4/4 & +1 || BYLER escrita por Lady Capuccino


Capítulo 5
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Will Byers nunca foi o maior fã de festas.


      Na verdade, ele não conseguia enxergar motivos suficientemente bons pelos quais deveria ser.

'Se divertir é um bom motivo.' a voz de sua mãe entoou em sua cabeça

Esse era o argumento preferido dela e também o que geralmente usava sempre que estava disposta a convencê-lo a sair de casa e ver outros rostos que não fossem os de seus amigos ou aquele que ele encarava ao se olhar no espelho.

Will meio que concordava.

Ter um momento de descontração era realmente muito bom e até mesmo um nerd de personalidade inegavelmente retraída como a sua estava ciente disso.

Mas pelo que sabia sobre si mesmo e sobre a velha bolha de introversão que o adornava e que carregava consigo como se fosse parte de seu corpo, ele dificilmente se divertiria numa pista de dança lotada, tomando alguma bebida quente e de qualidade duvidosa enquanto estranhos gritavam em seu ouvido tentando manter uma conversa razoavelmente adequada mesmo em meio ao barulho estridente de alguma música pop que ele definitivamente não ouviria caso tivesse escolha.

Não, isso não era uma forma de descontração e sim uma espécie de tortura de longa escala a qual não estava nenhum pouco disposto a se submeter.

E essa era exatamente a grande ironia disso tudo, pois no exato momento ele se encontrava parado no estacionamento do colégio, enfiado no carro que pegara emprestado do irmão mais velho enquanto o barulho do lado de fora do veículo zumbia em seus ouvidos.

Estava prestes a entrar no Baile do Floco de Neve, uma tradição da escola de Hawkins da qual ficaria oficialmente livre daqui há poucas semanas, quando finalmente se formasse no ensino médio.

Na verdade, ele já tinha se livrado dessa obrigação alguns dias antes, usando como desculpa o fato de que precisava estudar pras provas finais como uma forma de escapar das festividades.

Seu plano teria funcionado muito bem se uma ruiva popularmente conhecida como Mad Max não tivesse ligado pra ele requisitando ajuda há pouco menos de uma hora.

Aparentemente algo havia acontecido com Mike e Will duvidava muito que fosse conseguir se concentrar em Cálculos Algébricos ou apostilas de Química Inorgânica sabendo disso.

O fato é que, pelo menos para Will Byers, nada que envolvesse Mike Wheeler inspirava qualquer senso de concentração.

Ele suspirou, tomando alguns impulsos de coragem que nem sabia que possuia e finalmente saindo do carro.

Foi só ao pisar na grama bem aparada do local com os tênis mais velhos que tinha, que ele percebeu que definitivamente não estava adequadamente vestido para a ocasião.

Na pressa havia se enfiado no primeiro par de calças e no moletom mais confortável (e surrado) que encontrou no fundo do guarda-roupa.

Já conseguia sentir os olhares estranhos de algumas pessoas sobre si, mas durante toda a sua vida havia recebido olhares como aqueles por muito menos que isso então, bem, não importava.

Ele atravessou os portões se dirigindo até a entrada do salão enquanto seus pés esbarravam distraidamente em alguns copos descartáveis espalhados pelo chão, quando sentiu o seu velho Walkie Talkie --- que estava oficialmente aposentado desde os seus quatorze anos de idade --- vibrar nas calças.

Era Max.

Tirou o aparelho do bolso, levando-o até os lábios.

"Cheguei. Onde você está?"

"Bem atrás de você."

Ele se virou, observando-a caminhar em sua direção com um semblante irritado que não combinava em nada com o vestido alegre de um lilás profundo que usava e a maquiagem colorida adornando os olhos azuis.

"Seu amigo é um idiota, sabia?" disse, se aproximando

"Sabia. Agora você pode deixar pra insultar ele depois e me dizer logo o que tá acontecendo?"

"Tarde demais. Já o insultei de todas as formas possíveis só essa noite e sabe de uma coisa? Eu não me arrependo."

"Por que será que isso não me surpreende?"

"Talvez porque você saiba que ele merece."

"Não, não sei. Você vai me contar ou vou ter que adivinhar? Não quero parecer rude mas tô ficando preocupado."

Ela riu, balançando a cabeça.

"Acredite, você precisaria se esforçar muito pra parecer rude e essa é uma das poucas coisas em que eu e o 'seu Wheeler' concordamos."

Will corou com as últimas palavras.

A amiga não perdia uma única oportunidade de insistir naquele assunto.

Maxine Mayfield era uma garota cujas convicções eram ainda mais fortes do que sua própria personalidade geniosa.
Em resumo: quando ela colocava algo na cabeça, era praticamente impossível de tirar de lá.

Isso vinha se provando cada vez mais verdade desde o natal passado, quando Mike o presenteara com uma de suas primeiras composições musicais.

Não bastava ter a beleza mais hipnotizante que seus olhos já tiveram o prazer de contemplar, ele ainda ficara muito bom em compor, tocar, cantar e em provocar uma série de emoções exageradas no corpo de Will Byers a cada vez que fazia alguma dessas coisas.

Will geralmente era bom em esconder seus sentimentos do resto das pessoas, ele passou a vida inteira fazendo isso com uma habilidade magistral, mas nada parecia escapar do olhar anormalmente atento da ruiva, de modo que havia sido consideravelmente fácil pra ela notar o quão "desesperadamente apaixonado" ele estava por Mike, de acordo com suas próprias palavras.

Ele nunca negou, sabia que não adiantaria.

De qualquer forma, ter mais alguém sabendo da existência de seus sentimentos dava a eles uma data de validade eterna e, droga, isso era muito assustador.

Mas é claro que essa não havia sido a única tecla em que Max fez questão de bater, ou melhor, de esmurrar.

Como se não bastasse, ela ainda afirmava, com todas as letras, que seus sentimentos eram correspondidos.

Dizia isso desde que ouviu a música que ele ganhara de presente do amigo, as palavras escritas com tinta preta em um papel envelhecido eram tão bonitas quanto a forma com que Mike as cantou.

"Sério, depois do corte de cabelo do Steve, essa foi a coisa mais gay que eu já vi e ouvi em séculos." ela lhe disse momentos após ler a letra da canção

E desde então estava plenamente convencida de que Mike tinha alguma espécie de paixão ultra-secreta por ele e por mais absurdo que aquilo tudo pudesse parecer, como já foi mencionado: era praticamente impossível tirar uma ideia fixa de dentro de sua cabeça ruiva.

Mas Will nunca desistia de tentar.

"Ele não é 'meu Wheeler'.'" sussurrou sentindo o coração afundar um pouco com o peso das palavras

"Não? Devia dizer isso a ele então, porque a cada dia que passa fica um pouco mais difícil me convencer de que ele não é estupidamente apaixonado por você."

"Max! Para com isso e diz logo o que tá rolando."

"Tá, tá, eu vou parar. Mas só porque você já tá ficando mais vermelho que o meu lindo cabelinho."

Will não queria ter uma espelho por perto pra conferir.

"Seguinte, o seu Wheel- o Mike, ele meio que se meteu numa briga com o babaca do Troy Anderson. Eles trocaram socos e um dos dois pode ter quebrado o nariz. Talvez o Troy. Não sei, só sei que ouvi o som de um nariz quebrando e com certeza não foi o meu."

"Como assim?! Onde ele está?"

"No lugar pra onde estamos indo agora." respondeu, caminhando mais rápido "O único pavilhão que não fica movimentado durante as festas da escola."

"O pavilhão da biblioteca?"

"Esse mesmo. Como você sabe?"

"Porque é onde EU costumo ficar durante as festas da escola."

Max riu.

"Nossa, as vezes eu me esqueço do quanto vocês são nerds."

"É, e isso te inclui também, sabia?" diz, arrancando um sorriso culpado dela "Você anda passando tanto tempo com a irmã do seu namorado que está começando a falar como ela."

"Muitos almoços em família juntas, sabe como é."

"Não sei não."

"Você vai saber quando estiver namorando o seu Whee-" ela se detém, ao sentir o olhar mortalmente envergonhado do outro "Ai, esquece! Entra aí."

O empurrou levemente pra ala da biblioteca, fechando a porta em seguida.

A visão lá dentro teria sido cômica em outras circunstâncias.

Lucas estava sentado numa das cadeiras, encarando o chão como se nele estivessem escritas todas as respostas para alguns dos maiores mistérios da humanidade, enquanto Dustin roncava com a cabeça apoiada em seu ombro com um copo cheio de algo que só podia ser ponche de cereja pendendo em uma das mãos.

No meio deles, sentado no chão e com as costas apoiadas em uma das estantes, estava Mike.

Will sabia que não era hora pra isso, mas não pôde se impedir de adimirar a forma displicente com que ele se sentava alí, parecendo alheio ao modo como sua presença preenchia todo o ambiente.

As vezes Mike era como um quadro antigo: bonito e insondável.

Um daqueles quadros que Will passava horas observando, tentando entender o significado por trás dos contornos perfeitamente delineados mas nunca chegando a uma conclusão satisfatória.

E, também ás vezes, ele era como uma pintura abstrata: igualmente bonita, igualmente insondável só que infinitamente mais confusa.

E era exatamente assim que ele parecia agora, segurando um lenço manchado de vermelho no nariz, o rosto anguloso emoldurado na bagunça de fios negros que eram seus cabelos e o corpo esguio vestido num elegante (e apertado) smoking preto.

Ele parecia ter saído diretamente da primeira página de algum catálogo da Rolling Stones sobre rockstars rebeldes.

Ele parecia lindo.

E ele sorriu ao notar a presença de Will alí.

"Oi, seu maluco."

"E aí, docinho." brincou, provocativo "Você vem sempre aqui?"

"Só quando tenho que socorrer o meu melhor amigo idiota depois dele levar um soco." diz, se agachando ao seu lado

Mike ri fracamente, percorrendo-o com um longo olhar.

"Gostei da roupa. É alguma última moda?"

"Sim, uma nova tendência dentre as pessoas que odeiam festas."

"Sorte delas, pelo menos não vão terminar a noite como seu melhor amigo idiota depois de levar um soco."

"Nem me fale." responde, traçando com o polegar um corte em seu sobrecílio "Você tá legal?"

"Hm, já estive melhor. Mas garanto que deixei o Troy muito pior." sorri, dando-lhe uma piscadela

Will suspira em reprovação, voltando-se para o resto do grupo que observava a cena.

"Alguém pode me dizer o que exatamente aconteceu?"

"Cara, a gente tá tão confuso quanto você." Lucas diz, encolhendo os ombros

"É, num minuto estávamos todos dançando e tendo uma noite normal e no outro estávamos no pátio da escola apartando uma briga. A vida não é uma coisa emocionante?" ironiza a ruiva

"Saudade de quando a nossa definição de 'emocionante' era enfrentar demogorgons por aí." Dustin confessou, esfregando os olhos ao acordar

"Não foi tão ruim assim." o amigo se defende "Pelo menos não quebrei nenhum osso."

"Tem certeza?" Will questiona, incerto "Você parece meio... desorientado."

Max exalou uma risada.

"É isso que acontece quando se leva um murro de um cara daquele tamanho."

"Você faz parecer que o Mike foi o único que apanhou."

"É, o Troy levou a maior surra! Nunca vi o nariz de alguém ficar torto daquele jeito." argumentou Dustin, estufando o peito orgulhosamente

"E isso importa?" exclamou ela, levando as mãos até a cintura "A questão é que se algum funcionário o pegasse ele estaria ferrado! Uma suspensão e uma nota de advertência por agressão no currículo escolar e as chances dele entrar numa boa faculdade ao sair daqui iriam pelo ralo. Qual é gente, será que só eu penso nas consequências a longo prazo?"

Um silêncio reflexivo irrompeu no ambiente.

"Você tem razão." Will disse depois de um momento "Mas isso não é importante agora, cuidar desses machucados é. Vou levá-lo pra casa e me encarregar disso, apenas não falem nada com ninguém sobre esse assunto."

"E se perguntarem a gente diz o que? Que ele tava aquecendo pra virar lutador de MMA?"

"Max!" Lucas repreendeu

"Que foi?! Pode acontecer, ué."

"Se acontecer, faça o que você sabe fazer de melhor."

"O que?"

"Insulte quem perguntou."

Ela riu.

"Gostei. Fechado." concordou, voltando-se para o namorado "Agora que tá tudo resolvido, a gente já pode voltar pra festa?"

"Claro, gatinha." ele deu-lhe um beijo na bochecha "Estamos indo, melhoras cara."

"Valeu."

"É, e amanhã me fala mais sobre a briga, tá? Infelizmente cheguei tarde e perdi as melhores partes!"

"Cala a boca, Dustin!" Max exclamou, arrastando-os pra fora da biblioteca e fechando a porta com um baque surdo

O barulho é alto o suficiente para pontuar o nível de sua impaciência.

Will retorce o rosto em uma careta de desaprovação, dirigindo ao amigo um olhar repleto de censura.

"Você a deixou realmente irritada."

"Eu deveria me sentir culpado por isso?"

"Deveria."

"Então vamos fingir que estou."

Will ri, revirando os olhos, esquecendo-se da lista mental de sermões que estava prestes a recitar.

"Acha que consegue se levantar?" perguntou, temendo a resposta

"Não sem a sua ajuda."

"Certo, venha cá." diz, oferecendo-lhe o braço como ponto de apoio

Mike o agarra, erguendo-se em um único impulso.

A manobra teria sido bem sucedida se ele não tivesse se desequilibrado um pouco no processo, o nariz ficando perigosamente perto do pescoço do amigo.

"Hm, você cheira bem." sussurrou, depois de inalar profundamente "Perfume novo?"

Will corou, balançando a cabeça em negação.

"É só o meu desodorante de sempre."

"Me lembre de comprá-lo depois."

"Por que?"

"Porque cheira como você." respondeu simplesmente

Como se fosse a coisa mais trivial a se dizer.

Como se aquelas palavras não tivessem poder o suficiente pra causar uma espécie de curto circuito em suas  defesas cuidadosamente arquitetadas.

Mas, droga, elas tinham.

"Tem certeza de que você não bateu com a cabeça em algum lugar? Ou sei lá, bebeu alguma coisa que não fosse ponche de cereja?" indagou, meio brincalhão, meio preocupado

Mike sorriu brevemente, suas feições diluindo-se lentamente em uma expressão tão sombria que chegava a ser quase predatória.

Ele se aproximou, movendo a mão para o seu rosto de onde afastou uma teimosa mecha de cabelos amendoados que insistia em cair sobre seus olhos.

Aquela era a única coisa que o impedia de vê-lo mais claramente.

"Will Byers," começou, segurando delicadamente seu queixo entre os dedos "Eu nunca estive tão sóbrio ou falei tão sério em toda a minha vida."

Will engoliu em seco, afastando-se apenas o suficiente para que conseguisse respirar corretamente.

Obviamente isso não ajudou muito.

Ele nunca conseguiria fazer qualquer coisa de forma correta estando tão perto de Mike assim.

"Certo," entoou, amaldiçoando a instabilidade em sua voz "Apoie-se em mim, ok?"

"Com prazer." respondeu, dando-lhe o mais largo dos sorrisos

O tipo de sorriso que o fazia compreender exatamente o motivo de sentir o próprio fôlego escapando de seus pulmões.

Deus, aquela seria uma longa noite.

••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••

No fim das contas, Max estava certa.

Sobre muitas coisas.

Ela estava certa sobre o quão terrivelmente apaixonado Will Byers era por Mike Wheeler, o idiota que se encontrava sentado ao seu lado no carro naquele exato momento, cantarolando alguma canção do The Smiths que tocava no programa de fim de noite da rádio enquanto tamborilava os dedos distraidamente na perna.

E ela estava certa sobre o quão estupidamente imprudente esse mesmo idiota tinha sido ao quebrar o nariz de Troy Anderson no pátio da escola, em meio ao baile mais importante do ano, por motivos que até então Will desconhecia e, com isso, correndo o risco de ser expulso antes de conseguir soletrar a palavra 'faculdade.'

Will não queria gastar mais nenhum segundo pensando nas consequências que aquele conflito causaria se alguém os tivesse descoberto alí, ou pior; no que poderia ter acontecido a Mike se o grupo de amigos não chegasse a tempo para apartar a briga.

Mas o fato é que ele continuava ruminando compulsivamente sobre o assunto.

E não conseguia parar.

"Will."

"Sim?

"Tá tudo bem?"

"Hm, claro. Por que não estaria?"

"Porque você está apertando o volante do carro como se estivesse esganando o pescoço de alguém." responde, indicando suas mãos com a cabeça

Will olha pra baixo, assustando-se um pouco com a forma como seus nervos se sobressaiam em seus punhos, denunciando a firmeza do aperto.

Ele relaxa os dedos, girando o volante do veículo ao se deparar com uma curva íngreme.

"Bem, talvez eu esteja um pouco chateado com você." diz, surpreendendo-se com as próprias palavras

Ele raramente ficava chateado com Mike.

"Vai me contar o por que?"

"Acho que pode descobrir isso sozinho." responde, exalando lentamente "Mas se eu fosse te contar, sabe qual a primeira coisa que eu diria?"

"Qual?"

"Que você é um idiota."

O amigo sorri, encarando-o morosamente.

"Ouvi muito isso essa noite."

"É, e a Max tem razão, sabia?"

"Sobre eu ser um idiota?"

Will sorri.

"Isso também. Mas tô falando sobre todo o resto." ele suspirou, sem querer iniciar aquela conversa mesmo sabendo que era preciso "Passamos a vida inteira não nos importando com as coisas que babacas como Troy Anderson tem a dizer sobre nós e der repente você descobre que vale mais a pena descer ao nível dele do que simplesmente continuar ignorando. O que houve, Mike?!"

"Eu não podia, tá legal?" murmura, os olhos fixos na estrada "Não podia ignorar, não dessa vez."

"Por que não? De que forma horrível ele te insultou hoje pra que você agisse assim?"

"Ele não me insultou." respondeu, numa voz tão baixa que por um momento Will pensou ter imaginado suas palavras

"Como assim?"

"Os insultos não eram pra mim." repetiu, apertando os punhos

Aquilo só o deixou mais confuso.

"Então, por que-?"

"Porque não era sobre mim, Will." disse, interrompendo-o "Nunca foi sobre mim, era sobre você."

"Eu... não entendo."

Mike suspirou, fechando os olhos ao se recostar no banco do carro com uma expressão cansada no rosto.

"Ele ficou lá, falando coisas horríveis sobre você e eu não consegui me segurar. Num segundo estava dizendo a mim mesmo que não ia ceder e no outro estava socando a cara dele. Não vou dizer que não me arrependo, porque não é verdade. Não vou dizer que não faria tudo de novo, porque eu faria."

"Mike..."

"Você não pode simplesmente pedir pra que eu ficasse lá, parado, aceitando as coisas horríveis que ele estava dizendo, entende? Não é justo comigo, nem com você."

Um silêncio sepulcral se instaurou no ambiente, o tipo de silêncio que até então não existia entre eles.

As palavras explodiram como fogos de artificio em sua mente enquanto a música cantada por Patrick Morrisay chegava a suas últimas notas no rádio.

Mike havia se arriscado para defendê-lo e mesmo que uma parte de si quisesse muito ficar com raiva dele por isso, sabia que não conseguiria.

Porque a verdade é que Mike Wheeler tinha arranjado um outro jeito de mostrar que Will Byers era um completo tolo se achava que não havia como se apaixonar mais por ele.

E der repente, contrariando todas as expectativas e a corrente latente de tensão que se alastrava no ambiente, ele esconde o rosto em uma das mãos explodindo em uma crise de risos.

Mike parece tão atordoado quanto deveria estar quando se volta para o amigo, o rosto se retorcendo em confusão.

"Deus, você está rindo?"

"Desculpe," responde, soluçando um pouco com a intensidade de sua diversão "Desculpe, eu prometo que vou parar."

"Não pare. Eu gosto de te ver rindo, só quero saber o motivo." diz, começando a achar graça no tom avermelhado de suas bochechas

"É que eu apenas acabei de perceber que você esmurrou o cara mais durão do colégio pra defender a minha honra e agora me sinto como se fosse uma espécie de 'donzela em perigo'." diz, balançando a cabeça como se não acreditasse nas próprias palavras

É a vez de Mike rir, apertando os olhos.

"Que baita reviravolta, né?"

"Como assim?"

"Você acabou de deixar de ser 'Will, o Clérigo Mais Sábio' pra se tornar 'Will, a Donzela Em Perigo'."

"Ah meu Deus, isso daria uma péssima partida de D&D que eu definitivamente não iria querer jogar."

"Eu iria, se isso significasse poder socar o Troy de novo." ele confessa, sério

Os dois se encaram por um momento e imediatamente irrompem em uma nova crise de risos, dessa vez juntos, finalmente rendidos a uma leva de gargalhadas histéricas e quase infantis, sendo consumidos por uma nova onda de riso a cada vez que se olhavam.

Quaisquer que fossem os resquícios de tensão que ainda restavam, se dissiparam pelo ar como folhas secas no outono.

"Agora, falando sério," começou, recuperando o fôlego "Não faça isso de novo, ok? Não vale mesmo a pena perder um dente ou dois por causa das provocações de um babaca do caralho."

Mike o encarou, chocado, rindo um pouco mais enquanto ainda limpava as lágrimas de sua crise de risos anterior.

"Você-"

"O que?"

"Você xingou."

"Sim."

"Você xingou mesmo."

"Xinguei."

"Meu Deus." ele reclinou-se no banco, fitando-o com um olhar incrédulo "Que horas são?"

"Ahm, oito e quarenta e cinco." Will informou, confuso

"De que data?"

"Mike, por que isso agora?"

"Apenas fale a data, Byers."

"Dezesseis de dezembro de 1988." ele disse, decidindo que talvez o amigo realmente tivesse batido muito forte com a cabeça 

Mike se empertigou no banco, assumindo teatralmente uma postura pra lá de pomposa.

"Senhoras e senhores, William Byers acaba de xingar pela primeira vez ás oito e quarenta e cinco do décimo sexto dia de dezembro de 88." entoou, com sua melhor imitação de radialista "Guardem bem esse momento, pois é histórico!"

"Ah, seu palhaço!" Will riu, dando-lhe um soquinho no ombro "Eu já xinguei outras vezes sim, tá?"

"Ah, claro, talvez quando você bateu seu dedinho na quina do sofá e não conseguiu se conter ou naquela vez que éramos crianças e disputamos pra ver quem dizia o palavrão mais feio. Mas espontaneamente? Não mesmo, Byers."

"Bem, eu não menti, não é?" encolheu os ombros "Ele é mesmo um babaca do caralho."

"Sim, ele é." concordou, sorrindo carinhosamente "E você é a pessoa mais surpreendente que eu já conheci."

"Tá me dizendo isso só porque descobriu que eu sei xingar?"

"Não, esse é apenas um dos motivos. O primeiro é o fato de você ter aparecido no baile mais importante do colégio vestido num moletom."

Will riu.

"Não é só você que gosta de quebrar as regras de etiqueta de vez em quando."

"Bom saber." respondeu, dando-lhe um de seus sorrisos conspiratórios

Estava tudo bem, Will repetiu a si mesmo e ao seu coração teimosamente agitado.

Mike estava aqui e ele estava bem e continuava sendo uma das melhores coisas que já aconteceram em sua vida.

E se Troy Anderson desse motivos pra ter a cara socada por ele de novo, por Deus, que Mike pelo menos se lembrasse de pedir sua ajuda com isso.

•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••

A residência Byers se encontrava abençoadamente silenciosa quando eles atravessaram a porta, entrando na sala e rindo furtivamente enquanto tropeçavam nos próprios pés devido a escuridão do cômodo.

Will rapidamente se moveu pelo ambiente, acendendo as luzes com a habilidade cega de quem já fizera isso muitas vezes.

“Estamos sozinhos?” Mike indagou, estranhando a quietude

“Sim.” informou, ligando o último abajur “O Jonathan foi pra Fort Wayne esse fim de semana tirar umas fotos pra um catálogo de automóveis ou algo assim.”

“E a tia Joyce?” pergunta e Will quase sorri com isso

Mesmo prestes a completar seus dezoito anos, ele ainda não perdera a carinhosa mania de chamar sua mãe do mesmo jeito que fazia quando era criança.

“Está com o Hopper. Aparentemente eu já cresci o suficiente pra ela me deixar ficar sozinho em casa e ir namorar em paz." responde, parecendo aliviado

O amigo lhe dá o sorriso familiar de quem entendia exatamente do que ele estava falando.

"Por que não se senta um pouco?”

"Não quero te dar trabalho tendo que limpar manchas de sangue depois."

"Eu não me importo.” dá de ombros “Mas vou me importar se você tiver câimbra de tanto ficar em pé."

"Ok, Byers, você venceu." ele se rende, jogando-se no sofá com um suspiro derrotado 

Will ri de seus modos desleixados, der repente se lembrando do que já deveria estar fazendo.

"Vou pegar o Kit de Primeiros Socorros. Já volto!"

Ele corre em direção a cozinha, abrindo os armários em busca da maleta onde guardava os medicamentos e torcendo silenciosamente pra que ainda estivesse lá pois já fazia algum tempo que não a utilizava.

 

A encontrou perto dos produtos de limpeza, numa das prateleiras mais ao fundo e puxou-a pra si, espirrando um pouco no processo.

A maleta costumava ser branca mas devido aos meses de desuso se encontrava amarelada pelo tempo e pela fina camada de poeira que a revestia.

Pegando-a entre os dedos, ele a levou  até a pia, esfregando uma esponja em sua superfície plástica.

"Você tá com fome?” perguntou, aumentando o tom de voz “Posso pedir uma pizza pra gente."

"Will, não precisa se preocupar com isso, eu tô bem." o amigo responde, suas palavras abafadas pelo barulho da água corrente

"É o minimo que eu posso fazer. Além disso, ainda não fizemos compras, então a não ser que você queira comer o não tão delicioso prato de tofu que está na geladeira, vamos ter que pedir pizza. O que vai ser?”

Mike não demora mais que um segundo pra responder.

"Pizza!" 

Will sorri.

"Foi o que eu pensei."

Ele vai em direção ao telefone, discando os números que conhecia tão bem e, depois de repetir as informações necessárias pro atendente, coloca o aparelho no gancho, apanhando a maleta ao finalmente retornar para a sala.

Mike se encontrava jogado no sofá conservando a mesma postura desleixada com a qual havia se sentado.

Sua silhueta, antes obscurecida pela penumbra do interior do carro, tinha agora seus contornos evidenciados pela fraca luz emitida do abajur ao lado.

Ele era exatamente o mesmo de poucos instantes atrás, mas ainda assim, estava diferente.

Havia se livrado dos sapatos e do terno de veludo escuro e brilhante que espelhara seus olhos igualmente negros durante toda a noite, desprendendo os pulsos das abotoaduras douradas e afrouxando o aperto da gravata.

Parecia indecentemente bonito, como um anjo caído cujo o único pecado foi insultar a todos com uma beleza incomparável.

Will teria se perdido mais em suas feições hipnotizantes se seus olhos não tivessem captado a forma como ele esfregava um ponto acima da clavícula, o rosto retorcido de incômodo.

"O que foi?"

"Nada, é só que... eu acho que não foi só no rosto que ele me acertou." 

"Tire a camisa." ordena, antes que pudesse se conter

Mike o encara por um momento, aturdido.

"Como?"

"T-tira a camisa. Sabe, pra eu ver se tá tudo bem."

"Ah, claro."

Ele desvia os olhos e Will agradece intimamente por isso, pois no momento tinha plena certeza de que seu rosto se encontrava tingindo com o mais profundo tom de escarlate.

Seus dedos se movem pelos botões perolados, desabotoando-os com  vagarosidade, concentrados unicamente na tarefa de despir.

O tecido fino desliza por seus braços, revelando camadas de pele pálida revestindo um tronco bem esculpido.

Por Deus, aquilo era desconcertante.

Fazia com que Will se lembrasse de memórias não tão distantes, permanentemente trancadas num baú no fundo de sua mente.

Memórias de quando seu corpo resolvia agir por conta própria sempre que estava perto do amigo em condições como aquelas.

Dias em que ele ia vê-lo treinar no ginásio da escola e antes de sequer perceber, seus sentidos estavam completamente preenchidos com pensamentos de... Mike.

Mike alongando-se no campo, os músculos de seus braços ondulando lentamente quando ele acenava para Will no meio de uma partida.

Mike gritando ordens pros seus companheiros de equipe, tecendo elogios quando alguém fazia uma boa jogada ou se movendo pela quadra com a habilidade praticada de um líder que sabia o que estava fazendo.

Mike sorrindo pra ele ao sair do vestiário, com as faces coradas e os cabelos molhados caindo de forma rebelde por seus ombros largos.

Mike.

Pra qualquer adolescente com os hormônios em fúria que cultivasse uma montanha russa de sentimentos pelo melhor amigo, aquilo teria sido um inferno de se lidar.

E por um tempo, foi.

Will ainda se lembrava de acordar no meio da noite, com o corpo em febre e a mente repleta de imagens do amigo vestido em seus shorts esportivos, o peito subindo e descendo rapidamente e os olhos brilhantes prendendo-o numa espécie de feitiço invisível.

Mas isso havia passado.

Ele não tinha mais quinze anos e, repetindo a fórmula de uma vida inteira, aprendera a lidar com seus próprios desejos.

Agora, vendo-o assim, sentia o próprio corpo traí-lo ao se comportar da mesma forma que fazia há não mais que um par de primaveras atrás.

"E então?"

Will pigarreia, limpando a garganta.

"Nada mal."

"Obrigado, eu sei que fico muito bem sem camisa." diz, sorrindo charmosamente

"Eu tava falando dos machucados, seu idiota." ele ri, sentando-se ao seu lado

Exceto que não era bem verdade.

Pelo menos não totalmente.

"Não tá tão ruim assim, só ficou meio roxo aqui." alega, percorrendo o dedo indicador num ponto púrpuro em sua pele

"Viu? Eu disse que deixei ele bem pior."

"Tô contando com isso." brinca, abrindo a maleta

"Então, por que você não foi ao baile?" o amigo pergunta, observando seus movimentos "Já sei, não queria me dar o gostinho de te ver num smoking."

"Isso também." ele sorri, despejando um pouco de álcool em um pedaço de algodão "Só que o fato de eu odiar festas pesou mais na hora de decidir."

"Bom, gostaria de dizer que você não perdeu muita coisa mas aí eu estaria mentindo."

"Nisso tenho que concordar." responde, pressionando o algodão no inchaço acima da clavícula

O ato faz Mike soltar um grunhido.

"Doeu?"

"Não, sua mão tá gelada."

"Oh, desculpe."

Will apanha o algodão nos outros dedos, repetindo o processo com a mão esquerda.

E mais uma vez, o amigo emite um som de incômodo.

"Mão gelada de novo?"

"Não, é que agora doeu." diz, exalando uma risada

"Sinto muito, eu sou péssimo com essas coisas." ele se desculpa, os ombros caindo em desanimo

"Ei, relaxa, eu só tô brincando contigo." Mike ri, dando-lhe um tapinha em seu braço "Você tá tão tenso, ainda tá bravo comigo?"

"Eu não tô bravo com você."

"Mas estava há uns trinta minutos. Você até xingou. Tem noção disso? Eu fiz Will Byers xingar e um soco na cara nunca valeu tanto a pena!" entoa orgulhosamente

O outro ri, balançando a cabeça.

"Você nunca vai me deixar esquecer disso, não é?"

"Claro que não. Queria ter filmado pra gente dar umas boas risadas revendo a fita daqui há uns vinte anos."

Will perde a fala por um instante, esquecendo-se de responder, as palavras ainda ecoando em sua mente.

Havia mesmo possibilidade deles continuarem tão unidos até lá?

"Que foi?" Mike questiona, notando seu silêncio

"Nada, é só que... você acha que ainda vamos ser assim daqui há vinte anos? Tipo, ainda seremos próximos e tudo mais?"

O amigo ri languidamente.

"Eu espero que sim. Quem mais vai cuidar dos meus machucados quando eu me meter em encrenca de novo?" responde, dando-lhe um dos seus sorrisos tranquilizadores

E Will se pega desejando que ele fosse o único a fazer aquilo,

       pelo tempo que pudesse.

Os dois mergulham numa quietude tácita novamente, enquanto ele se concentra na tarefa de cuidar dos machucados.

Não são muitos.

Além do ferimento na clavícula, há dois cortes; um na bochecha e outro em seu sobrecílio, um galo pouco proeminente na testa e um ponto avermelhado e latejante em seu queixo que ele suspeita ter sido provocado por uma queda durante a briga.

São fáceis de tratar e Mike é um paciente curiosamente quieto, quase contemplativo enquanto o observa realizar o trabalho como se aquela fosse a coisa mais interessante de se assistir.

"Prontinho." ele finaliza, fixando um último curativo em sua pele

"Obrigado." o amigo agradece, tocando a sutura no rosto "Me sinto bem melhor."

"Mesmo? Não tá sentindo nenhuma dor?"

"Um pouquinho. Não esquenta, vai passar." sorri suavemente

Mas isso não o impede de se sentir mal.

Simplesmente não era justo.

Não era nenhum pouco justo que Mike sentisse qualquer tipo de dor, nem agora, nem nunca e só a ideia de que aquilo estava acontecendo o deixava incomodamente inquieto.

"Tem alguma coisa que eu possa fazer?" questiona, coçando a nuca "Posso te dar, sei lá um antisséptico ou um comprido. Acho que tem na cozinha, eu vou buscar!"

Ele se levanta rapidamente, esquecendo-se dos produtos reunidos no colo ao se mover em direção ao outro cômodo, mas Mike agarra seu braço antes que consiga prosseguir, prendendo-o num aperto firme.

Por um momento, os únicos sons são os do liquido incolor vertendo do frasco de álcool caído no chão e os de suas respirações se misturando na sala.

"Tem uma coisa que você pode fazer."

"O que?" ele questiona, sentindo a boca seca com a intensidade do olhar

"Sabe o que dizem por aí?"

"Não, não sei. O que?"

"Dizem por aí que um beijo sempre ajuda a melhorar." responde pausadamente, como se saboreasse as palavras em sua língua

"Engraçado," Will ri, voltando a se sentar  "Uma vez um garoto de nove anos me disse a mesma coisa."

"Ah, é?"

"É, ele estava aterrorizado com a possibilidade de eu ter que amputar a minha perna. Você o conhece?"

"Me parece familiar." diz, sorrindo "E esse garoto, ele estava certo? Ajudou a melhorar?"

"Ajudou."

"Bem, então eu acho que você vai ter que testar essa teoria em mim, William Byers."

"Eu tenho escolha?"

Por deus, ele não queria ter.

"Sim, você pode escolher por onde quer começar."

Will cora, sentindo um comichão conhecido tomar conta de seu corpo.

 
        "Certo, feche os olhos."

"Por que?" ele questiona, a voz rouca

"Porque não vou conseguir fazer isso com você me olhando."

Mike não demora mais que um instante para obedecer, suspirando pesadamente ao unir as pálpebras, fechando-as.

Pela segunda vez num único dia, Will Byers sente o sangue fluir com velocidade desenfreada por suas veias.

Já haviam passado por uma situação parecida como aquela, há muito tempo, quando eram crianças e quando ainda desconhecia o que aquele pontinho de calor que sentia em seu peito sempre que Mike sorria pra ele poderia significar.

Agora a situação parecia ter se potencializado milhões de vezes mais, pois a verdade é que os pontinhos de calor haviam se transformado em pequenos focos de incêndio dentro de si, não mais concentrados num único canto escuro de seu corpo, mas fervendo por toda a extensão dele, fazendo-o perceber com nitidez assustadora o quanto queria aquele garoto por inteiro.

Queria beijá-lo quantas vezes pudesse e não só pra expurgar alguma dor incômoda de seus machucados ou pra repetir de forma platônica uma situação de anos atrás.

Queria percorrer seus lábios em todos os lugares; do ponto púrpuro em seu torso até a pele pálida na junção de suas costelas, deleitando-se alí até que sentisse a boca dormente com o contato.

Queria ouvi-lo suspirar seu nome quando o beijasse, violando-o com o seu próprio desejo.

Ele queria muitas coisas, todas proibidas.

E se aquela fosse a única delas que teria para essa noite, se encarregaria de aproveitar.

Will se inclina em sua direção, o rosto pairando tentativamente acima de sua clavícula quando deposita um beijo suave no inchaço ali presente, ouvindo-o emitir um ruído baixo, quase um rosnado.

de dor, talvez? 

"Te machuquei?" questiona, a testa se franzindo de preocupação

"Não." responde, a voz inconfundivelmente grave "Por favor, continue."

É o que ele faz, movendo os lábios para a pele macia de seu rosto, trilhando um caminho cálido e molhado por seus traços angulosos enquanto se ocupava em dar atenção a cada único lugar onde estava sendo autorizado a percorrer.

Por vezes, Mike contrai os lábios em pequenos sorrisos,  sentindo a pele arrepiar-se conforme Will prossegue em sua exploração, marcando-o com seus beijos como se estivesse delimitando um território.

Como se Mike fosse unicamente seu para tomar.

E naquele instante, ele parece inegavelmente entregue, como se realmente o fosse.

Um a um, os beijos se dissolvem nas extremidades de suas feições: bochecha, sobrecílio e testa, até que ele finaliza o percurso depositando um último e mais demorado beijo na ponta do queixo, resistindo a tentação de deixar os lábios escorregarem mais pra baixo e provarem um pouco da pele alva do pescoço.

Will se afasta relutante, a boca perigosamente perto de seu rosto.

"Melhor?"

Mike exala pesarosamente, seu pomo de adão subindo e descendo num movimento fluído quando engole em seco.

"Melhor." ele responde, movendo os lábios calmamente

Os mesmos lábios que Will sempre desejara possuir com os seus, mas que no entanto lhe pareciam dolorosamente proibidos.

Naquele momento, se permite abrir o baú oculto em sua mente, escorregando para dentro dele com a mesma facilidade impetuosa de alguns anos atrás. 

Ele é de novo o garoto de quinze anos, com hormônios em fúria, que acordava no meio da noite com os lençóis molhados e o corpo pedindo por algo que sua mente se recusava a compreender.

E Mike continua a ser exatamente mesmo.

O mesmo garoto pelo qual estava apaixonado.

O mesmo garoto que havia socado Troy Anderson naquela noite, em meio ao pátio do colégio, só para defendê-lo.

O mesmo garoto que permanecia de olhos fechados, sua respiração se convertendo em lufadas de ar quente a medida que o tempo corria, puxando-o em sua direção como a correnteza de uma nascente.

O mesmo garoto que agora colava a testa na sua, tornando-os perigosamente próximos.

Então, entre um suspiro prolongado e outro, entre os segundos e os milésimos que precedem uma tempestade de sensações, suas bocas se tocam.

Dois pares de lábios imóveis e unidos em uma única respiração.

É suave, morno e quieto como o encaixe de duas constelações, não é rápido, nem desesperado como os filmes fazem parecer, não os deixa desnorteados como se o mundo tivesse parado de seguir seu curso giratório ou como se seus pés não pudessem mais tocar o chão.

Todas essas sensações de euforia são sufocadas por outra coisa, algo mais primordial, mais silencioso, mais latente: uma sensação morna de pertencimento que se alastra pelos seus corpos como fogo percorrendo um rastro de pólvora.

E Will pode sentir isso, o sangue vibrando como se reconhecesse o toque, cada partícula de seu corpo doendo com a intensidade com que queria isso, precisava disso, sentindo um desejo inconfundível, quase selvagem, de tomar aquele beijo pra si da forma que ele desejava há tanto tempo.

Mas é Mike, sempre Mike, quem decide avançar.

Há uma fome escancarada na forma como retribui o gesto, embalando seu rosto nas mãos e perseguindo seus lábios como se ele fosse um homem no deserto, sedento por um pouco de água e disposto a beber tudo dele.

Seu auto-controle diluindo-se lentamente, fluindo pela sua espinha como chocolate quente derretido, vertendo dos poros de sua pele com calor descomunal. 

Não havia como não se perder nisso.

Porque Will é suave sob seus dedos e seu corpo se molda ao dele com abandono e, Deus, seus lábios são facilmente a melhor coisa que ele já provou.

São cheios, macios, feitos pra serem devorados.

E der repente, isso é tudo que ele pode fazer: provar Will Byers com a ganância que só agora se permitia ter, saboreando seus gemidos roucos quando ele o provoca, mordiscando o lábio inferior só para ter o prazer de ouvi-lo ofegar com a doce tortura, para depois dar-lhe o que tanto queria, lambendo o interior de sua boca, chupando sua língua, beijando-o lenta e deliberadamente.

É tudo sobre vontade.

Sobre desejar e ser desejado, sobre possuir e ser possuído, sobre se perder sem nunca querer se encontrar. 

Suas mãos mapeiam seu corpo, despertam arrepios na pele, o tocam em todos os lugares.

Porque Will está em todos os lugares.

Ele está sob sua língua, está no gosto de sua respiração, está impregnado em sua mente, está no tocante de sua alma e está perseguindo-o com a mesma fome, arranhando a pele nua de seus braços e se questionando quando se tornou tão natural ser beijado assim, ser arruinado assim, pelo simples toque de Mike Wheeler.

Will podia jurar que eles estavam se beijando por horas quando o ruído afiado da campainha os interrompeu, quebrando o feitiço.

Ambos se separam, encarando-se atônitos, seus corações esmurrando furiosamente no peito, os lábios inchados e os corpos tremeluzindo com a fina camada de suor formada pela intensidade da fricção. 

Por um momento o tempo parece congelar, só voltando a correr no instante em que a campainha toca novamente, uma e outra vez, tragando-os de volta para a realidade.

"Merda." Mike resmunga num murmurio frustrado, as mãos se fechando em punhos

Will se levanta pra atender, forçando o corpo a obedecer seus comandos e percorrendo de forma vacilante o trajeto até a porta.

Mike pode ouví-lo trocar algumas palavras com alguém lá fora, mas sua mente se recusa a processar o significado delas.

Seu corpo está anestesiado, mergulhado em uma leveza plácida e ao mesmo tempo paradoxalmente pesado com a intensidade das sensações.

Ele quer desesperadamente beijá-lo de novo e tudo o que consegue pensar é no quanto precisa fazer isso o quanto antes.

Will retorna pra sala, as mãos espalmando uma enorme caixa de pizza levemente amassada pelo aperto de seus dedos nas extremidades.

Eles se encaram novamente, os rostos corados e as palavras evaporando de suas mentes.

Mike quer dizer mil e uma coisas, nenhuma delas fáceis de se verbalizar, nenhuma delas capazes de serem verbalizadas.

Pelo menos não alí, não agora.

"Então," Will começa, suspirando baixinho "A gente podia comer a pizza e depois... Ver um filme, talvez? Se você não quiser ir embora, é claro."

Sua voz é falha, cautelosa, hesitante e ele olha pra baixo como se temesse o que encontraria em seu rosto se o fitasse por tempo demais.

E enfim Mike se sente capaz.

Capaz de começar a desvendar o mistério infinito que Will Byers representa pra si desde os seus nove anos.

Porque agora ele finalmente sabe.

Sabe que Will está com medo do que aquilo tudo poderia significar.

Sabe que ele teme que o relacionamento de ambos desapareça no mesmo limbo onde perdera o amor do pai por um motivo que só agora compreendiam.

Mas Mike também sabe que não há nada que ele queira mais do que pertencer a Will Byers.

E, no momento, essa é a única certeza que importa.

Levantando-se, ele caminha em sua direção, envolvendo os dedos na caixa de pizza, tirando-a de suas mãos e depositando-a intocada no balcão da sala.

Ele ergue seu queixo, com a ajuda da junção do indicador e o polegar, e a próxima coisa que diz é apenas uma poderosa palavrinha de três letrinhas.

"Não."

"Não?" Will pergunta, finalmente fitando-o com algo queimando no interior de seus olhos

Pontinhos de calor.

"Não." é a sua resposta final

Firme, irredutível.

Não, ele não iria embora.

Não, ele não iria deixá-lo continuar a sentir medo.

E não, ele não iria desperdiçar mais nenhum segundo com outra coisa que não envolvesse seus lábios colados aos dele de novo.

"Mike..." é a vez de Will fechar os olhos, implorando "Por favor."

E ele sabe exatamente o que está sendo pedido.

Mike se inclina, engolindo os restos de súplica de sua boca a medida que inicia um outro longo beijo.

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No fim, eles realmente não comem a pizza.

Ela amanhece fria e esquecida no balcão da sala.

Ainda intocada.

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Notas finais do capítulo

bem, acho que esse é o nosso The End.
Obrigada pela leitura e até a próxima ❤



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