Chuva no Gramado escrita por Laís Cahill


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/780707/chapter/1

Era final de campeonato. Depois de tantas suposições e expectativas, o time do Limoeiro estava finalmente jogando contra o bairro das Laranjeiras nesta final épica. As arquibancadas estavam lotadas, mesmo com o tempo fechado. Eles gritavam forte, torcendo pelos seus parentes, um som que se misturava com o dos apitos, do vento e dos murmúrios. A adrenalina estava à flor da pele, e os jogadores tinham de se focar para não ceder à pressão e à ansiedade. Poderia ser a chance de suas vidas. A chance de conseguir subir de classificação, de ganhar reconhecimento por tanto esforço, por tantas tardes gastas em treino na quadra, tanto suor. Para alguns, a chance de trazer uma vida melhor para sua família. 

E também poderia ser a chance de arruinar sua carreira com um único chute.

Cascão parou por um instante, subitamente ensurdecido pelo zumbido incessante do vento em seus ouvidos, e olhou para o céu. A ventania e o céu nublado poderiam significar apenas uma coisa: Uma tempestade estava a caminho. 

Folhas começavam a voar dos galhos das árvores, e um sino dos ventos tilintava ao longe. A cada novo sinal do futuro inevitável, o coração de Cascão ameaçava parar.

Como ele tinha ido parar naquela situação?




As tardes de quinta sempre eram as preferidas de Cascão, principalmente as ensolaradas. Esse era o dia sagrado em que seu pai o levava ao clube para jogar futebol de salão, e ele podia curtir o resto da tarde com seus colegas. Havia dias em que levava bronca, outros dias que se machucava, mas no fim, sempre valia a pena. Cascão saía de lá se sentindo mais forte, mais alegre, como se nada pudesse lhe abalar. 

Neste dia em especial, parecia que Cascão estava pegando fogo. Nunca tinha jogado daquele jeito na vida. Seus pés corriam com agilidade no chão de madeira da quadra, deixando qualquer um para trás com seus dribles, e a adrenalina não lhe permitia diminuir o ritmo. Às vezes o treinador lhe dava sermões por ser fominha demais, mas, naquele dia, ele estava ocupado demais observando os movimentos do garoto, de boca aberta.

Num último lance, Cascão passou a bola para um colega, dando um chapéu no adversário. Mal tiveram tempo de olhar para trás, e a bola já retornava para Cascão, que fazia um gol de cabeça. O goleiro soltou um grito de frustração. Cascão saiu correndo pela quadra, urrando em comemoração, e seu time veio ao seu encontro, dando toca-aqui, se amontoando e pulando nas suas costas. Finalmente, o treinador conseguiu fechar a boca e apitar o gol. Inesperadamente, o time vencedor ergueu Cascão no ar e começou a gritar seu nome.

“Cascão! Cascão! Cascão! Cascão!”

Em toda sua vida, este era um dos dias em que ele tinha se sentido mais vivo, mais satisfeito consigo mesmo, mais realizado. Sentia que tinha nascido para aquilo, para a adrenalina, para os chutes, e que nunca mais queria parar.

Uma semana depois, veio o convite. Cascão foi convidado para se juntar a um time maior, um time bem conhecido regionalmente. Para um garoto de doze anos, era uma coisa importantíssima. O time júnior do Limoeiro não era pouca coisa. Mas sua mãe não queria deixá-lo ir, com medo de que a nova rotina de jogador afetasse seus estudos. Seu pai até tentou argumentar, mas no fim, era ela quem decidia. Então Cascão implorou, encheu o saco da mãe, prometeu estudar três vezes mais. Disse que ela poderia tirá-lo do clube caso ficasse de recuperação. O pai de Cascão sorriu para dona Lurdinha e lançou um olhar significativo. Ele achava que o futebol até poderia ajudar nos estudos. Os dois se encararam, e o garoto finalmente obteve um sim.

Já dentro do time, a história não era mais tão perfeita. Dentro do time maior, Cascão não se destacava. Haviam muitos garotos maiores, que por vezes esbarravam no menino e o machucavam, às vezes de propósito. O treinador de lá não estava tão satisfeito com o desempenho do garoto. Pelo contrário, ele achava que o menino vinha decaindo. Tudo chegou ao seu ápice quando, no meio de um jogo, começou a chuviscar. Cascão lembrou-se do motivo original pelo qual queria jogar futebol de salão, e não de campo: A quadra era coberta. 

Não teve jeito. Cascão deu chilique, saiu correndo no meio do jogo e passou o resto do segundo tempo escondido no vestiário. Sabia que depois que saísse ia levar esporro, e não deu outra. O treinador lhe deu uma bronca memorável. Disse que o seu medo de água o impedia de escalá-lo para qualquer jogo importante, e que acabaria ficando sempre no banco de reservas. Passou muita vergonha na frente dos colegas, e teve vontade de desistir.

Era nessas horas que ele lembrava do sentimento puro de vitória que sentiu ao ser levantado pelos colegas na quadra, e encontrava forças. Ele não era um perdedor. Tinha que seguir em frente e enfrentar seus medos, para que pudesse ser um vencedor novamente, mesmo que isso significasse enfrentar um temporal.




E lá estava Cascão, enfiado no meio de uma partida decisiva com uma tempestade por vir. De um lado estavam seu pai, sua mãe e todos os seus amigos. O seu orgulho e vontade de vencer. Do outro, estava o medo que tanto lhe prejudicava, que o fazia ser humilhado, mas que ainda assim ele não conseguia largar. Esse medo martelava na sua cabeça e impregnava os seus pensamentos, dizendo: “Você não é forte o suficiente. Você não vai conseguir, nunca conseguiu. Assume logo que você está com medo e vai pra arquibancada. Deixe que o seu time ganhe esta partida. Eles nunca precisaram de você, mesmo.”

Cascão respirou fundo, tentando impedir o medo de tomar conta do seu corpo. Era só uma chuva. Todo mundo podia enfrentar uma chuva, por que com ele tinha que ser diferente? A muvuca, os ânimos exaltados e o tempo carregado lhe faziam se isolar ainda mais da realidade. E, no meio de tudo isso, ele ouviu um grito.

— Cascão, pra você!

Mais um segundo e Cascão teria levado uma bolada na cabeça. Com reflexos rápidos, ele desviou e matou a bola no peito. De forma igualmente rápida, ele voltou sua atenção ao jogo. Não sabia quem tinha lhe passado a bola, mas se sentiu grato pelo voto de confiança. A posição era estratégica. Não poderia perder essa chance.

A chuva começou a cair — seria possível? — justamente quando ele começou a correr com a bola. Os pingos caíam gelados, em gotas grossas sobre seu corpo. Essa sensação era tão temida, tão desconhecida do jogador, que ele sentiu vontade de chorar.

— Vai, Cascão!! Você consegue, filho!

O grito de sua mãe atingiu seu coração como uma bala. Era todo o encorajamento que ele precisava para seguir em frente. Sabia que, neste momento, ela devia estar de pé na chuva, derramando algumas lágrimas também. Sua mãe, que nunca foi fã da ideia dele se tornar jogador de futebol, estava torcendo daquele jeito. Agora ele não podia, não iria decepcioná-la.

A chuva tinha engrossado. Era mais difícil correr debaixo dela, pois a grama se tornava escorregadia, mas a chuteira aguentava o tranco. Ele pulou por cima do primeiro zagueiro que tentou lhe dar um carrinho. O segundo, ele deu uma caneta. Viu-se frente a frente com o goleiro, e pôde ver o desespero em seus olhos. A hora era essa.

A arquibancada pulou e urrou ao ver a bola atingir o fundo da rede com força. Ninguém ligava que a chuva estava aumentando significativamente, nem mesmo Cascão. Em alguns segundos, a pancada de chuva se tornou tão forte que ficava difícil enxergar as pessoas ao longe. Os jogadores comemoravam e pulavam em cima uns dos outros, e Cascão entrou na dança. Correu no campo e escorregou na grama molhada. O gramado era escasso, e ele levantou cheio de lama e pedaços de grama na bermuda, mas nem se importou. Os jogadores se agruparam, e Cascão abraçou seus colegas. Cebolinha, seu amigo de infância, veio correndo da arquibancada e lhe deu um abraço forte.

— Careca?

— Eu sabia! Sabia que você conseguilia!

O sorriso de Cascão era tão grande que suas bochechas começaram a doer. A água tornava suas roupas pegajosas e as fazia grudar em seu corpo. Ela também escorria em seus cabelos e pingava do seu queixo, às vezes atingindo seus olhos. Ela o lavava por completo, como se tivesse nascido novamente. Significava uma vida nova pela frente. Cascão mal podia acreditar que tinha ficado paranoico e passado por tanto perrengue por medo de algo que poderia ser tão bom.

Mesmo depois do juiz apitar o fim do jogo, de toda a comemoração, dos jogadores cumprimentarem os adversários e Cascão ir se secar no vestiário, ele ainda chorava. O treinador e os colegas achavam que era de emoção, mas seus parentes mais próximos sabiam que não era isso. Era muito mais do que isso. Eles sabiam o quanto o momento era significativo e, embora não dissessem uma palavra, se alegravam com ele.




— O que você acha que fica melhor pra ir ao cinema, a blusa verde ou listrada?

Cebola segurava dois cabides com blusas, indeciso, mas seu amigo estava sonhando acordado novamente, e não prestava atenção em nada que ele dizia. Isto estava ocorrendo com uma frequência irritante ultimamente, depois da final entre o time do Limoeiro e das Laranjeiras.

— Cascão! Cascão, vê se acolda! Digo… Acorda.

CABRUUUUMMMM

O garoto sujinho se levantou da cama com um susto.

— Hã? Mas o quê? Chuva?

Cebola estava se matando de rir. Seu celular exibia um vídeo intitulado “12 horas de sons de trovão e chuva”.

— Hahahaha, não sabia que esse truque ainda funcionava com você!

— Ora essa, eu sabia que era gravação! — Ele agarrou o celular das mãos do amigo, zangado. — Anos de experiência me ensinaram a diferenciar.

— Uhum. Sei.

DING DONG

— Opa, será que é a Maria Cascuda? — Cascão animou-se e correu para a porta de entrada.

— Calma aí, Lomeu, espela!

Quando Cebola alcançou a porta, Cascão estava saindo de mãos dadas com uma garota de cabelo loiro e encaracolado. Os dois pareciam completamente alheios à sua presença.

— Era só o que faltava. — Cebola sorriu e se apoiou na porta. — Ficou todo exibido agora que tá tomando banho.

Cascão olhou para trás e lançou uma piscadela para o amigo antes de continuar andando.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Chuva no Gramado" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.