éden da Noite escrita por IrinaGras


Capítulo 1
1




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0.

 

O calor subia por minha pele e atravessava meus órgãos, os gritos atordoavam meus pensamentos e o suor esquentava ainda mais meu corpo, cada vez mais eu ia perdendo controle, minha visão embaçando a cada segundo... Que sensação horrível... Eu odeio calor...

 

O barulho de pilastras e paredes caindo fez com que meus olhos abrissem em um estalo, desorientada procurei algum lugar para apoiar minhas mãos, fogo por todos os lados. Em uma ação desesperada coloco as mãos sobre a cabeça e começo a olhar, buscar por uma saída. Encontro uma janela. Caminho em direção a ela, sem olhar para trás. Ninguém para chamar por meu nome, ninguém para me socorrer, todos os corpos devorados pelo fogo, suas almas consumidas pelo desespero. Minhas pernas por sua vez começam cada vez mais a aumentar seu ritmo, num pulo me jogo contra a janela, meus braços cobrindo minha cabeça numa tentativa frustrada de proteger o que me resta. O som mais grotesco sai da minha boca no momento em que minhas costas fazem contato com o chão, o que era de se esperar de um escape do segundo andar. Sinto minhas costelas quebradas raspando contra a superfície da minha pele, implorando para sair de dentro de mim, o sabor quente e metálico de sangue na minha boca traz lágrimas a meus olhos. Sem forças para levantar e só um braço e uma perna de apoio, olho com pena para meu tornozelo torcido, me arrasto o mais longe possível da casa em chamas. A última coisa que vejo antes de embarcar em uma escuridão inabalável é a chaminé caindo vagarosamente em chamas.

 

1.

 

Eu não me encontrei com Deus, nem vaguei por uma imensidão branca, tampouco me afoguei na escuridão, não escutei harpas nem gemidos de dor, não vi asas nem espinhos, não sobrevoei sobre mim mesma, nem vaguei como espírito. Tudo simplesmente passou como em um milésimo em que você pisca. Um estado eu estou moribunda em frente a minha casa em chamas e noutro estou acordando numa cama em um hospital, simples assim.

 

Minhas costelas já não estão doendo tanto assim e temo mexer meu tornozelo, porém tenho quase certeza de que se tentar sentar, além de uma dor tremenda em todas as partes que fraturei ou torci, serei abençoada com uma dor de cabeça como nunca tive, então faço a coisa que me aparenta ser a mais plausível já que tampouco encontro forças para falar, estico meu braço que antes estava ocupado demais segurando minhas costela e estalo meus dedos, tentando ganhar a atenção de alguém. Imediatamente escuto o bater de pequenos saltos sobre o mármore do chão e sei que a enfermeira está vindo, mas não antes sem chamar um médico e se não me engano mais algumas enfermeiras. Logo estou rodeada de pessoas vestindo branco, mais o teto branco, e as paredes de mármore branco, mais as cortinas brancas causando ardência em meus olhos.

 

- Srta. Granger... Vejo que a senhorita finalmente acordou, como se sente?

 

Tenho bastante certeza de que meu rosto se contorceu em um olhar incrédulo porque a parede agora parecia um grande interesse para o médico ruborizado. Uma das enfermeiras, que mais tarde conheceria como a Enfermeira-Chefe, olhou para o médico com irritação e tornou sua atenção pra mim.

 

- Srta. Granger... Sei que essas são noticias difíceis, mas alguém terá que dá-las de qualquer jeito, então lhe farei esse favor, na semana passada - então fiquei uma semana desacordada - houve um incêndio na sua casa, - ela pareceu hesitar por um instante, mas continuou - não houve sobrevivente além da senhorita, que sofreu um grande trauma por causa do fogo, o que poderá trazer alguns pequenos problemas respiratórios no futuro, a fratura de três costelas, a torção do seu tornozelo esquerdo e alguns poucos machucados. Seu tornozelo já está curado assim como os pequenos machucados, suas costelas estão no final do processo, diria que mais três ou quatro dias e já estarão boas o suficiente, - alguém interrompeu a fala da enfermeira e veio até seu ouvido, eles conversaram em vozes baixas, sua expressão pesada com pedra desde o começo, sem mudar, ela respondeu alguma coisa e concordou com a cabeça, o intruso se retirando e ela olhando para o médico e as enfermeiras que logo saíram, - tenho que atender a um assunto de pequena urgência, mas logo estarei de volta para constatar sua situação - com isso ela se retirou do quarto e, mais uma vez, estava na companhia de mim mesma.

 

Certo, meus pais morreram... Queimados. Puxando ar por meu nariz sem sequer pensar já sabia que ia começar a chorar, as lágrimas vindo segundos depois, memórias dos dois invadindo minha cabeça, minha mãe com seu lindo cabelo preto e olhos azuis sorrindo pra mim quando tinha um pesadelo e ia dormir na cama com eles, meu pai com seu bigode, que sempre que eu via dizia que era a coisa mais boba que eu já tinha visto, com seus cabelos e olhos castanhos sorrindo igualmente com o mesmo amor e me ajudando subir na cama onde finalmente me acomodava entre os dois e viajava para um mundo onde tudo era seguro e possível. Logo podia escutar meus soluços de choro. Todos nossos empregados que eram como parte da família e com quem fora criada desde sempre... Queimados. Por que não fui com eles? Por que me cabia essa tarefa de viver com tanta mágoa.

 

A tristeza apertando cada vez mais o que sobrava de meu coração, a dor me corroendo de maneira que nem minhas costelas quebradas me fizeram sentir, e o pior de tudo isso, era que não sabia se conseguiria me lembrar de como me sentia antes de tudo isso acontecer, se conseguiria me lembrar da felicidade de ir almoçar e beijar o rosto de minha mãe, de depois do jantar sentar no colo do meu pai e escutar enquanto ele lia sua correspondência.

 

Minha cabeça começou a doer e logo enxuguei minhas lágrimas, precisava assuar meu nariz antes que minha cabeça começasse a doer mais. Ajeitando-me encostei minhas costas com o maior cuidado na pilha de travesseiros atrás de mim, na mesma hora avistando um lenço sobre a mesinha ao lado da minha cama, e lá coloquei todas as minhas frustrações, naquele pequeno lencinho assuando meu nariz. A coisa mais nojenta e ao mesmo tempo mais libertadora que fiz, já que assim que acabei tornei a encostar a cabeça sobre o travesseiro e meus olhos, mais uma vez, fecharam-se. Dessa vez vendo tudo branco.

 

2.

 

-... Senhorita.

 

O chamado era um sopro distante. Ouviu a si mesma suspirar de satisfação, estava leve, o roçar de suas unhas no tecido e de seus dedos do pé brincando uns com os outros era música para seus ouvidos.

 

-... Srta. Granger...

 

Seu rosto afundando na coisa mais mole e confortável, sua cabeça leve, tudo tão leve.

 

-... Srta. Granger!

 

Não... Não! As sensações e sentimentos estavam desaparecendo vagarosamente, ruídos e luzes inconfortáveis invadindo sua pequena paz até que finalmente abriu os olhos, sua visão borrada, contudo ela não sabia se era por causa de todo esse branco mórbido ou se estava prestes a chorar. Ela finalmente tinha conseguido cair no sono, sem sofrer de pesadelos, como temera antes, nem tivera sonhos bizarros, aliás, não sonhara com nada. Seu sonho fora repleto de sensações, sensações confortantes e boas, algo completamente paralelo, ela não pensava, não via, apenas sentia e escutava... Ela não era Hermione, quase não existia.

Ela queria existir dessa maneira para sempre. E por um momento acreditou que pudesse, porém, mais uma vez, isso lhe fora tirado, o que parecia acontecer todas as vezes em que ela aproveitava algo demais.

 

Hermione resmungou algo de volta só para alertar o intruso de que estava acordada, finalmente abrindo seus olhos.

 

Sem sequer parecer ofendida, por tal resposta rude, a Enfermeira-Chefe a cumprimentou com a cabeça e a olhou nos olhos, aquela mesma maldita cara severa, estóica.

 

- Já que a senhorita não possui parentes aqui na Rússia, infelizmente, a senhorita terá de se mudar para a Inglaterra para viver com um de seus tios – a palavra Inglaterra sendo cuspida com desdém em seu Russo fortemente acentuado do Norte, notou Hermione, que era do Sul – acredito que a senhorita saiba ao menos um pouco de Inglês, correto? – seus olhos eram acusadores, como se fosse pecado falar qualquer língua senão Russo.

 

- Da... – respondeu ela sorrindo cinicamente para a Enfermeira-Chefe. Só porque estava de luto não queria dizer que deixaria os outros tratarem-na com desrespeito. E, aparentemente, a Enfermeira-Chefe percebeu seu erro já que seus olhos focaram rapidamente nas cortinas.

 

- Você vai partir amanhã de trem e alguém estará esperando-a na estação quando chegar à Inglaterra – antes que Hermione pudesse perguntar qualquer coisa ela rapidamente completou – mas não fui informada o nome.

 

Um tenso silêncio seguiu, Hermione decidiu que já era hora de quebrá-lo.

 

- Isso é tudo?

 

- Na verdade não, já volto – com isso a Enfermeira-Chefe deixou o quarto e depois do que aparentou ser minutos ela voltou segurando algo, algo que parecia ser um retrato, que ganhou total atenção de Hermione. Não... Não poderia ser.

 

- Isso foi encontrado perto dos restos da sua casa, junto de algumas outras coisas que sobreviveram... – ela entregou o retrato à menina, era uma foto sua e de seus pais, tirada numa tarde de verão quando sua mãe insistira em um piquenique -... Junto com algumas pratarias, miniaturas e peças de xadrez, gostaria de levá-los consigo?

 

- Não.

 

- Então isso é tudo.

 

A garota olhou para a mulher mais velha, sua face sem expressão refletindo na da mulher mais velha.

 

- Obrigada.

 

- De nada.

 

3.

 

A neve cobria quase tudo ao seu redor, e enquanto caia cada vez mais suas esperanças de ser engolida por ela e soterrada junto das árvores crescia.

 

Cada País tem sua maneira de contar sua História, seja por ruínas, construções ou livros. Na Rússia a História estava soterrada em baixo de milhas e milhas de gelo e neve, poetas, cientistas, escritores, revolucionários, todos cruelmente assassinados, antes que pudessem fazer maior diferença. A História de seu País era tão sangrenta quanto era negra, e seria assim por um longo período, e, no entanto, ela não tinha o menor desejo de deixá-lo.

 

O ar era gélido mesmo dentro de seu compartimento, o silêncio era mórbido e a falta de companhia fazendo-a sentir-se cada vez mais sozinha.

 

Com ambos os dedos indicadores ela empurrou os cantos de sua boca para cima e assim ficou por alguns segundos, e então, lentamente, ela tirou seus dedos. Quando sua boca não ficara na posição na qual a deixara seus olhos se encheram de lágrimas, lágrimas que ela sequer fizera o esforço de esconder. Nesse momento algo lhe fora confirmado, ela havia perdido sua habilidade e vontade de sorrir.

 

Contorcendo-se em agonia ela cobriu sua face com ambas as mãos e por horas ficou nessa mesma posição, o ar gélido não mais um desconforto e suas lágrimas tornando-se suas companheiras.

 

Quando tornou, mais uma vez, sua atenção para a janela soube imediatamente que já não estava mais em sua terra, olhar essas paisagens desconhecidas e estranhas assustavam-na. Seus pais unindo-se ao resto da História e ela esquecendo cada vez mais rápido o sentimento que agora parecia tão desconhecido, felicidade, o querido sentimento que envolvia seu pequeno coração virando uma memória distante.

 

O mundo não era mais tão bonito quanto costumava ser.


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Notas finais do capítulo

Comentários serão muito bem vindos, preciso de opiniões e críticas.