A Dança Das Sombras - Der Tanz Der Schatten escrita por Lady Nymphetamine


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

"Eu estava preenchido pela tristeza

Eu estava tão desolado
Até eu morrer, me abrace
Sim, você reacendeu o amor
E eu irei ressuscitar novamente
Eu te amo"
(Der Tanz Der Schatten)



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Era manhã. Não que houvesse qualquer coisa especial, não que aquele fosse um dia diferente de ontem ou de amanhã, mas era um dia quente e isso a fazia feliz. Entre suas cobertas de gostosas peles de animais, Lilith se movia de maneira preguiçosa, esticando braços e pernas em direção a luz. Como era gostosa a sensação quente que proporcionava. Se espreguiçou uma última vez antes de finalmente se levantar da cama, indo até o biombo sobre o qual havia um vestido disposto.

Quando estava pronta, o fino tecido que recobria sua carne como a pele de um réptil, saiu pelo castelo pisando descalça no chão de pedra, passos leves e ágeis como o ar sob as suas asas de dragão, ou os longos cabelos negros. Lilith ia para o jardim, onde sabia que encontraria sua mãe a caminhar entre os lírios, coletando um a um, apenas os mais bonitos, cortando os caules ao usar com todo o cuidado suas unhas compridas e afiadas como navalhas.

— Bom dia! - A jovem falou indo se juntar à mais velha no serviço.

— Você acordou cedo hoje - disse Malévola. - Não achei que fosse vê-la até o almoço.

— Foi, o sol me fez levantar - Lilith respondeu cortando mais uma das flores. - Pensei em dar um passeio pelo ar, esticar as asas.

— Aproveite que o clima está mesmo bom para isso, mas lembre de ter cuidado com os caçadores. Não gosto quando você vai para longe.
— Eu vou tomar cuidado, mãe, já sou adulta o bastante para saber lidar com alguns humanos - ela ficava um pouco incomodada com a superproteção.

— Você é meio-humana, não se esqueça disso - Malévola falava com muita calma.

Lilith revirava os olhos, detestava quando a mãe ficava lembrando que ela não era uma dragoa pura. Isto não significava que fosse mais fraca ou menos habilidosa, e ainda por cima praticava suas chamas e o seu voo quase todos os dias, mas a incomodava, pois se sentia menos do que Malévola e mais propensa a comportamentos ditos humanos, mesmo que tenha sido criada com pouquíssimo contato com estes. 

As duas terminaram de pegar os lírios quando obtiveram uma quantidade considerável, ao que seguiram para dentro do castelo, da Fortaleza Proibida. Rumaram por diversos corredores, sempre indo cada vez mais alto, mais distante, um caminho sinuoso e de escadaria íngrime, onde nenhum servo jamais seria permitido entrar, até chegarem no topo da menor das torres. Sobre a porta de madeira tratada, havia a inscrição feita com fogo de dragão e os dizeres “Mors ultima linea rerum est”. Lilith sabia que aquela era uma frase de esperança, que enquanto houvesse vida, não havia acabado. Malévola então abriu a passagem e a filha foi entrando logo atrás.

— Oi, mãe - ela falou tão logo entrou, se dirigindo a um altar central.

O espaço era pequeno, porém amplo devido a ausência de móveis nas laterais. Os vitrais ao redor contavam uma história, sobre uma jovem rainha que um dia visitara uma dragoa desesperada e a salvou de destruir a própria vida. Era a história de Malévola e Regina, de como se conheceram, de como se tornaram amantes e, por final, de como Lilith veio ao mundo, fruto desta relação. A jovem começou a depositar cada uma das flores sobre o altar onde a Rainha Má repousava, tão em paz, o semblante de quem estava dormindo. Nem parecia que estava assim havia vinte anos, sob o efeito da Maldição do Sono. Malévola nunca entrara em detalhes, nem Lilith teve coragem de perguntar exatamente o que acontecera, pois toda vez que estavam ali, toda vez que flagrava a loira olhando para a outra, havia uma tristeza tão grande que a tornava incapaz de abordar o assunto. Definitivamente apenas a morte era a última linha, pois sem ela havia esse limbo no qual se encontravam e essa ausência de encerramento.

Terminou de colocar todas as flores, inclusive entre as mãos de Regina, que parecia uma noiva em um vestido totalmente branco, impecável, proposital para refletir as luzes dos vitrais. 

— Vai vir comigo voar? - Lilith perguntou.

Mas Malévola não tirava os olhos da Rainha, sempre mexendo nas flores, como se nunca fosse bom o suficiente, nunca fosse bom o bastante para o que a outra merecia. Respondeu sem nem mesmo olhar para a filha:

— Pode ir, eu vou ficar aqui mais um pouco com ela.

Lilith sabia que precisava dar um tempo para as duas ficarem sozinhas, algo que acompanhava desde que nascera, e que jamais aprovara, porém sabia que não poderia lutar. Foi fechando a porta atrás de si, mas não sem antes dar um último vislumbre, ver Malévola se inclinar sobre o corpo de Regina, os rostos tão próximos, como se fosse beijá-la, mas apenas quase, pois logo se distanciava e a jovem podia escutar que a mãe chorava. Fechou finalmente a porta e saiu dali com o coração pesado.

Precisava deixar a Fortaleza Proibida, abstrair, ao que se dirigiu para o grande pátio e assumiu a forma draconiana, alçando voo veloz, para bem longe. Ela sabia o que estava acontecendo, sabia qual era o problema, podia sentir em suas escamas, rastejando sob a sua pele. Tinha ciência que havia um medo irracional de que o sentimento de Malévola não fosse correspondido por Regina, o que resultaria em ser incapaz de acordar a Rainha, coisa que a dragoa mais velha não queria descobrir e se martirizava dia após dia, ano após ano, incapaz de lidar com qualquer que fosse a verdade.

Por isso Lilith voava, subindo e descendo nos céus, passando pelas nuvens geladas, sentindo o sol em contraste na sua pele. Sobrevoou florestas, muitas árvores e pastos. Passou longe de cidades, de castelos onde poderiam tentar derrubá-la como uma ameaça. Só queria mesmo era voar e aproveitar o seu momento de paz, talvez caçar algum veado ou um boi e levar para o jantar em casa.

Parou em um riacho, bebendo água com a sua boca enorme, até mudar de forma e se encontrar fazendo uma concha com as mãos, o líquido escorrendo entre os seus dedos. Mas o momento durou apenas até escutar alguma coisa se movendo entre os galhos próximos. Se voltou imediatamente, os seus sentidos aguçados despertos em sinal de alerta.

— Quem está aí? - Perguntou com uma voz firme.

Um novo som, agora os passos de um único cavalo, então uma moça aparecia. Deviam ter a mesma idade as duas, mas a jovem com o cavalo não poderia ser mais diferente. Longos cabelos loiros, arrumados em uma intrincada trança, caíam sobre o seu ombro, combinando perfeitamente com a pele alva e os olhos verdes. O vestido de tom azul claro e detalhes dourados denunciava a alta classe social da moça, além das botas de couro. Tudo nela parecia saído de um conto de fadas, o completo oposto de Lilith. 

As duas se entreolharam e então, de súbito, correram e se abraçaram apertado, com a saudade de quem não se vê há tempo demais.

— Emma! - Lilith falou. - Sabia que viria!

— Claro que eu viria! - A loira respondeu. - Sempre que posso escapo do castelo e venho até aqui te procurar.

— Eu também. Estou tão feliz que hoje conseguimos nos encontrar! - E se sentava mais uma vez na margem do rio, onde a outra a acompanhava. - Como vai a vida de princesa?

— O de sempre - respondeu. - Bailes, príncipes querendo casar com o meu tesouro, meus pais apertando minha mente com coisas do tipo “case por amor, Emma”, “você não tem que se apressar, Emma” - imitava a voz da mãe.

— Realmente parece algo que a Rainha Snow diria! - Lilith ria.

Emma era a princesa herdeira do reino da Rainha Snow e do Príncipe David. Os dois eram conhecidos pela sua benevolência e excelente governo, sendo soberanos muito justos e atentos às necessidades do povo. 

— Como vai "o outro lado”, Lily? - A loira perguntou.

Após a derrota da Rainha Má, como uma maneira de se precaver para futuros problemas, os vilões foram exilados em uma faixa de terra chamada em eufemismo de “o outro lado”. A divisão dos dois territórios era exatamente aquele pequeno rio que estava diante das duas, e onde, em um surto de desespero há vários anos, duas adolescentes haviam se encontrado fugindo de casa e desenvolvido uma improvável amizade.

— Na mesma - a dragoa respondeu. - Minha mãe continua fingindo que está tudo bem, só que não está, né? Tia Úrsula e Cruella vão lá as vezes, elas bebem muito e fazem um barulho infernal. Eu fico trancada no quarto, mas tive que me meter uma vez quando a cadela falou de minha outra mãe e minha mãe surtou e quase matou ela.

— Sério?! - Emma ficava surpresa. - E você conseguiu descobrir alguma coisa sobre sua mãe? Por que ela está dormindo, ou quem ela foi?

— Nada - Lilith falava frustrada. - Só sei que se chamava Regina e que era uma rainha.

Não era muita informação e não remetia a absolutamente nada para Emma, que nunca havia escutado aquele nome antes. Conhecia todas as princesas, todas as casas nobre e todas as rainhas dos reinos que faziam parte do continente da Floresta Encantada, mas nunca lera este nome em qualquer livro ou ouvira sua mãe pronunciar.

— Sabe, as coisas estão meio paradas lá no castelo, meus pais viajaram, foram visitar a Rainha Ariel e o Rei Eric - a princesa começou. - Acho que seria uma boa oportunidade para eu conhecer onde você mora!

— Eu não sei, Emma… - Lily parecia incerta da ideia. - Pode ser perigoso pra você.

— Mas eu vou estar com você! - A loira pediu animada. - Ora, vamos! - E a cutucava. - Você conhece o meu castelo, já te levei lá!

— É, mas seus pais são heróis, eles não matam pessoas, nem sabem quem sou eu, nunca me viram antes. É diferente de ir pra “o outro lado”, lá tem bruxos, eles sabem quem você é e vários querem a cabeça de seus pais e a sua seria só um bônus.

A Princesa continuou cutucando, não se daria por vencida tão fácil. Falou de maneira provocativa:

— Eu posso te apresentar aquela minha amiga que você achou bonita, a lobinha, filha de Chapeuzinho Vermelho.
Lilith franziu o cenho:

— Isso é golpe baixo! Eu te contei em segredo, não pra usar contra mim!

— Ora, vamos! - Emma insistiu. - Vai ser divertido!

Realmente seria divertido contrabandear uma princesa, a maior travessura que Lilith já teria aprontado e o bastante para sua mãe surtar quando descobrisse. Se descobrisse. Deu-se por vencida:

— Ok, ok. Eu vou te levar, mas vai ter que segurar bem, pois vamos voando.

A loira ficou tão satisfeita que abraçou a amiga e beijou-a no rosto com carinho. Levantou-se e amarrou as rédeas do cavalo em uma árvore para que não pudesse fugir. Enquanto isso, Lilith assumia sua forma draconiana, a qual não deixava Emma nem um pouco intimidada, pois já vira muitas vezes. Tratou de subir com cuidado e montar no pescoço, se segurando firme nos chifres ou onde conseguisse. Quando tudo estava certo, a dragoa levantou voo, seguindo em direção a Fortaleza Proibida, o seu lar. 

Não era um trajeto distante, não para um dragão adulto e acostumado a voar em alta velocidade. Depois de algumas horas, chegavam ao castelo, que não tinha qualquer guarda, pois não precisava, ninguém em sã consciência invadiria a morada de dois dragões. Lilith pousou no jardim dos fundos, em grande parte por ser uma região mais escondida e menos visível, em especial das torres que eram os cômodos de suas mães.

A morena abriu a porta dos fundos sem fazer barulho e, não vendo qualquer servo no caminho, foi guiando Emma em direção ao seu próprio quarto.

— Aqui é sempre tão vazio assim? - A Princesa perguntou.

— Só quando minha mãe viaja, ou quando ela está muito mal - Lily respondeu fechando a porta dos seus aposentos.

— E qual dos dois é agora? - Emma mexia na penteadeira da amiga, olhando as joias que a outra possuía, desfazendo sua trança e ajeitando a cascata de cabelos loiros.

— Eu honestamente espero que seja o primeiro - se havia algo que não gostava de lidar era a segunda hipótese.

— Tive uma ideia - a loura falou quando acabou de corrigir a catástrofe causada pelo vento da viagem -, por que você não me mostra sua mãe? A outra mãe, não a que palitaria os dentes com meus ossos. 

— Eu entendi que é essa mãe - Lilith respondeu logo. - Ok, acho que estamos sozinhas mesmo, ou minha mãe está trancada na torre dela e não vai sair até ficar sóbria, o que pode levar alguns dias. Quem sabe assim você não me ajuda a descobrir quem ela foi.

— Esse é o espírito! - Falou empolgada. 

As duas moças deixaram então a segurança do quarto da jovem dragoa e seguiram se espreitando por corredores escuros, iluminados apenas por velas ou archotes, quando não possuíam janelas sem qualquer vidro e causavam uma sensação desagradável de que o vento poderia derrubar quem por ali passasse. Por esta razão, andavam de mãos dadas, cruzando todos os perigos, até chegarem na porta com a inscrição. Emma sentia o seu peito apertar, algo estranho, um pressentimento ruim que deixava a sua boca seca. Nunca sua sensibilidade estivera assim, devia mesmo estar diante de algo muito impressionante.

Por esta razão, prendeu o ar quando a amiga abriu a porta e as duas entravam na sala do altar. O cheiro de flores e incenso era inebriante, deixando a jovem princesa levemente tonta por um instante, além das cores, das luzes. Mas nada a impediu de caminhar com certa reverência, lado a lado com Lilith, sem soltar sua mão nem por um instante, até pararem diante do corpo adormecido.

— Conheça minha mãe Regina - a morena falou com até um certo orgulho.

O ar parou e Emma prendeu a respiração por um instante, mas que pareceu durar uma eternidade. Ela sabia, ela reconhecia aquele rosto dos quadros bem guardados nas galerias subterrâneas do palácio, os poucos que haviam sobrado depois de seus pais destruírem quase tudo que pertencera à antiga monarca. 

— É a Rainha Má! - Falou em choque. - Sua mãe é a Rainha Má!

— Não seja idiota, claro que não! - Lily negou de imediato, achando a ideia absurda, embora olhasse da amiga para Regina e reconhecesse aquele olhar, o mesmo que lhe atribuíam na forma de dragão. Ela sabia o que era o terror. - Você tem certeza?

— Claro que tenho certeza! - A princesa insistiu. - Devo ter fugido mil vezes para ver as coisas que estão guardadas, as que minha mãe não conseguiu se livrar e que pertenceram a Rainha Má. Eu tenho certeza absoluta que é ela! Não envelheceu nem mesmo um dia!

— É, a Maldição do Sono faz isso - a dragoa explicou.

A amiga tocou-a então no ombro, dando um leve aperto, de maneira a demonstrar apoio.

— Ninguém nunca soube o que aconteceu com ela - Emma contou. - A última notícia que se tem é que ela invadiu o casamento dos meus pais e os ameaçou de fazer algo terrível. Depois ela simplesmente desapareceu, foi dada como morta.

— Agora sabemos porque - a morena parecia anestesiada com a situação.

— Você está bem? - A loira perguntou preocupada. - Eu não queria te aborrecer, me desculpe…

— Não, não, você não me aborreceu - e olhava para a outra esboçando um fraco sorriso. - Eu só… Parece que foi tudo uma grande mentira, sabe?

— Acho que sei.

As duas então se abraçaram mais uma vez, permanecendo assim por alguns minutos, olhando o Rainha adormecida. Era uma coisa estranha, como se finalmente pudessem ver quem estava ali de verdade. 

— Hey… - Emma então soltou a amiga, chegando bem perto da mais velha. - Tem alguma coisa aqui. - E segurou a mão da Rainha.

— Minha mãe mandou não tocar! - Lily falou preocupada.

— Mas tem algo aqui! - A princesa insistiu, colocando a mão próxima ao rosto, mais precisamente o dedo indicador. - Parece… Um espinho?

Nem pensou duas vezes e simplesmente passou a unha ali, removendo a ponta de agulha sem maiores dificuldades. Isso deixava a morena nervosa:

— Não devia estar mexendo nela, nem devíamos estar aqui! Se minha mãe descobrir, ela nos mata!

— Ela nunca vai saber!

Mas a dragoa estava preocupada demais para dar ouvidos, ao que segurava na mão da amiga e já a puxada para fora do cômodo, fechando mais uma vez a pesada porta e descendo as escadarias com pressa. Tudo aquilo fora errado, não deveria jamais ter levado alguém até o altar. Com o seu coração batendo acelerado, movida pelo pânico de ser descoberta, chegou nos jardins e se transformou em sua forma draconiana mais uma vez, deixando que a loira a montasse para poderem retornar ao riacho, onde se separariam e seguiriam cada uma o seu caminho como se nada tivesse acontecido.

Nada aconteceu. O sol se pôs, deitando longos rasgos multicoloridos sobre o altar da Rainha Má, até as cores desaparecerem e a escuridão total abranger o ambiente. Foi neste breu que, depois de vinte longos anos, Regina abriu os olhos como se despertasse de uma noite de sono. Ela estava sozinha, mas não estava confusa. Seu único sentimento era a mesma raiva que consumira seus intermináveis sonhos.


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