Habeas corpus escrita por Jude Melody


Capítulo 1
Capítulo único




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Os espectadores mexem-se em suas cadeiras, cochichando entre em si. O advogado de defesa — o inderrotável Phoenix Wright — acaba de entrar na sala do tribunal. Como de práxis, ele se posiciona atrás da tribuna e retira da pasta alguns documentos e o caderno de anotações. Diante do causídico, o promotor Miles Edgeworth exibe um semblante sério. Não está disposto a perder desta vez. Há muita coisa em jogo.

O juiz bate o martelo, clamando por ordem no tribunal. Determina que o réu seja apresentado para que se inicie a audiência. Phoenix não tem palavras para descrever a tristeza nos olhos de Larry Butz enquanto o jovem se arrasta até seu lugar. Vê-se de longe que está choroso e tem sofrido muito. Mas o argumento precisa ir além de emoções baratas. Este não é um programa de problemas de família. É um caso arriscado no qual a liberdade de um homem está em jogo.

Ouve-se o som do martelo mais uma vez. O juiz limpa a garganta e lança um olhar piedoso ao ocupante do banco dos réus. Afinal, já não é a primeira vez — tampouco a segunda ou a terceira — que vê o pobre Butz encolhendo-se como um cachorrinho assustado. Profere as palavras de costume e, sem mais delongas, passa a palavra ao advogado.

— Meritíssimo — cumprimenta Phoenix, — venho impetrar um habeas corpus em favor de meu cliente, Larry Butz.

Mais cochichos. Qual será o crime desta vez? Na última, fora um homicídio. Talvez Larry tenha incorrido em uma difamação. Ele tem cara de quem diz as coisas sem pensar...

— O habeas corpus, como todos sabem, é um remédio constitucional que objetiva garantir a liberdade de alguém que se encontra ilegalmente ameaçado de perdê-la. O constrangimento sofrido por meu cliente é ilegal e injusto. Meu pedido é que Vossa Excelência determine a cessação dessa injustiça.

— Muito bem. — O juiz recosta-se na cadeira e alisa a barba. — E qual é o crime de que o réu está sendo injustamente acusado?

Phoenix coça a nuca.

— Na verdade, Meritíssimo...

— Na verdade, nenhum crime foi imputado ao réu — Edgeworth corta-o. — Trata-se de um caso... sui generis, Meritíssimo.

Sui generis? — O juiz arregala os olhos. — Mas o que significa isso?

— Significa “fora do comum”, Meritíssimo. Um caso... peculiar, digamos assim.

— Entendo... Mas como assim a liberdade do réu não está em jogo por conta de um crime cometido? Explique-se, promotor Edgeworth!

— Creio que essa tarefa caiba ao advogado, Meritíssimo.

Edgeworth lança um olhar suave para Phoenix. O advogado trinca os dentes por alguns segundos, escolhendo as palavras com cuidado.

— É verdade, Meritíssimo. Não há crime nenhum. Meu cliente está muito mais próximo de uma vítima do que qualquer outra coisa.

— Uma vítima? — brada o juiz. — Mas agora, sim, eu não estou entendendo nada! Se seu cliente é a vítima, então, quem é o autor do crime? Explique-se, senhor Wright.

— Na verdade, Meritíssimo... Não há crime nenhum, como eu acabei de dizer. É uma situação... peculiar. Meu cliente está sendo coagido, mas não por um criminoso.

Os cochilos elevam-se, dominando a sala. O juiz bate o martelo várias vezes até obter silêncio. Contém um suspiro e aperta os olhos para o advogado.

— Explique-se, senhor Wright. Do começo.

— Muito bem. — Phoenix apoia as mãos na tribuna. — Tudo começou no dia 1º de abril deste ano. Larry Butz estava em seu local de trabalho, uma loja de conveniência em um posto de gasolina, quando recebeu uma mensagem de texto de um colega. Ele não parou para pensar que poderia ser uma brincadeira maldosa. Quando percebeu, já estava preso. Estava preso n’O Jogo.

— Jogo? Mas que jogo?

— “O Jogo”, Meritíssimo — explica Edgeworth, — é, como o próprio nome diz, um jogo. Ele tem se tornado cada vez mais popular na era da Internet. Possui três regras muito simples. Primeira: todo mundo que souber d’O Jogo passa a jogá-lo. Essa é uma regra absoluta. Uma vez que você se torne participante, não pode mais escapar. Segunda: sempre que um dos jogadores pensa n’O Jogo, por qualquer motivo que seja, perde. Terceira: o perdedor tem de anunciar que perdeu O Jogo. Ele deve fazer isso em voz alta sempre que possível, ou pelo menos se expressar em texto ou por meio da língua de sinais.

O juiz alisa a barba, pensativo.

— Exatamente, Meritíssimo — diz Phoenix. — Larry descobriu “O Jogo” por acidente ao ler a mensagem de seu amigo, que lhe dissera simplesmente “Perdi”. Ao continuar a conversa para entender do que se tratava, Larry foi informado sobre as regras d’O Jogo e passou a participar. Acontece que ele não possui autonomia para dizer que isso é uma tremenda bobagem e continuar a vida normalmente. Desde então, seus dias têm sido um inferno, pois toda hora acontece alguma coisa que o faz pensar n’O Jogo. Palavras inocentes de colegas, familiares e estranhos; matérias sobre esportes; textos e memes nas redes sociais; suas próprias palavras e as respostas dos outros jogadores quando ele precisa anunciar que perdeu O Jogo. Em termos simples, Meritíssimo, meu cliente não aguenta mais perder. Por isso, eu impetrei este habeas corpus para que meu cliente se veja livre deste jogo maldito.

Mais cochichos. Os espectadores estão compadecidos por Larry. Edgeworth impõe silêncio com sua voz grave:

— A promotoria concorda com o pedido da defesa, Meritíssimo. Larry Butz encontra-se em uma situação deplorável e indigna. Ele é claramente uma vítima dessas brincadeiras da Internet que se aproveitam de pessoas com a mente vulnerável. Como defensores da lei, é nosso dever assisti-lo. Por essa razão, concordo com o pedido da defesa para que seja deferido habeas corpus em favor de Larry Butz, e ele se veja livre de uma vez por todas, e pela a força da lei, desse jogo perverso.

Os espectadores não conseguem mais se conter. Eis uma revelação! Edgeworth colaborando com um advogado?! O próprio Phoenix Wright está atônito. Tivera certeza de que Edgeworth seria um empecilho. Mas agora os dois se encaram — olhos surpresos contra olhos altivos. E, contra todas as probabilidades, eles sentem aquele formigamento estranho, como um entendimento mútuo que se estende pelo ar e é aspirado pelos corpos em um silêncio de concordância e empatia. Phoenix lembra-se de fechar os lábios. E Larry lança a Edgeworth um olhar da mais profunda gratidão.

Ouve-se o som do martelo. Várias vezes. Os espectadores demoram a se calar.

— Meritíssimo, creio que já tenhamos reunido informações suficientes para o veredito — sustenta Edgeworth. — Vossa Excelência poderia anunciá-lo?

O juiz fecha os olhos e inspira fundo. Permanece em silêncio por um longo minuto. Com um suspiro, reclina-se para frente, esfrega as pálpebras. E profere:

— Perdi.


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Notas finais do capítulo

Glossário jurídico
Causídico ?“ o mesmo que advogado.
Tribuna ?“ local elevado de onde falam o advogado e o promotor.
Sui generis ?“ em bom português, é um termo que os juristas usam para designar um instituto jurídico que não se encaixa perfeitamente nas classificações tradicionais. Por exemplo, um prédio é um bem imóvel; um celular é um bem móvel; mas o avião e o navio possuem caraterísticas de bem móvel e são tratados pela lei como imóveis, o que leva os juristas a considerá-los bens móveis sui generis.

Essa é uma das fanfics mais nonsense que já escrevi na vida. Não me lembro de onde tirei a ideia, mas gostei do resultado. Até a próxima, pessoal! ;)



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