Não há como argumentar com feras escrita por Daniela Lopes


Capítulo 1
Capítulo único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/779860/chapter/1

O viajante caminhava por uma estrada que seguia floresta adentro. Era inverno e a neve caía cada vez mais, tornando a caminhada mais lenta, a respiração mais difícil e piorando a visibilidade. O homem não reclamava. Estava habituado a viver as intempéries da vida, então as naturais não o assustavam. 

            Num dado momento, quando já se afastava de um conjunto de árvores altas e de copa rala , o vento aumentou sua força, empurrando o viajante e piorando a sensação de frio. A nevasca se aproximava e continuar a caminhada era perigoso, assim a busca de abrigo tornou-se sua nova empreitada.

            Olhou à frente, em meio à neve que aumentava, e viu uma parede de rochas acima das árvores. Talvez encontrasse um nicho onde pudesse se esconder até que o tempo melhorasse e antes do cair da noite. Seguiu até lá, forçando seu corpo, protegendo os olhos, evitando respirar o ar gelado que poderia fazer-lhe mal. Enquanto andava rumo ao que seria sua salvação, colocava mentalmente em ordem as coisas que precisava fazer quando chegasse ao seu destino.

            O paredão rochoso assomou à sua frente.  Ele pode ver uma abertura escura na rocha coberta de neve e deu graças por ela ser pouco menor que ele, possibilitando sua entrada. Parou e olhou a pequena caverna por algum tempo. Estaria habitada por algum animal? Retirou a faca do alforje e colocou-a à frente do corpo, curvou-se e entrou alguns poucos passos pela abertura. Jogou uma pedra rumo ao fundo escuro e esperou. Não ouviu som algum. Lá fora, o vento assobiava entre as árvores e o viajante soube que não tinha escolha.  Gritou e esperou por algum som vindo da escuridão, mas só recebeu o silêncio como resposta.

            Satisfeito, caminhou mais um pouco, curvando-se o suficiente para não esbarrar a cabeça no teto rochoso e irregular e sentou-se no chão. Gostaria de acender uma fogueira, mas era impossível conseguir material para o feito. Fechou os olhos e esperou, vestido com seu grosso casaco de couro e lã, suas botas de material semelhante e o gorro que cobria até as orelhas.  Ele já havia passado por outras nevascas antes, então não tinha medo do que vinha lá fora.

            Algum tempo depois, a escuridão veio e somente os sons chegavam até o viajante. Ele tirou um lenço do alforje e apanhou um pedaço de carne seca, mordeu um naco e mastigou devagar. O alimento cheirava bem e o homem comeu mais um pedaço avidamente. Então ele ouviu um som no fundo da caverna, o som de uma respiração profunda e rouca.

            Na total escuridão, o viajante sentiu a presença e ergueu-se, encostado na parede, segurando a faca com força, sentido o corpo tremer violentamente, mas não de frio. O outro som era de pedras sendo pisadas, couro e pelos contra as rochas e novo respirar.  O homem olhou na direção da saída daquela caverna, havia uma leve claridade na nevasca que caía sem piedade, se tinha que tomar uma decisão, era o momento.

          Abastecido de energia, apoiou o pé e impulsionou o corpo, forçando cada músculo a impeli-lo para longe do pesadelo que vinha da escuridão daquele abrigo. Preferia o frio extremo a descobrir que criatura permitiu sua entrada ali sem dar sinal de vida e em seguida, provavelmente ao sentir o cheiro da carne seca, despertou para buscar o que a atraía.

            Apesar do frio, o viajante correu, saindo do abrigo e ganhando terreno, enquanto podia ouvir que, atrás dele, o habitante da caverna também decidiu enfrentar a borrasca em busca do cheiro que sentiu da comida ou de um volume maior de alimento. Ambos, homem e fera, correram pela neve, na escuridão da noite, usando mais os sentidos que a visão.

            Por quanto tempo correram, impossível calcular, mas tal movimento levou-os ao limite do terreno nevado e ao fim da floresta e da linha para ambos, homem e fera. Um precipício se abria diante deles e o viajante percebeu que devia enfrentar seu perseguidor. Voltou-se na direção do animal, com a faca erguida à frente do corpo e esperou.

            O animal caminhava agora mais lentamente, medindo a distância entre eles e o tamanho do invasor de seu abrigo. Naquela semiescuridão, homem e fera não se reconheciam em sua totalidade, mas no tamanho, forma, volume e cheiro.

           O animal poderia ser um felino ou um lobo, era escuro, mas os olhos de predador brilhavam inconfundíveis. O viajante gritou, tentando mostrar à fera que a enfrentaria, tentando convencê-la de que não era uma boa ideia lutarem naquele lugar, mas o animal não se convenceu. O homem sacudiu a faca no ar, como se o cortasse, o zunido do metal contra o ar frio, mas o animal não recuou.

         O viajante recuou mais alguns passos, olhando rapidamente para trás, temendo estar cada vez mais acuado entre a besta e o abismo. Foi quando sentiu o solo estremecer sob seus pés e o terreno nevado ceder sutilmente. O homem ficou imóvel, coração acelerado e o corpo trêmulo. Estava numa lage de neve, instável e apoiada apenas numa pequena base de rocha à beira do despenhadeiro.

       O homem olhou o animal que se aproximava e falou. O animal parou ao ouvir a voz do humano suave e quente. A fera estranhou quando o homem fez o movimento de guardar a faca e erguer uma mão amigável, pedindo algo com a palma voltada para o animal. A voz continuava suave, quase doce e a outra mão do homem estava erguida, com a palma para cima. Era uma atitude que a fera não conhecia e ele sentia o cheiro do medo vindo do viajante, mas um medo diferente.

       Quando a fera caminhou mais alguns passos, o terreno desceu alguns centímetros e o homem exclamou, desesperado, pedindo ao animal alguma coisa em sua língua confusa. O animal cheirou o ar e cheirou o solo. Tinha alguma coisa errada ali e o homem sabia.

       A fera também percebeu a alteração na neve, mas a chance estava a seu favor. O homem não tinha para onde correr, não havia escapatória e a carne dele duraria boa parte daquele inverno. A fera não reconhecia nada além de seus instintos básicos e apesar do ser humano parecer tentar se comunicar com ele, aquilo estava fora das esferas que ela conhecia. Ela era força e instinto. Irracionalidade e necessidade moviam seus atos.

      Mais alguns passos e o homem gritou, tentando correr na direção da fera e para além dela, mas foi pego no meio do salto, jogado contra a neve da beirada e imobilizado. Naquele segundo fatídico, homem e fera se olharam. O solo estremeceu sob o peso de ambos e cedeu, arrastando os dois para o abismo e em seguida o silêncio voltou a imperar.

Não há como argumentar com as feras.

Fim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Não há como argumentar com feras" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.