Olho por olho escrita por Débora Chase


Capítulo 1
Capítulo único




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O céu é um breu completo sobre mim. Estrelas são minúsculos pontos cujo brilho é quase imperceptível a olhos mortais. A lua cheia é um disco majestoso nas trevas, iluminando o chão a minha frente.

Estou encolhida nas sombras de um prédio em construção. Não há paredes, apenas vigas de ferro e tábuas de madeira dispostas ao longo dos andaimes. Os saltos de minhas botas afundam nos pequenos montes de cascalho enquanto ando de um lado para o outro, apreensiva. Sinto uma ardência leve nos olhos, mas sei que daqui pouco esse leve incômodo vai se tornar uma dor abrasante e insuportável e preciso agir antes que isso aconteça.

Uma amaldiçoada, é isso que sou. Desde antes de eu me tornar uma criatura das trevas, tenho uma sina. Meu olfato é capaz de sentir o cheio do sangue misturado ao álcool do rapaz que está sentado à mesa de um bar decadente há quilômetros de mim. Minha audição permite captar sons como o ruído de respiração ofegante das crianças que brincam na praça logo a frente, o cricrilar dos grilos em meio a um terreno baldio, uma gota da chuva que caíra mais cedo escorregando de uma folha da árvore principal da praça. Apesar de tudo isso, de todos esses “dons” que me vieram por um preço além da minha vida, sou desprovida daquilo que me é mais importante para minha espécie: visão. Os olhos que carrego nunca serão os meus. São de vítimas provenientes de minhas caçadas noturnas. Além de sangue, o que mais me importava eram os olhos. Meu corpo conseguia adaptá-los para a visão noturna, porém quando estes estavam perdendo sua “validade”, passava a enxergar como um humano normal e suas limitações. Quando isso acontecia, era hora de trocar por um novo.

Escuto algo como tábuas caindo e vejo um gato siamês sair de detrás das ferramentas. Ele caminha até mim e para a mais ou menos dois metros de distância. Enquanto me encara, sua cauda balança de um lado para outro, desconfiado. Viro-me para encará-lo de volta. Com olhos neste estado, não consigo ver nada além de seus pelos acinzentados e brilhantes olhos azuis em um rosto marrom. O gato inclina a cabeça para o lado como se perguntasse “Por que me encara tanto?”. Outros de minha espécie enxergariam suas artérias, o sangue correndo pelas veias e o ponto exato onde seria fornecido com mais abundância o sangue ao ter o ponto rompido. Apenas escuto o líquido rubro percorrer aquele pequenino corpo. Sinto minha boca salivar, mas não me seria útil matá-lo para me satisfazer. Além da reserva de vitalidade ser pouca, o que significaria não me saciar por completo, os pequenos olhos não se encaixariam em minhas órbitas. E uma morte na qual se desperdiça algo assim não me era favorável.

Volto a encarar a cidade logo à frente. Devem ser por volta de nove horas da noite. Há muito movimento de pessoas e carros, uma variedade de opções. Analiso cada indivíduo que vaga pelas calçadas. Das minhas presas, os homens eram geralmente meus alvos, porém quando a fome era tão intensa, não tinha escolhas. Agora eu os observo, tentando ver qual será o meu fornecedor desta noite e ele aparece. É um rapaz alto e moreno. Anda com as mãos no bolso do jeans e o capuz do casaco azul encobre parte de sua cabeça. Inspiro o cheiro que vem dele, um leve toque de perfume masculino e sob este, o aroma doce de sangue. É um sangue limpo, sem nenhum resíduo de álcool ou drogas, e aquilo me surpreende. Na maioria das vezes, rapazes daquela idade possuíam uma das duas coisas – ou às vezes as duas – no sangue, tornando-o amargo. Eu não me importava em tomar sangue daquela forma, mas sangue limpo era uma iguaria rara e mil vezes mais apetitosa.

O gato caminha para longe, sumindo nas sombras novamente. Nem me lembrava que estava ainda ali. Provavelmente havia ido embora ao perceber o que aconteceria de agora em diante. Caminho até debaixo da marquise, levemente oculta. Mantenho meu foco no rapaz e me concentro em seus pensamentos. Minhas habilidades eram basicamente psíquicas. Lendo a mente do rapaz, procurei aquilo que me interessa e encontro. Estava tudo pronto exceto por uma coisa: a presa vir até o caçador.

O local onde eu me encontrava seria perfeito e ele não estava muito longe. Penetrando novamente na mente de minha vitima, sussurro em sua mente palavras que soem como um convite irrecusável.

Venha até mim, meu amor. Estou lhe aguardando.

Sua reação é como a dos outros que se foram. Para de andar no meio da pista que atravessa, olhando confuso para os lados. Coça a cabeça por um tempo e leio sua expressão que indaga se enlouqueceu ou não. O sinal se torna verde novamente e o som das buzinas dos carros o fazem despertar de seus devaneios e correr para a calçada antes de ser atropelado.

Estou perto de você, sussurro novamente. Venha até aqui.

Ele encara na direção do prédio onde estou. O cheiro de seu sangue está mais forte agora que está perto mais próximo e quase perco o controle, mas não posso me dar esse direito, ou arruinaria meus planos.

As pernas do rapaz parecem agir por vontade própria e ele não entende como. Apenas está caminhando na direção dos andaimes, tropeçando em algumas pedras. O capuz caíra sobre seus ombros e agora noto a cor de seus olhos. São verdes como esmeralda e brilham de forma intensa. Perfeitos.

O rapaz adentra no local onde estou e para. Pisca duas vezes como se despertasse de um sonho, observando o local, amedrontado.

—- Como vim parar aqui? – pergunta para si mesmo em voz baixa.

—- Veio por mim, meu querido. – falei dando um passo além da escuridão.

Ele olha na minha direção, mas não me enxerga inicialmente. Ando mais um pouco e paro no retângulo de luz do chão. O rapaz me encara surpreso. Avalia-me surpreso e sei bem o porquê. Ele não me enxerga como sou de verdade, mas como a garota de seus sonhos. Aos seus olhos, sou uma garota alta e de pele bronzeada, cabelos longos e castanhos e olhos cor de mel, totalmente o oposto de como realmente sou. Permaneço com as mesmas roupas que estava antes – sobretudo vinho e vestido preto até os joelhos. A Ilusão tinha esse efeito sobre minhas vitimas. Posso fazer enxergarem aquilo que realmente querem ver, como, por exemplo, fazê-los me enxergar como a mulher ideal para os homens ou a homem ideal para as mulheres. Para algumas pessoas, a beleza era uma isca para algo depois e nessas horas eu utilizava tal recurso.

—- Q-quem é você? – gagueja.

—- Isso importa agora? – pergunto caminhando ao seu redor, como uma leoa circundando a presa. – Você está aqui e vai me ser muito útil.

Escuto ele engolir em seco, mas permanece no lugar. Encara-me com uma expressão entre medo e interesse.

—- Como posso ser útil a alguém como você?

Acabo rindo com sua pergunta.

—- Talvez seja melhor eu mostrar como.

Surjo de repente a sua frente, dando-lhe um susto. Não me importo de demonstrar minha agilidade para ele; não viverá por muito tempo mesmo. Toco seu rosto gentilmente, analisando seus traços levemente delicados. Ele é lindo e dá até pena do que seu destino lhe reserva. Poderia transformá-lo em meu companheiro nas sombras, mas a fome não me permite fazê-lo. Não desta vez.

Escuto as batidas rápidas de seu coração quando me aproximo mais. A fome queima minha garganta de forma abrasadora e sinto meus caninos se alongarem aos poucos.

—- Se acalme – digo usando um tom de voz eloquente. – Não tenha medo e não recue. Serei rápida com você.

Aproximo-me de sua face e o beijo. Por alguns segundos ele não corresponde, mas logo depois me abraça e me puxa para si. Estar tão perto dele Ele está tão envolvido que não percebe quando deslizo minha boca para seu pescoço, traçando beijos ao longo da pele até que então o mordo como uma cobra dando o bote em sua presa. Escuto ele arfar, mas está imóvel em meu abraço. O sangue jorra em minha boca e aos poucos alivia a dor na garganta. Sinto o rapaz lutar, mas o aperto mais em meus braços, como uma camisa de força envolvendo-o. Ele cairia de joelhos se não o segurasse e vou cedendo até que ele está deitado no chão e estou sobre ele. Antes de drenar toda a sua vitalidade, ergo meu rosto e encaro seus olhos. Aos poucos a intensidade daquele verde parece sumir, o que significa que não posso esperar mais. O rapaz está imóvel e talvez nem sinta a dor do que virá. Estico as pálpebras e com os dedos, arranco seus olhos. Os dois globos estão pousados em minha mão enquanto retiro os que estavam em minhas órbitas. Eles não passam de uma massa que está prestes a dissolver por conta do veneno em meu corpo. Coloco imediatamente os novos no lugar, tentando encaixar perfeitamente e fecho os olhos.

Demora um tempo até meu corpo se acostumar com os novos órgãos, como se tentasse reconectar ao meu corpo. Sinto as dores latentes nas quais já estou acostumada. Lentamente, abro os olhos e sinto minha visão melhorada. Olho para todos os lados, identificando objetos e seres que só me eram perceptíveis por meio do som que faziam ou pelo odor que emitiam.

Volto a olhar para o rapaz sob meu corpo. Sua beleza se fora assim como seu sangue que agora estava dentro de mim. As órbitas vazias agora estavam voltadas para o teto. Pego o capuz de seu casaco e cubro seus cabelos. No começo, me sentia uma besta cruel que usurpava a vida de uma pessoa e ainda fazia uso de um sentido importante. Mas hoje em dia, eu havia mais do que aceitado minha condição e aprendido a utilizar o que me fora dado ao meu favor.

Levanto-me e pego o cadáver aos meus pés jogando-o sobre meu ombro. Ando até para fora do prédio, me esgueirando nas sombras. Alguns pingos d’água caíam sobre meus cabelos. Uma figura surge por entre as vigas de ferro dispostas no chão e vejo o gato siamês novamente, dessa vez se aproximando de mim. Olha para o corpo que carrego e depois para mim, perguntando com os olhos: “Para onde está levando-o?”.

—- Siga-me se quiser descobrir. – digo.

Como se me compreendesse, o gato põe-se a caminhar ao meu lado, e nós dois desaparecemos na escuridão até o terreno baldio a metros de distância.


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