A chuva molhou meu violão escrita por moonmoons


Capítulo 1
Mas você aqueceu meu coração




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Apesar das circunstâncias, para ele a cidade sempre parecia mais acolhedora durante a madrugada. O asfalto molhado refletia a luz dos postes, dos comércios e dos carros que ainda transitavam. Havia muita gente na rua naquela noite, porém apenas dentro dos carros, protegidos da chuva torrencial que já tinha feito morada dentro de seu violão. Taeil caminhava cantarolando uma canção qualquer, dedilhando acordes fáceis e pisando em todas as poças d'água pelo caminho. Geralmente odiava molhar suas meias, mas de nada adiantava evitar as poças quando já estava inteiro encharcado.

Seu pai não deixou nem que ele pegasse o guarda-chuva que ficava encostado perto da porta. Tudo que Taeil tinha era um celular sem bateria, algum dinheiro molhado no bolso do moletom e seu violão, que provavelmente não sobreviveria depois daquela noite. O instrumento era seu único bem realmente precioso e o único que o entendia em sua, agora antiga, família. Estavam os dois naquela situação, dois sem teto vagando de madrugada debaixo de uma chuva gelada que seria o fim de um deles e a causa de um severo resfriado no outro.

Taeil atacou as cordas do violão com violência como se fosse um guitarrista de banda de rock emocore. Um carro buzinou para ele em um sinaleiro que já piscava amarelo, bem comum das altas horas da noite. Ele riu e parou no meio da faixa de pedestres, tocando mais alguma coisa improvisada antes de sair correndo do motorista irritado, que provavelmente estava cogitando cometer um homicídio culposo passando por cima dele tendo apenas o asfalto como testemunha.

Taeil se encostou no poste do outro lado da rua e respirou fundo, logo espirrando com uma força que arranhou sua garganta como se tivesse engolido um shot de pregos.

Mesmo assim, as ruas frias de Seul sempre foram mais acolhedoras que sua casa, de qualquer forma.

Era uma questão de tempo até ele ser chutado definitivamente. Seus pais não lhe dirigiam a palavra desde que começou a sair a noite tocar seu violão pelas ruas do centro. Por algum motivo obscuro seus pais nunca gostaram muito de música e a ideia de ter um filho artista causava uma repulsa tremenda em ambos. Tão grande era a aversão deles à música de Taeil que, naquela noite, o colocaram para fora de casa apenas de posse de seu único sonho ridículo. Haveria de sobreviver daquilo então, já que desdenhou o curso de medicina que seus pais idealizaram.

Taeil sempre foi um bom filho. Não era uma criança difícil de lidar, era quieto, obediente e comportado. Nunca teve aquela fase rebelde da adolescência e nunca precisou entrar em casa escondido depois de chegar bêbado de alguma boate. Taeil sempre foi perfeito aos olhos de seus pais e eles achavam que ele não fazia mais que sua obrigação. Formou-se na escola com mérito e escolheu a universidade a dedo, a melhor delas. Seus pais não esperavam menos que isso. Taeil largou o curso de medicina pela metade e deixou em sua casa não só tudo que ele tinha mas também todo seu passado.

Aquela vida não existia mais.

Agora ele não tinha nada e não era ninguém. Moon Taeil era uma desculpa esfarrapada de ser humano, um personagem fictício criado por uma sociedade cruel. Moon Taeil morreu naquela noite. Ele tinha que renascer das cinzas molhadas daquele reflexo errôneo que via no espelho todas as manhãs.

Aos olhos do mundo ele não tinha nada, mas por algum motivo o universo havia lhe dado um tipo de anjo da guarda, a única pessoa com quem ele podia contar numa hora dessas.

Caminhava a passos lentos pela vizinhança conhecida, segurando o violão ao lado do corpo. Não precisava acordar ninguém daquela pacata rua onde seu amigo morava. Seu anjo, a pessoa mais maravilhosa que Taeil conhecia e obviamente não merecia ter em sua vida.

Ele digitou a senha no portão do condomínio e entrou no prédio, sem saber se era melhor encharcar o elevador ou as escadas. Optou por subir de elevador, aproveitando para dar uma olhada em seu novo eu. Seu cabelo estava grudado na testa e desbotava o vermelho que irritava seus pais talvez mais do que a música. Taeil tentou parecer mais apresentável, mas sem sucesso. Parecia um cachorro molhado e provavelente cheirava igual a um. Um cachorro sem dono e sem rumo, perdido e sem poder voltar pra casa.

Bateu na porta algumas vezes e encostou a testa na madeira. Sentia-se péssimo por acordar o amigo naquela hora. Ele era um fardo na vida dele, isso era certeza. Pelo menos, Taeil se sentia assim.

Quando a porta abriu, Taeil levantou a cabeça e se prestou a sorrir. Não sabia bem o porquê, não tinha nenhum motivo para sorrir afinal. O sorriso morreu em seus lábios quando viu a preocupação nos olhos dele, Johnny Suh, parado do outro lado da porta trajando um conjunto de pijamas de super heroi.

Era no mínimo cômico.

Taeil sentiu os braços fortes do rapaz o colocarem em um abraço firme, molhado, frio e quente ao mesmo tempo. Johnny não pensou duas vezes antes de colocar o rosto na curva de seu pescoço e o apertar nos braços, ignorando totalmente o estado em que ele se encontrava.

Johnny, sempre Johnny. Ele sempre foi assim. Taeil sempre pode contar com Johnny para tudo e aquela vez não era diferente. Taeil sentiu seu estômago revirar e seu coração se comprimir quando ouviu o suspiro escapar pelos lábios do outro.

Johnny, seu Johnny.

O garoto o colocou para dentro, preparou um banho, lhe fez chá de camomila e preparou o sofá cama da sala com um travesseiro, um cobertor e um ursinho de pelúcia. Johnny não tinha nada que servisse nele, então Taeil sentou no sofá cama apenas com uma cueca boxer, que ele havia esquecido na casa do amigo um dia, e uma camiseta tão grande que batia no meio das coxas. As mangas eram compridas demais, mas era confortável e tinha cheiro de amaciante e algo indiscutivelmente Johnny.

O americano tinha uma das mãos esquentando sua coxa e a outra ao redor de seus ombros num abraço estranho, mas não desconfortável. Taeil chorava em silêncio, observando as nuvens se dissiparem lentamente através da janela da varanda.

Tinha parado de chover.

Tomou o chá e se deixou ninar pela voz do amigo, que cantava baixinho juras de amor ao pé de seu ouvido. Taeil conhecia a música e sabia que era proposital.

Seu peito carregava uma dor suspensa no vácuo de seu coração. Uma poça d'água onde pigavam solitárias gotas de algo que Taeil tinha medo de chamar de culpa, preferia chamar de remorso.

Levantou para colocar a xícara na pia e parou em frente à varanda da sala, que iluminava o cômodo com a luz da cidade que nunca dormia totalmente. Johnny se levantou também e se colocou ao seu lado, parecendo ainda mais angelical com a luz de algum carro na rua refletindo em seu rosto.

Taeil olhou naqueles olhos e sentiu o vazio apertar de novo. Comprimir-se e diminuir-se a nada. Johnny nunca precisou dizer, porque Taeil podia ver claramente em cada olhar e cada sorriso. Johnny nunca escondeu seus sentimentos mas também nunca os revelou. De alguma forma, Taeil sabia, e também sabia que Johnny tinha conhecimento de que aquilo não era segredo para ninguém.

Muito menos para Taeil.

E naquela noite, naquele apartamento, Taeil queria retribuir aqueles sentimentos.

Queria mesmo, era uma das coisas que ele mais queria. Uma das únicas coisas que ele realmente queria.

Mas ele sabia que não podia. Moon Taeil não era capaz de amar Johnny Suh.

Não ainda.

Johnny sorriu gentil, e Taeil quis chorar de novo. Estava cansado de receber o afeto e o carinho de Johnny. Estava cansado de apenas receber, cansado de apenas pedir, exigir, precisar.

Johnny sempre teve uma ânsia por se entregar a Taeil, se doar a ele por inteiro. Taeil se sentia um buraco negro na vida de Johnny, sugando todo o amor que ele tinha a oferecer para dentro de seu vazio, seu vácuo, seu gélido e soturno coração.

Taeil sentiu a palma quente de Johnny tocar sua face e fechou os olhos, aproveitando aquele toque mesmo sem merecer. O mais novo lhe desejou boa noite com um beijo na testa e só entrou no quarto quando Taeil se deitou no sofá.

Johnny perguntou se ele queria fechar a cortina da varanda antes de sair da sala, Taeil negou.

As nuvens de chuva estavam finamente dispersas. Taeil sentou no chão da sala e ficou encarando a lua, aparecendo orgulhosa por detrás das nuvens. Johnny tinha mania de chamá-lo de lua. Ele cantava para Taeil todas as músicas possíveis que falavam sobre aquela grande bola branca no espaço.

Taeil nunca tinha pensado nisso, nunca tinha considerado de onde a música veio e como ela entrou em sua vida.

Talvez fosse por causa de Johnny que Taeil achou conforto na música. Se não fosse óbvio pela dedicatória gravada no violão, era nítido na voz doce que o embalava para dormir.

Johnny sorria e cantava "Hey moon, please forget to fall down".

Taeil nunca se deixou cair.

"Hey moon, don't you go down."

Mas de repente seu mundo todo veio a baixo.

Taeil sentiu os olhos arderem e se permitiu chorar de verdade. Chorar como nunca tinha chorado antes. Chorou como a criança que nunca deu motivo para apanhar dos pais, como o adolescente que nunca reprovou na escola e como o jovem que nunca teve um coração partido.

A luz que vinha da lua o confortava com um toque frio.

A lua na verdade era um grande pedaço de pedra que não tinha luz própria, essa era emprestada de um astro muito maior e cheio de calor. Taeil até se achava digno de ser comparado com o satélite natural, porque ele mesmo não tinha nenhuma luz.

Ele só tinha Johnny.

Johnny era um grande e aconchegante sol. Confortável, sempre lá, sempre quente.

Sempre Johnny.

Taeil ainda não podia retribuir toda a luz e calor que Johnny lhe entregou todo aquele tempo, mesmo que ele nunca pedisse nada em troca. Johnny nunca pedia nada em troca, ele apenas amava Taeil com todo seu coração.

Taeil não entendia e consequentemente não podia ama-lo de volta. Porque Moon Taeil não se amava, mal se conhecia, sua vida estava apenas começando.

Recomeçando.

Taeil dormiu ali no chão mesmo, sentado de lado e com a cabeça encostada no assento do sofá.

Acordou com cobertor lhe cobrindo as pernas e uma mão em seus cabelos. Johnny lhe disse bom dia com as bochechas coradas, com aquele olhar surpreso de criança que foi pega roubando biscoitos do pote em cima do armário. Johnny estava sentado no chão ao seu lado, ainda de pijama e com os cabelos apontando para todas as direções.

Taeil sorriu e se aconchegou no maior, se encostando no peito largo e fazendo dos braços do garoto um abrigo seguro. Johnny suspirou satisfeito. Taeil piscou os olhos e os espremeu para tentar olhar por entre os raios de sol que atravessavam a janela.

Depois fechou os olhos, sonhando acordado com o dia em que ele finalmente deixaria de ser a lua e passaria a ser um astro luminoso, pequeno que fosse, mas que pudesse ser uma luz na vida de Johnny assim como ele era na sua. Johnny era seu sol, e Taeil um dia seria uma estrela em sua órbita, finalmente pronta para se deixar queimar.

Derreter.

"I know the world's a broken bone"

"But melt your headaches, call it home"


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