.

                -Lisandra, leva a professora pra sala Van Gogh – Márcia ordenou quando desligou o telefone, num tom tão desprezível que Lis travou os dentes com força.

                -Claro – Rosnou de volta, pensando que um “por favor” não teria doído, afinal, aquilo era trabalho de Márcia, não dela. Voltou o rosto para Naiara, tentando desfazer a carranca. Não foi difícil, aquele sorriso aberto rasgando os lábios cor de vinho e contrastando com a pele branca tornava tudo mais fácil. – Vem comigo.

                -Que nome lindo, Lisandra – Naiara falou enquanto a seguia pelo escritório – Meu nome é Naiara – estendeu a mão como cumprimento e foi imediatamente correspondida.

                -Seu nome também é bem bonito – Sorriram – Então, você é professora de inglês?

                -Uhum – Respondeu – e você, faz o que aqui?

                -Estagiária – Fez uma careta – A responsável por fazer tudo que os advogados não estão afim de fazer.

                -Assim como todo estagiário – Naiara riu e Lis não pode evitar de notar que aquela risada era uma delícia.

                -É verdade – Balançou a cabeça – Bom, essa é a sala, fique à vontade. Quer um café? Uma água?

                -Não, estou bem – Aumentou o sorriso – Prazer em te conhecer, Lisandra.

                -Pode me chamar de Lis. Todo mundo me chama de Lis.

                -Todo mundo menos a moça da recepção – Observou e Lis não conseguiu não rir.

                -É que ela me odeia – E Naiara se juntou na risada – Foi um prazer te conhecer também, boa aula.

                -Obrigada! See you around?

                -Yup, definitely. — E virou-se para voltar para sua mesa, mas a curiosidade a parou – Espera! – Disse à Naiara antes que ela entrasse na sala.

                -O quê? – Naiara respondeu, o sorriso inabalável.

                -Como sabia que eu falo inglês?

                -Isso fico de te contar na semana que vem – E sumiu pela sala deixando Lis...

                Perplexa. Ela sabia. Ela tinha certeza de que aquele dia não estava normal. E não era só o dia escuro que fazia do lado de fora das grandes janelas de vidro. Não era nem cinco da tarde e já parecia noite. Não, não eram só as costumeiras atrocidades cotidianas. Ela acordou sabendo que as coisas estavam fora do lugar e, se não estivessem antes, depois de Naiara com certeza estavam. Aquele sorriso inenarrável não deixaria absolutamente nada no lugar e Lis se assustou tão fortemente com aquela certeza que a urgência de suas obrigações se esvaiu. Mal viu o resto do dia, mal viu a hora passar, nem viu a hora em que Naiara foi embora do escritório. Não viu o caminho de volta para casa, tampouco o jantar preparado tão cuidadosamente pela mãe, não sentiu a água do chuveiro caindo quente sobre suas costas cansadas. Não sentiu o macio da cama sob seu corpo. E, quando sonhou, sentiu muitas coisas, sendo uma delas as mãos de Naiara em todo canto de sua pele. O apocalipse tinha um outro nome e ele era Naiara.


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Notas finais do capítulo

E, aí? O que você achou? Me conta sua opinião que ela é super importante!

Caso queira me conhecer melhor enquanto não saem os próximos capítulos, pode me acompanhar aqui no Nyah! mesmo (tem uma história terminada bem xuxuzinha) e pelo site: http://camilamoura02.wix.com/portifolio

Beijinhos da Mila ♥



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