Nate River e o fantasma escrita por RFS


Capítulo 1
espírito do meu silêncio, consigo ouvir-te


Notas iniciais do capítulo

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Nate River também guardava os próprios segredos.

Na escuridão do orfanato, a dor desabrochava debaixo da pele dele e espalhava-se pelo seu corpo de forma não uniforme — nascia pelo ombro e descia até suas pernas, como se fizesse o caminho pelas veias, da mesma forma que um rio. Era uma mordida de demônio em sua coluna infantil, roendo os ossos. Dificilmente usaria essas descrições, entretanto. Preferia pensar na visão puramente científica do problema: havia uma falha no sistema de dor, ponto. Um erro nele, uma mancha onde não deveria.

Desde que virou órfão, tudo que sobrou para ele foi esta dor e o intelecto. Já era menos que uma pessoa tendo-os, se os retirassem então seria um fantasma de alguém que nunca existiu, uma impressão flutuante e embaçada de um ser. 

Por vezes pensava nisso nesses momentos de agonia semi silenciosa no quarto que dividia apenas com os brinquedos. Sentir-se como uma pessoa era difícil — ou mais ainda era ser uma pessoa? Como era ser uma pessoa e ter certeza plena disso, sem nunca se questionar desse fato? Era bom, era assustador? Near queria perguntar a Mello sobre tudo isso, mas além do segundo sucessor não nutrir simpatia pelo primeiro, tinha a impressão que roubaram algo dele também.

Mantendo o olhar para o teto, traçava um mapa anatômico da própria aflição. Sabia os locais onde doía e os nomes dos músculos, tinha-os na ponta da língua para qualquer situação. Estava escrito debaixo das pálpebras dele: sou Near, tenho doze anos e sou o primeiro na linha de sucessão do maior detetive do mundo. Tenho dor crônica. Onde dói é a pergunta que mais irrita-me.

( uma memória )

onde dói, a enfermeira perguntou, os longos dedos dela gentilmente tocando as costas de near. para o menino, ela não era muito mais quente que uma cama metálica nem mais gentil que agulhas com morfina. ao redor, tudo é ruído branco, estéril e sutilmente cruel. há algo no anonimato dali que o faz pensar em lágrimas de mulheres infecundas, crianças mais assustadas do que ele e médicos desviando o olhar.

a enfermeira aguarda a resposta. ele se vira para ela com olhos tão densos e puros quanto de um cadáver. ele tem oito anos e diz por favor, que se traduz para dói muito, muito. é este o peso que o mundo carrega?

 

Ele perguntou-se como estavam as estrelas naquela noite. Não conseguia se levantar para observar o céu, logo restava imaginar. Pensou em um imenso escuro e ali moravam explosões constantes, coloridas. Algumas das estrelas mais distantes já estavam mortas, então prestou condolências a elas. Até o mais cientificista pode ter seus próprios confortos subjetivos, porém nunca chegou a considerar esses pêsames como poéticos.

 

Algo chegou para interromper o luto dele. Ou alguém, era difícil dizer no começo.

A porta se abriu suavemente e fez um ruído tão mínimo que chegou a quase ser mudo. A brecha criada também foi discreta e rápida, logo fechou de novo, dessa vez fazendo mais barulho e chamando a atenção do menino. Near pensou primeiro que foi o vento, depois considerou a hipótese de ser apenas um órfão confuso e que já havia se retirado ao perceber que errou a porta.

Quando a porta se fechou, não havia mais ninguém no quarto além dele. E então, subitamente, quase como uma explosão de Big Bang, havia mais alguém. Near fechou os olhos e quando os abriu já estava acompanhado.

Entre as sombras ele discerniu a forma humanoide e sentiu um medo gelado que subiu por toda a coluna. As mãos cerraram-se para formar punhos fracos e procurou a própria voz, porém mais do que nunca não a encontrou. Ele queria falar algo, mas foi sufocado pela aflição e pela ardência engatilhada pelo súbito estresse.

Near assistiu o visitante aproximar-se devagar da cama em que jazia. Percebeu que mesmo com a pessoa ficando mais perto, as feições não se revelavam, não conseguia assimilar o formato do corpo nem qualquer coisa para identificar alguém. Era uma silhueta que se movia, uma sombra que existe sem a presença dum corpo.

O ser não tinha olhos, embora parecesse estar olhando para ele de cima. Um arrepio percorreu todo o corpo do garoto ao presenciar aquilo, o ar dos pulmões ficou escasso. Queria gritar, queria chorar, pedir ajuda a alguém, a Roger, a Deus e o mundo, as estrelas, qualquer coisa. Queria se arrepender e ser perdoado, queria acordar. Queria não sentir dor.

River percebeu que o visitante sentou na beirada da cama e, apesar de não fazer peso, causava presença como uma pessoa. Antes que pudesse propriamente apreender o que estava acontecendo, ele sentiu um toque frio em cima sua testa. É incerto se o contato era real porque a mão aparentava apenas pairar acima da pele — constatação feita por Near antes de fechar apertado os olhos. Ele ainda sentia o olhar alheio sobre si.

Não captou nenhum outro movimento, som, nada. Mais uma vez abriu os olhos e observando-o diretamente agora, o visitante parecia mais reconhecível, mais humano, mesmo que não conseguisse descrever ainda. Subitamente, expirou o ar que estava segurando e a mão gelada foi finalmente entendida como afetiva. O medo começou a se dissipar para dar lugar a curiosidade.

E ele foi consolado pelo que temia. 

Estava sendo acompanhado, recebendo a compaixão de alguém que poderia não existir. O visitante estava bem mais próximo do que qualquer estrela no espaço, ainda que ele fosse mais abstrato, e pela primeira vez em muito tempo alguém prestou as condolências ao garoto.

Nate River poderia ser destroçado naquele exato momento, o coração adormecer para sempre, os olhos nunca mais encontrando nem luz nem escuridão, mas iria em paz. Uma paz que nasce no peito e, brilhante e morna, inunda todo o quarto e santifica o cômodo de modo que os próximos a passarem poderão ter a impressão do que pode ter acontecido. Que um dia existiu um menino e ele morreu em harmonia com o universo porque não estava sozinho.

Em meio a dor e ao conforto, ele flutuou para a inconsciência em paz.


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