Dezesseis escrita por pirata


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Repostagem de uma oneshot que escrevi em 2017 pra um amigo oculto. Morro de carinho por essa história.

Boa leitura.



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O que você se lembra daquela época? O que deu errado?

— Ah, bem... Isso é um pouco complicado. Eu geralmente não falo sobre isso, mas... isso aconteceu no final de 1970, em ’79 se não engano. Tinha tanta coisa acontecendo, não só comigo mas com toda a banda e, estávamos em Londres para a semana punk daquele ano. Iriamos gravar um disco e tínhamos acabado de terminar uma turnê. Estávamos exausto e eu estava... eu estava lidando com isso de uma forma... ah, bem, como qualquer vocalista de uma banda punk ou qualquer artista lidava com qualquer coisa nos anos 70, sabe? Mas a coisa toda fugiu do controle, eu estava agindo como uma babaca na maior parte do tempo e chegou num ponto em que os outros disseram: “eu não acho que isso vá funcionar se continuar desse jeito”. E, claro, eu entendia, mas digamos que... eu não lidei com isso da melhor forma no início, isso levou um tempo pra mim. Eu seria expulso de qualquer jeito e eu não sabia se queria começar uma briga, sabe?  Essa foi a primeira ideia que me ocorreu, mas depois eu... eu só aceitei. Deixei que me tirassem porque eu percebi que eu era aquele que estava cansado demais para continuar.

Kyle Broflovski para Rolling Stone, 1998

 

 

Gregory chegou de repente na vida de Kyle, ainda na infância, quando aos nove anos. Kyle não era uma criança muito sociável, e nem imaginou que algum dia encontraria alguém como Gregory. Ele também tinha culpa nisso pela péssima mania de afastar as pessoas por medo, a maioria delas não costumava ser muito gentil. Ele aprendeu isso da pior forma. Mas uma vez que ele tinha Gregory, isso não fazia mais diferença.

Kyle e Gregory, Gregory e Kyle. E mais ninguém. 

Com o passar dos anos, quando Kyle percebeu o que aquilo significava, nunca mais o largou, estando próximos por tantos anos que se ver em um futuro onde o outro não se encontrava era quase surreal.

Porque em determinado momento, descobriu que se amavam.

Porque eles precisavam um do outro.

Ou isso não era amor?

Independentemente do que fosse, agarrou os dois pelos sentimentos de maneira bruta. Laçou os corações sem permissão e virou suas mentes de cabeça para baixo. É, era mais ou menos assim que se sentiam. Kyle escreveu isso em uma de suas letras mais pessoais e populares. Nos dias bons, a brisa sempre sopra com mais suavidade.

E se Kyle era uma pessoa romântica? Nem tanto, mas você saberia se o visse do avesso por alguém.

Ele dizia frases sentimentalistas e em seguida algo como: “Você sabe, toda essa merda romântica” e sorria.

Ele costumava ser um alguém saudável em todos os aspectos.

O sorriso estava sempre lá, fazendo companhia a sua natural gentileza até quando a brisa não soprava com tanta suavidade. Mas essa brisa se foi, soprou bem longe dali, fugiu de algo maior: de uma tempestade. E essa tempestade era perfeita para derrubar coisas. Derrubou telhados, quase todas as paredes, e levou para longe. Mas o solo permaneceu, firme e forte até então, recusando-se a desmoronar. Tudo por um sentimento prazeroso, confuso, mas às vezes, desgastante.

Mas Kyle não queria mais pensar nisso, não queria encher sua cabeça sobre os seus sentimentos e o frágil fio que os sustentava naquela corda-bamba. Não queria pensar naquela merda romântica. Kyle estava furioso. Ele estava puto. E iria fazer algo sobre isso.  

Ele desceu do seu opala amarelo, marchando com suas botas marrons sobre a calçada úmida. Franzino, de olhos semicerrados por trás dos óculos de armação dourada e arredonda de lentes vermelhas, bufando com aquele cigarro entre os lábios. Arrastou sua guitarra encapada com couro atrás de si da forma literal possível. Ele estava muito puto. Quem o visse caminhando daquela forma até o prédio da gravadora diria que ele colocaria fogo naquele lugar. E seus demônios sabiam muito bem que ele queria.

Ele passou pela recepção da gravadora, fazendo a moça atrás do balcão se erguer do seu assento na tentativa de detê-lo, mas já era tarde. Ele estava indo tão rápido. Atravessou duas portas de vidro e passou por uma sala vazia, e depois outra com ao menos sete pessoas a espera com seus instrumentos. Kyle os ignorou e atravessou a porta que veio depois, outra de vidro.

Dessa vez havia um pequeno público de quatro pessoas sentadas confortavelmente em seus assentos de frente para a cabine. E lá estavam eles: Gregory, Token, Red e Kenny. Os quatro integrantes da banda que ele criou. Os quatro malditos judas. Olhando para seus rosto, ele sentiu seu sangue ferver em ódio, tantas palavras na ponta da língua, e sua maioria eram apenas xingamentos. Malditos bastardos miseráveis. 

 Não havia ninguém para se apresentar no estúdio e eles apenas discutiam entre si. Mas a presença escandalosa de Kyle atrapalhou o que estivesse acontecendo naquele momento. Todos se viraram, alarmados e atentos ao que que Kyle estivesse prestes a fazer.

Ninguém teve tempo de reagir ou dizer qualquer coisa, apenas seus olhos arregalados o acompanhando até dentro da cabine acusticamente isolada – exceto Kenny, que abriu um sorriso no canto dos lábios, sabendo o que viria. E Gregory, que fechou os olhos e jogou a cabeça para trás -. Kyle removeu ferozmente a guitarra da sua capa e posicionando-a em frente ao torço, apoiando a alça atravessada em seu ombro. Aproximou-se do microfone, e disse:

— Hey, eu sou Kyle. Mas disso vocês já sabem. — Soltou o primeiro acorde da guitarra. Red e Token estavam preocupados, talvez por não conhecerem Kyle há tanto tempo. — Eu costumava ter uma banda até cinco horas atrás, mas eles me expulsaram como se fosse fácil conseguir a porra de vocalista e guitarrista melhor do que eu — Gregory pôs a mão sobre o rosto, massageando as têmporas, cansado. Se sentiu um idiota por realmente acreditar que Kyle não faria nada sobre isso.

Ele fez um breve solo. O som rangia, vibrava e rasgava. Soava como um animal feroz, soava exatamente como a sua áurea. — E essa música se chama: vão se foder, seus cretinos de merda! — Disse em algo próximo a um grito. A raiva saindo pela sua garganta.

 Soltou mais alguns acordes furiosos e Gregory levantou-se da cadeira, andou até a cabine e pediu para que parasse, mas o som era alto demais e tudo o que Kyle queria era ignora-lo, fazendo sua guitarra gritar cada vez mais. Gregory desconectou o instrumento do amplificador e Kyle enfim, parou. Tirou a Les Paul do ombro, jogando-a no chão e saiu da cabine, passando por Gregory como se ele nem estivesse ali. Kenny o aplaudia.

— Kyle, ei, espera — o ruivo andou para fora do estúdio, mostrando os dois dedos do meio para os integrantes da sua banda que assistiam a cena em silêncio. Gregory continuava o seguindo, pedindo para que parasse. Ele continuava indo rápido demais, ignorando tudo e todos.

A raiva dentro dele era grande demais para saber lidar. Todas as emoções se ampliavam e viravam uma bagunça. Céus, a voz de Gregory o chamando incansavelmente atrás de si o fazia querer mata-lo ainda mais. Ele ainda não podia acreditar no que fizeram a ele. Não acreditava que seriam realmente capazes, embora já tivesse ciente de que isso poderia acontecer.

— Kyle !

Ele montou essa banda, ele! Ele era a porra do vocalista, o maldito guitarrista, isso era tão injusto.

— Kyle, ei!

Não seriam nada sem ele. Literalmente. Kyle poderia tomar os direitos autorais da banda, tomar de volta o que é seu. Ele lutou pelo seu espaço, passou pelos sete infernos pra dizer àqueles filhos da puta quem que mandava. Manda.

— Kyle, para.

— O quê?! — Virou-se de supetão, irritadiço. Gregory parou de andar pouco antes de atropela-lo.

— Como assim “O quê?!”, depois daquele show de merda o que você esperava? Que eu deixasse você virar o estúdio do avesso?

— Que deixasse em paz, porra. — Tirou os óculos para que o louro pudesse ver o sangue em seus olhos, o ódio. Haviam olheiras profundas em tons de preto e roxo abaixo dos olhos. — Depois de me jogarem pra fora da minha própria banda — bateu no peito furiosamente — o que você esperava? Que eu fingisse que nada aconteceu? — Respondeu com cinismo, retrucando a altura. Gregory não respondeu, e Kyle voltou a andar de volta para seu carro.

— Achei que tivesse lidado com isso. — Achei que tivesse aceitado isso, era o que deveria ter dito.

— Bem, acontece que eu não “lidei” com isso — usou os dedos para fazer aspas — Você me disse essa manhã, eu não posso “lidar” com isso em cinco horas. Ainda quero queimar todos vocês numa fogueira. — Ele enfim chegou ao carro. Entrando e trancando as portas. Seus movimentos eram rápidos demais para Gregory acompanhar, estava começando a ficar impaciente. Gregory se curvou sobre a janela cuja as vidraças estavam abaixadas.

— Disse que compreendia que-

— Eu disse que compreendia o porquê dessa merda, mas nunca que eu concordava e muito menos que tivesse aceitado. — Kyle girou a chave e olhou para Gregory, ainda com seus olhos furiosos — Eu tô cansado de vocês todos agindo pelas minhas costas e quer saber? Que se foda. Tenha um dia de merda exatamente como você.  — Retirou o cigarro da boca e o lançou na direção de Gregory, que recuou prontamente. Subiu a vidraça, cortando as palavras de Gregory que voltou a se aproximar do carro, sem dar a mínima para elas. O louro bateu na janela, esperando que por um milagre ele a abaixasse, mas não aconteceu. Kyle deu partida no carro como um louco desvairado.

Isso dizia muito sobre as quatro tentativas de tirar habilitação antes de enfim conseguir.

Gregory passou os segundos parado naquele estacionamento, passando a mão entre seus fios louros. Retirou um cigarro do maço no bolso do seu casaco de couro legítimo e um isqueiro do bolso traseiro da calça para acende-lo entre os lábios. Deu um ou dois tragos, e caminhou pacientemente até seu carro.

Estavam hospedados em hotel em Londres há pouco mais de quatro meses. Acabaram de terminar uma turnê pela capital na qual tinham como convidados a Sex Pistols, e embora tivessem sido os melhores shows da sua carreira de sete anos, eles passavam pelo pior conflito entre eles, como pode imaginar. Planejavam gravar um disco até há pouco tempo atrás, mas agora apenas procuravam por um novo vocalista e um guitarrista. Um substituto. Kyle odiava aquela palavra tanto quanto odiava todos agora.

Gregory deu entrada no hotel em menos de dez minutos depois da chegada de Kyle. Correu para o quarto que dividiam no décimo primeiro andar. No mesmo quarto em que tentaram sobreviver um ao outro nos últimos quatro meses. O mesmo quarto cujas as paredes pareciam exprimi-los cada vez mais a cada dia, o qual parecia sufoca-los até a morte. O último do corredor. Gregory estava começando a odiar aquele quarto.     

Girou a maçaneta, estava trancada. Girou novamente, não surpreendentemente, ainda trancada. Bateu na porta uma, duas, três até sete vezes, chamando pelo nome de Kyle, pedindo para abri-la quanto ainda tentava manter a cabeça fria. Procurou pela cópia da chave que tinha, mas não a encontrou em nenhum dos bolsos, e então lembrou-se de deixa-la no estúdio.

 Ele dificultava tanto as coisas. Ele sempre fazia isso. Kyle não era o único cansado.

— Kyle, por favor, abre essa porta. — Ele ouviu algo do lado de dentro. Conseguia ouvir seus passos despreocupados pelo chão, o som da garrafa de licor batendo contra o copo e dos cubos de gelo sendo adicionado a bebida. Depois de mais um pouco de silêncio, ouviu um:

— Me deixa em paz, Gregory. — Não foi dito alto, apenas o suficiente para que ele pudesse ouvir sem transparecer sua raiva. Soou bem mais calmo do que momentos atrás, no estacionamento.

— Não posso. — Suspirou, ainda segurando a maçaneta, mas não a forçava — É meu quarto também.  

— Bem... — Disse, movendo-se pelo quarto de um lado para o outro. — Acho que vai precisar de um novo, pelo menos nas próximas horas. Não estou com humor o suficiente pra estar com alguém que não seja eu mesmo.

O louro largou a maçaneta e virou, encostando-se na porta. Esfregou as mãos no rosto, desgastado. Não era apenas a impaciência de lidar com Kyle nesse estado, mas o cansaço de viverem naquela mesma corda-bamba. Sentiu que já havia tido o suficiente disso, mas se recusaria a deixa-lo. Ele o amava demais para desistir assim, fácil.

— Eu só quero conversar — Não houve resposta. — Ky...

— Vá embora. Não temos nada pra conversar.  — Seu tom soou bem mais baixo que nas respostas anteriores. Os cubos de gelo batiam nas laterais do cilindro de vidro.

— Então me deixa só ver você.

— Você tem dezesseis anos de lembranças e uma foto nossa no seu porta-luvas. Use-as.

— Kyle, me deixa ficar com você.

— Jesus, Gregory, me dá um pouco de espaço. Você está há sete metros de mim e eu já não consigo respirar.  

— Dez metros. — Corrigiu — E eu só tô te pedindo porque há menos de quarenta minutos atrás você estava surtando, e eu tô preocupado contigo. — Kyle voltou a se mover para o outro lado do quarto, os passos mais leves agora.

— Não fique. Eu tô legal. Agora pode ir.

Gregory revolveu desistir um pouquinho e se sentar ao lado da porta. Devolveu o cigarro aos lábios e tragou, ouvindo atentamente ao silêncio do outro lado da porta.

— Tudo bem. Vou esperar aqui. — Disse, aguardando uma resposta que chegou depois de quase um minuto.

— Fique à vontade; divirta-se. — E Gregory voltou ao seu fumo.

Ele começou a pensar um pouco mais sobre o passado para compara-lo ao presente. Se odiava por fazer isso, mas não podia controlar; uma hora ou outra, esses pensamentos chegavam, e ele apenas tinha que aprender a suporta-los.

As memórias vividas das inúmeras vezes em que Kyle o aguardava no pátio do colégio depois da aula, ou durante algumas na maior parte das vezes. Ficava lá, escorado na parede de tijolos expostos com as mãos nos bolsos do moletom, com o capuz cobrindo os cabelos volumosos, mas o real motivo de usá-lo eram os hematomas nos olhos. Olhos roxos, cortes que ainda sangravam nas bochechas, os lábios estourados por um soco que só poderia ter sido dado por um brutamontes. Gregory sempre se preocupou, isso nunca foi novidade.

Mas antes era diferente. Antes Kyle sorria com todos os seus dentes a mostra, tentando reforçar o quanto estava bem para que Gregory não se preocupasse tanto, porque não precisava. Era um sorriso genuíno, mas Gregory nunca gostou dele. Era tão falso, tentava enterrar algo que não deveria ser enterrado. E mesmo não gostando, Gregory entendia que essa era a maneira deprimente de Kyle ignorar e seguir em frente, mesmo com todos os valentões da escola batendo sua meta diária de socos em seu rosto como um maldito saco de pancadas enquanto o xingavam de viadinho de merda.

Qual foi a última vez que não o viu sorrir de maneira sóbria, sem veneno correndo pelas suas veias? Ou um sorriso sincero, mesmo que estivesse no ponto alto de sua sobriedade? Deus, como ele sentia falta do sorriso que nunca gostou. Do sorriso que dizia: eu estou bem, estou tentando. Não se preocupe. Mas Gregory sempre irá se preocupar, e agora mais do que nunca.

Seus sorrisos se tornaram tão indiferentes e desleais.

Algo aconteceu do outro lado da porta, Gregory inclinou a cabeça. Ever Fallen In Love começou a tocar em um volume absurdo dentro do quarto. Gregory fechou os olhos e bateu com cabeça três vezes na parede atrás de si, murmurando algo. Isso piorava cada vez mais.

Ever fallen in love with someone

(Já se apaixonou por alguém)

Ever fallen in love

(Já se apaixonou)

In love with someone

(Se apaixonou por alguém)

Ever fallen in love

(Já se apaixonou)

In love with someone you shouldn't've fallen in love with?

(Já se apaixonou por alguém que você não deveria ser apaixonar?)

 

Alguém chegou no corredor, Gregory demorou para identificar um casal de idosos chegando de algum passeio turístico com os braços cheios de sacolas de papel e com camisetas idênticas que diziam: “I love London”. Estavam hospedados há dois quartos de distância, mas antes de entrarem, focaram os olhares confusos para o homem sentado em frente a uma porta por onde escapava a música alta. Gregory abriu um sorriso amigável com o cigarro ainda na boca e acenou para o casal com uma das mãos. Eles se entreolharam e entraram no quarto em seguida. Gregory revirou os olhos e bateu a cabeça na parede mais uma vez.

— Pelo amor de Deus, Kyle — Disse para si mesmo.

E Gregory prosseguiu sentado no corredor¸ agora já não podendo mais ouvir os passos de Kyle pois a música os cobria. No entanto o ouvia cantar alguns trechos de maneira embriagada.

Isso aconteceu por um tempo. Música atrás de música e o silêncio momentâneo de Kyle. A noção de tempo de Gregory era de que já haviam se passado cerca de vinte minutos, que se pareciam bastante com uma eternidade. Boys Don’t Cry havia acabado de terminar, agora tocava Institutionalized.

— Sometimes I try to do things and it just doesn't work out the way I want it to, and I get real frustrated

(Às vezes eu tento fazer coisas e elas não funcionam do jeito que eu quero, e eu fico realmente frustrado)

 Kyle acompanhava a música.

— It's like, I try hard to do it and I take my time… but it just doesn't work out the way I want it to…

(É tipo, eu tento muito fazer, e gasto meu tempo. Mas não funciona do jeito que eu queria)

 Ele andava de um lado para o outro pelo quarto, agora de maneira acelerada — It's like I concentrate on it real hard but it just doesn't work out. And everything I do and everything I try, it never turns out! It's like, I need time to figure these things out… — (É tipo... Eu me concentro muito nisto, mas não funciona. E tudo que eu faço, tudo que eu tento nunca dá certo. É tipo... Eu preciso de tempo para pensar nisso) Algo quebrou, algo grande. — And like, maybe you should talk about it, you'd feel a lot better… I go, No, it's okay you know, I'll figure it out, just leave me alone, I'll figure it out you know, I'm just working on myself!

(E talvez você devesse falar sobre isso, você sentiria bem melhor... Eu digo, Não, está tudo bem, eu resolvo. Só me deixe sozinho, eu resolvo. Eu me viro)

But they just keep buggin' me

(Mas eles continuam me aborrecendo)

They just keep buggin' me

(Eles continuam me aborrecendo)

Kyle cantava, ou melhor, berrava. Foi então que Gregory ouviu outra coisa se quebrar, e então outra coisa, e então outra coisa... Copos de vidro, os dois abajures talvez, uma ou três garrafas de whisky. O barulho estridente continuava, de novo e de novo. E Kyle continuava a cantar cada palavra. — They give you a white shirt with long sleeves, tied around your back, you're treated like thieves. Drug you up because they're lazy, it's too much work to help a crazy!

(Eles te dão uma camisa branca com mangas longas, enlaçadas nas suas costas, te tratam como ladrões. Te drogam porquê são preguiçosos. Dá muito trabalho ajudar um louco)

— Droga — Gregory coçou os olhos e sua paciência estava indo embora. Pouco a pouco, Kyle a arrancava da pessoa mais paciente que conhecera — Mas que porra, Kyle!

Ele estava pronto para entrar, nem que precisasse derrubar aquela porta, ou quebrar a tranca, ou... buscar uma chave reserva na recepção. Só então a ideia lhe ocorreu. Céus, isso poderia ter acabado há muito tempo se ele apenas tivesse pegado a maldita cópia da chave. Levantou-se imediatamente do chão sujo, limpando a traseira da calça antes de sair dali.

Novamente alguém apareceu no início do corredor. Dessa vez era alguém alto, de estrutura forte. Gregory estreitou bem os olhos para ter certeza do que via, e quando teve, perguntou-se porque diabos estava ali. Estava mais próximo agora, o suficiente para ver um sorriso insinuativo em seus lábios. Segurava uma suspeita sacola de papel em suas mãos.

— Que merda tá fazendo aqui, Christophe?

 Ele ergueu a sacola de papel, mostrando ser o motivo da sua visita inesperada.

— Entrega especial.

— Certo, me dê e caia fora daqui. — Fez sinal com a mão para que lhe entregasse. Chris recuou.

— Não, isso não é pra você. Hoje não.

— Eu entrego pra ele.

— A estrega é especial, e eu sou a parte especial. — Passou por Gregory ignorando aquele rosto confuso. E então ele riu, riu como se houvesse ouvido uma piada ruim. Christophe já estava parado em frente a porta do quarto quando ouviu aquela risada.

— O que vai fazer? Ele não vai abrir essa porta. — Disse, certo de suas palavras.

Christophe apenas arqueou as sobrancelhas. Deu quatro batidas ritmadas na porta, um tipo de código que só ele sabia. E a tranca girou. Christophe lançou lhe uma piscadela.

— É, ele me avisou sobre o novo guarda-costas na porta — Chris girou a maçaneta — Divirta-se. — E entrou, seguido do som da tranca girando de novo.

Gregory lançou um olhar incrédulo para a situação.

— Isso só pode ser brincadeira — disse a si mesmo — Achei que não estivesse com humor para ninguém além de si mesmo, Broflovski.

Gregory estava pronto para continuar pelo corredor para seguir até a recepção, quando Kyle o respondeu, surpreendentemente.

— Tenho tempo para qualquer um que não tente me controlar, que me deixe ser quem eu sou... — a voz soou como um sussurro. A música ainda tocava e Kyle falava diretamente na brecha da porta, de maneira íntima. 

Gregory ficou sem palavras nos primeiros segundos, pela única pessoa que poderia deixa-lo nesse estado. Estava paralisado naquela posição.

— Eu te disse: só quero ficar com você...

— Você está mentindo. — usou as palavras que estavam na ponta da língua — Sabe por que, Gregory? — voltou a sussurrar — Porque é exatamente o que você faz, você mente. 

Gregory separou os lábios mas nada saiu. Não havia nada para ser dito.

— I'm not crazy!

(Eu não sou louco)

Ele cantava.

— You're the one who’s crazy 

(Você é que está louco)

— You’re driving me crazy!

(Você está me deixando louco)

Algo mais quebrou do outro lado da porta, lançado contra a parede; não soava nada com vidro. Uma cadeira, talvez.

Pela milésima vez naquele dia, Gregory respirou fundo. Deu meia volta e seguiu pelo corredor. 

Doesn't matter I'll probably get hit by a car anyway

(Não importa, eu provavelmente vou ser atingido por um caro de qualquer jeito)

Não era apenas pelo álbum novo que não aconteceu ou pela turnê que ainda estavam em Londres. Estavam na “semana punk” de Londres. Milhões de jovens e adultos andando pela cidade de roupas surradas, com cabelos em penteados peculiares de cores tão extravagantes quanto suas roupas e piercings espalhados pelo rosto. O hotel em que estavam hospedados por exemplo, qualquer um poderia facilmente encontrar um grupo de pessoas com tais características sem fazer esforço algum; andando pelos corredores ou detidos neles, espalhados pelo saguão... Gregory encontrou muitos deles quando chegou lá. Conversavam em voz alta, tocando algum instrumento ou fumando maconha. Mas não teve nenhum interesse em fazer essa observação. 

— Com licença — Gregory parou em frente ao balcão, olhando com um falso nervosismo para o rapaz que antes lia uma revista. — Eu perdi minha chave. Posso ter uma reserva? Fiquei trancado para o lado de fora.

O rapaz o analisou rapidamente. 

— Tudo bem. — Disse — Qual seu nome?

— Gregory-

— Ah, claro, o rapaz da banda. Seu rosto me é familiar. — comentou e sorriu. Gregory o aguardou checar a lista de registros.

— Bem, aqui está você. — apontou — Mas ainda preciso da identificação. — Gregory pegou sua carteira que estava no bolso traseiro e retirou a identidade de dentro para entrega-lo. O rapaz fazia sons de afirmação enquanto lia o documento. O entregou de volta para Gregory.

— Aguarde só um momento, por favor. 

O louro assentiu e o rapaz se virou. Deu uma rápida e insignificante olhada em volta enquanto aguardava. Alguém tocou seu ombro enquanto distraído. 

— Olha só o que temos aqui. — Disse uma rouca, familiar e um tanto sexy voz. Gregory virou de supetão. 

— Marjorine — deu um meio sorriso para a mulher não tão alta como de costume a sua frente. 

Marjorine era uma mulher com não mais do que 1,64 de altura cuja seus sapatos altos disfarçavam. Tinha cabelos curtos loiros, lábios finos pintados de vermelhos, sombra rosa envolta dos olhos e bochechas naturalmente avermelhadas que fazia qualquer um crer que também era maquiagem. Fumava um cigarro.

— Senti sua falta — Disse ela, e Gregory sabia que era verdade. Era uma amiga antiga e muito querida.

— Também senti a sua. — Houve um abraço. 

O rapaz da recepção estava de volta com a chave de Gregory. — Aqui está — Entregou e olhou para Marjorine. Ela não gostava daquele olhar. — Ele está incomodando você, senhor? — Perguntou sem se importar com a presença de Marjorine, como se não estivesse ali. Marjorine levou seu olhar até o rapaz e piscou lentamente.

— Eu estou, Gregory? — Perguntou ao louro, embora olhasse fixamente para o rapaz, intimidando-o.

— Ela — Gregory começou, dando ênfase no pronome – nunca é um incomodo. – levou a costa da mão de Marjorine aos lábios — Obrigado pela chave.  

E se retiraram da recepção, caminhando pelo saguão em passos lentos. Após mais um trago, Marjorine dividiu seu cigarro com Gregory. 

— Então, o que faz aqui? — Gregory perguntou com interesse o suficiente. 

— É a semana punk, sabe? Trabalhando. — Encolheu os ombros, olhando para movimentação do lado de fora. A chuva ameaçando cair novamente — Imaginei que Kenny tivesse pedido pelos nossos serviços. 

— Kyle, aparentemente — disse, um tanto aflito. Marjorine o encarou. 

— Ele te trancou para fora de novo, não foi? — Usou um tom desconfiado, e Gregory não precisou responder. — Por isso a chave reserva. 

— Esqueci a minha no estúdio — Gregory soltou uma risada nasal, mas não aparentou ter graça.

— Aliás, diga para Christophe não demorar. Estamos cheios de entregas para hoje e não vou atrasar porque meu motorista tá trepando com seu Kyle. — Ela estava visivelmente agoniada. — Vou ter que arranjar um novo motorista logo de qualquer maneira. – Comentou, estressada sobre esse assunto em particular. Gregory não entendeu, mas estava com pressa. 

— Preciso ir, Marj. E não se preocupe, logo Chris aparece. Te vejo outro dia. 

— Tudo bem, querido. 

Gregory retornou para o décimo primeiro andar com sua cópia da chave. 

Foram quatro copos quebrados, uma garrafa de whisky ou duas (difícil saber quando não passam de milhões de fragmentos espalhados pelo carpete) um abajur, uma cadeira e um espelho. A impressão que Christophe teve ao entrar no quarto era de que um furacão havia passado ali, um furacão ruivo e furioso. Mas apenas ignorou aquilo e acompanhou o ruivo em um dos seus surtos. 

Quando a música acabou e Kyle pareceu acalmar os ânimos, Chris se aproximou dele para entregar a sacola de papel em suas mãos.  

— Aqui está, do seu exclusivo delivery boy. — Kyle olhou dentro da sacola para conferir se estava tudo lá. Ergueu o olhar para Chris e sorriu. 

— Você é o melhor — Ficou na ponta dos pés para beija-lo nos lábios.

— Eu sei — disse entre o beijo.

Kyle se afastou com o pacote até a mesinha que ficava de frente para a janela, cuja havia um belo vaso de flores decorativas em cima e meio copo de whisky derramado sobre ela. Despejou o conteúdo sobre a superfície de vidro. Estava tudo empacotado e lacrado por uma embalagem transparente de plástico, possibilitando a vista de cada uma das encomendas: ecstasy, cocaína, maconha, LSD e heroína. Era como ver uma versão distorcida do paraíso, como pessoas como Kyle e Christophe tinham seu paraíso particular.  

            A cocaína foi a primeira a ser removida da embalagem. Kyle se sentou em uma cadeira em frente a mesa e despejou o pó sobre a superfície lisa de vidro, separando as poucas gramas em quatro carreiras sem demora. Usou uma nota de cinquenta enrolada para fazer o resto do serviço.

— Eu achei que fosse receber um pouco mais de atenção. Já fazem mais de duas semanas, raposinha — Christophe resmungou, deitando-se na cama. Usou o apelido de propósito.

Kyle fungou — Meu Deus, quando foi que vocês ficaram tão carentes? — Inclinou a cabeça para trás, sentindo a droga descer pelo seu organismo. Usou o polegar para bloquear uma narina e inspirar com a outra, limpando abaixo do nariz.

— Quando você parou de dar atenção — Christophe justificou e Kyle deu um meio sorriso embriagado.

— É, acho que você tem razão — Kyle se virou para ele — Não te vejo há dias, você merece mais atenção. Desculpe, meu bem. — Não houve nada de sincero naquela frase, Christophe sentiu o deboche, mas não reclamou.

Kyle se ergueu, um pouco embriagado e caminhou até a cama, sentindo os músculos relaxarem, acabando a tensão sobre eles. Deus, como se sentia vivo. Ele precisava disso.

Christophe estava sentado agora, com as mãos apoiadas no colchão aguardando pelo ruivo que se aproximava cada vez mais. Kyle se sentou entre suas pernas de modo que ficasse frente a frente com Christophe, com aquele mesmo sorriso bebido. Levou ambas mãos frias ao seu rosto, os dedos magros e longos pressionando contra sua pele ainda que sutis, e o trouxe para mais perto de si. Sentiu a respiração quente de Christophe contra seu rosto, e tocou seus lábios secos nos dele sem hesitar. Bocas abertas e línguas deslizando uma na outra.

Ah, mas ele sentia-se maravilhoso. Como se em outro mundo, outra dimensão, longe de toda aquela merda que vinha rodeando a vida dele nos últimos anos. Tudo o que não passava de uma dor de cabeça desnecessária. Disso ele não precisava.

Eis o que ele precisava: esquecer-se do que o fez ligar para Christophe antes de jogar aquele abajur contra o espelho. Precisava respirar novamente, precisava se sentir bem, precisava se sentir no controle. Talvez isso fosse sobre sentir-se no controle da sua vida, ou era o Gregory dizia a ele, e então Kyle já não tinha mais certeza se essa era mais uma forma de Gregory diagnosticar seu comportamento. Isso o irritava.

Kyle também tinha necessidade de sentir ele mesmo. Agir como ele agia sem ter alguém beirando seus ouvidos sussurrando o que ele não precisava e não queria ouvir sobre si mesmo, seguido de aconselhamentos de como evitar ser ele mesmo. Mais uma vez, questão de controle.

Enquanto algumas gramas de cocaína entorpeciam seu corpo, ele queria deixar isso de lado.

As mãos pesadas de Christophe trilhavam um caminho debaixo da sua camisa verde, causando arrepios pelo seu corpo. Ele ainda o beijava nos lábios, agora com mais selvageria e precisão, mais necessidade. Ao afastar-se para um pouco de ar, os lábios de Christophe mudaram de caminho, agora espalhando pequenos beijos molhados pela clavícula, fazendo com que Kyle jogasse a cabeça para trás sem pensar. Um choque elétrico percorrendo sua espinha de cima a baixo.

— Você pensou sobre aquele assunto? — Perguntou com a voz baixa, bloqueada pelos beijos. Kyle se remexeu um pouco em seu lugar, não respondendo de imediato. Christophe se perguntou se ele teria o escutado, mas o ruivo respondeu:

— Pensei.

— E então? — Kyle afastou seu rosto de cima dele, fitou seus lábios.

— Eu ainda não decidi.

            Kyle retornou aos lábios, agora mordendo-os sem hesitar; o gosto metálico invadiu sua boca logo em seguida. As mãos do ruivo então deixaram a curva no pescoço do outro e derrapou em seus ombros, descendo um pouco mais, e parou ao chegar na borda da camisa de Christophe. Precisaram se afastar mais uma vez para removê-la. A peça foi lançada para o canto do quarto, e Kyle voltou aos lábios sem perder a vontade de beija-los.

O ruivo remexeu-se timidamente sobre quase ereção de Christophe. Sua mão descendo pelo torço sem cerimônia, chegando até o zíper da calça jeans do homem abaixo de si, desabotoando aqueles malditos botões com mais dificuldade do que gostaria. Ao abrir o zíper, sua mão estava livre para explorar o volume entre suas pernas, os dedos tateando seu pau devagar, que ao sentir o toque sutil, animou-se um pouco mais. Kyle sorriu entre os pequenos beijos.

— Deus, você é tão grosso. — Ouviu um gemido abafado escapar dos lábios do outro. A mão livre de Christophe pousou na curva do pescoço de Kyle e escorregou um pouco mais para cima, de modo que pudesse agarrar alguns dos seus cachos. Afastou o rosto de Kyle para que pudesse admira-lo. Ele arfava como se tivesse corrido uma maratona. Seu rosto estava quase tão vermelho quanto seu cabelo, e nos lábios crescia um sorriso malandro, provocante, que Christophe acreditava que só Kyle poderia fazer.

Christophe voltou a beijar sua clavícula sem qualquer intenção de ser gentil. A mão de Kyle que estava entre as calças de Christophe movimentava-se lentamente, masturbando apenas para estimular, brincando. Mal esperava para senti-lo em sua boca.

— Você é delicioso — Devolveu o comentário entre suspiros.

— É mesmo? — Kyle sussurrou a pergunta. Tirou a mão do pau de Christophe e a levou a boca, lambendo o pré-gozo espalhado em sua palma, olhando para o parceiro nos olhos. — Espera.  

Levantou-se do colo de Christophe e ajoelhou-se diante dele, agarrando seu pau mais uma vez, olhou para cima para pegar as expressões de Christophe. Encostou a língua quente na glande e Christophe sentiu aquela descarga elétrica atingi-lo com força. Uma, duas ou três lambidas, Chris estava entorpecido demais para contar, mas não levou até sentir a boca quente e molhada de Kyle suga-lo lascivamente. Movimentos ritmados que arrancavam suspiros violentos do outro, o pau deslizando entre seus lábios com uma facilidade divina. Kyle mal fazia pausas para respirar, e não se importava muito a essa altura.

Continuava a deslizar para dentro, e voltava, deslizava um pouco mais fundo do que anteriormente e voltava. Cada vez mais fundo. Foi então que o corpo de Kyle gritou e ele o tirou da sua boca para respirar melhor, deixando um rastro de saliva e o líquido pré-ejaculatório entre seus lábios e o pau de Christophe. Ao recuperar o folego, voltou a chupa-lo.

Christophe sentia que estava chegando próximo ao ápice, a descarga elétrica agora percorria com mais força pelo seu corpo e logo ejacularia. Ele fechou os olhos. E então, Kyle o soltou. Esperou que Kyle retornasse mas isso não aconteceu. Franzindo o cenho, confuso, ele abriu os olhos. De repente, Kyle entrava no pequeno banheiro a poucos passos de distância da cama.

— Que porra é essa, Kyle? — Resmungou, indignado, quase puto.

Pouco menos de um minuto depois, Kyle reapareceu na porta do banheiro e encostou-se no batente, enrolando a um roupão de banho (cortesia do hotel), mãos limpas e um cigarro entre os lábios, qual pretendia acender com isqueiro que segurava. Deu um sorriso de canto ao ver Christophe frustrado.

— Isso é sério? — Voltou a reclamar, agora fechando o zíper da calça e fechando os botões.

— Obrigado pela entrega, Christophe. — A fumaça expelia-se juntamente as palavras. Christophe se levantou da cama, pegando sua camisa do chão e vestindo-a. — E quando quiser atenção pra uma foda, contrata uma das suas prostitutas.

A porta foi destrancada e Gregory apareceu, usando sua chave reserva. Kyle direcionou o olhar para ele, menos surpreso do que imaginou que estaria. Parou ao lado do batente e deixou a porta aberta para o homem que terminava de se vestir.

— É, Chris, você pode ir agora. — Aguardou o outro deixar o quarto. Christophe lançou uma última olhada para Kyle, dizendo:

— Se mudar de ideia, me liga. — Kyle o acompanhou com o olhar. Ele passou por Gregory e saiu para o corredor. Gregory fechou a porta atrás de si.

God Save The Queen ecoava pelo quarto de hotel agora, tão baixinho, quase como um desrespeito a ferocidade da voz de Sid, mas adaptava ao ambiente.

— O quer aqui, Gregory? — Kyle disse de repente, olhando-o de soslaio da porta do banheiro. Desinteressado em um futuro dialogo.

O louro penteou os fios que atrapalhavam sua visão para trás, caminhando até a mesinha próxima a janela. A garrafa de whisky recém aberta estava lá, com um copo redondo e baixo ao lado. Ele massageou as têmporas com uma mão enquanto se servia uma dose com a outra. Kyle observava a cena com atenção, cautela.

Gregory e o álcool eram grandes amigos há quase ou pouco mais de dois anos. Sempre foram companheiros pelo o que Kyle se lembra. As tardes na beira do rio dividindo algumas latas de cerveja, vinho ou uma garrafas de Jack eram ainda vívidas nas memorias do ruivo, sempre de maneira descontraída, como dois adolescentes quaisquer em meados dos anos 1960. Não era nada demais. Não até se tornar um habito ruim; um vício. Kyle não gostava desse vício, mas tinha os seus e era perfeitamente consciente disso, não seria hipócrita o suficiente para discutir sobre isso com Gregory.

Mas era hipócrita o suficiente para sugerir algumas vezes que pegasse leve, porque mesmo que não quisesse, Kyle se importava. E se importava muito menos de matar a si mesmo, do que assistir seu amante, melhor amigo de quase uma vida toda, destruir a ele mesmo. Em certo momento, admitiu a si mesmo que essa era verdade.

Gregory não bebia há seis meses.

Kyle mordeu o lábio inferior.

— Achei que tivesse dado um tempo na bebida.    

— Eu também — Respondeu com indiferença ao terminar de virar o copo. A sensação de algo lhe queimando a garganta era reconfortante a esse ponto. — Primeiro: para a sua infelicidade, o quarto também é meu — Começou, com sua voz sem emoção — Segundo: — virou-se para o outro, regularizando sua respiração — Essa foi uma decisão do grupo.

— Ah, é? — Kyle perguntou de maneira debochada — E de que lado você ficou?

Gregory pôs o copo na mesa, um pouco mais agressivo do que pretendia.

— É sério?

 Kyle encolheu os ombros, piscando lentamente com uma certa tranquilidade em seu rosto, como se dissesse “Estou errado em perguntar?”. A resposta seria definitivamente sim, Gregory acreditava.

— Porra, Kyle — O louro o encarou fixamente por longos segundos, quase minutos, olhando diretamente em suas pupilas. O ruivo balançava o corpo com leveza, como folhas à brisa quente de verão, dançante. — Esse cara vai te matar. O aviso veio do nada, de um pensamento que ocorreu em alguns segundos na cabeça de Gregory, e as palavras saíram por necessidade de escaparem.

Kyle balançou a cabeça, renegando aquela frase, fechando os olhos rapidamente.

— Ele não faz nada que eu não peça. Não traz nada que eu não peça. — seu rosto foi dominado por uma falta de emoção, olhos opacos — Ele não é problema. — Fez um breve pausa para mudar de posição, rolando seu corpo encostado na parede para ficar de lado — Não diga isso como se fossemos mais... — saudáveis? Kyle pensou por alguns instantes — Não somos tão diferentes.

— A única diferença é que eu não faço entrega especial de drogas na sua porta sempre que você tá tendo um dia ruim, um momento ruim.

— Ele me deixa viver como eu quero.

— Claro, você tá pagando por isso.

Por um momento, Gregory acreditou que Kyle ficaria puto, e eles voltariam para estaca zero mais uma vez. Kyle abusando do sarcasmo, e então gritando. Mas não. Ele apenas... respirou, relaxando os músculos dos ombros, balançando a cabeça para um lado, e para o outro.

— Isso não é deprimente? — Devolveu o cigarro aos seus lábios — Precisar do meu traficante particular pra me fazer acreditar que eu tenho alguém está apenas me deixando ser seja lá quem eu sou — Não entendeu bem o proposito daquele comentário, e Gregory bufou, agarrando o pescoço da garrafa de whisky e tomando-a para si.

— Um maldito drogado.

Kyle sabia tanto Gregory que aquelas palavras não deveriam ter saído, ele não quis dizê-las, embora o álcool que começara a influenciar os pensamentos de Gregory acreditasse que sim. Ele não tinha certeza do que dizer depois disso. Pensou em se desculpar, mas por que se desculpar se ele não disse nada de errado? É, o maldito álcool de novo.

Kyle odiava aquela versão de Gregory, odiava quando ele andava por aí com um copo quase vazio ou uma garrafa nas mãos agindo em uma personalidade completamente diferente da sua real. Completamente oposta a pessoa que ele conheceu quando eram crianças. Ele odiava seu vício, porque o fazia alguém que Kyle não reconhecia, alguém que Kyle odiava, que dizia coisas que não deveriam ser ditas.   

Kyle reconhecia sua parcela de culpa nessa situação. Ele foi o primeiro a criar hábitos ruins.

— Um maldito drogado... — Repetiu a si mesmo. Os orbes verdes encaravam o piso, distantes — Um irresponsável, não pode dar conta de si mesmo. Ele perdeu a cabeça enquanto tentava sobreviver, com lembranças daqueles dias na beira do rio. — Gradualmente, as palavras foram ganhando ritmo, soando como uma música familiar para os ouvidos de Gregory. É, ele conhecia essa, tocaram ela em dois dos seus últimos shows.

Gregory pensou sobre isso há um tempo atrás, observando Kyle nos últimos meses, quem ele tem sido. Era como em uma de suas músicas, aquelas em que contavam histórias de pessoas miseráveis lidando com fases e cenários miseráveis, fodidos, ou simplesmente a vida que receberam. Um homem, um total desconhecido e ficcional, mas não era diferente de muitos, e ainda assim, diferente do Kyle que conheceu. Anos atrás, comparar Kyle ao homem de suas músicas sobre vidas miseráveis soaria como um absurdo aleatório, pois não faria sentido antes de tudo. E aí estava a grande ironia: Kyle e o homem estranho e miserável, agora já não eram tão diferentes. Ele se tornou o que escrevia em algum momento.

— Acho que eu não tenho sido muito mais do que isso ultimamente, não é? — A pergunta foi retórica, mas Gregory quis responder — Miserável, miserável e fodido. — De repente, ele riu, alto e amargo para quem o escutasse, uma risada exagerada e espontânea. O louro o observava com atenção, capturando cada emoção, cada movimento incomum. Ele estava surtando, pensou. Não como daquelas vezes em que destruía um quarto de hotel ou mandava Gregory à merda, era algo pessoal, pois havia um peso em seu rosto.

— E no fim das contas, eu me tornei exatamente o que eu tentei provar durante toda a porra da minha vida o que eu não era: — Sua risada diminuiu, até ficar bem pequenininha, como um sorriso melancólico — Fraco.

— Kyle...

— Que se foda, eu preciso de banho. — amassou o que restara do cigarro no cinzeiro e voltou para o pequeno banheiro. Gregory ouviu o som da água encher a banheira, e nada além disso. Permaneceu assim por um tempo. O líquido na garrafa em suas mãos estava chegando ao fim, e ele deu uma última virada para acabar com aquilo de uma vez.

Com passos lentos e embriagados, ele retirou os sapatos que matavam seus pés, mesmo que não sentisse com tanta força a gora, deixando ambos sapatos na trilha que fazia enquanto se direcionava ao banheiro.

Kyle estava sentado dentro da banheira, abraçado às duas pernas enquanto ela ainda se enchia de água. A água não passava do seu tornozelo, mas subia em um ritmo acelerado, a torneira jorrava água de maneira violenta dentro daquele limitado espaço de mármore. O ruivo tinha a cabeça deitada sobre os joelhos, inclinada para o lado de modo que pudesse ter uma clara visão da porta do banheiro. O rosto em branco, o nada em seus olhos, a distância e a opacidade. O som da chuva forte do lado de fora mesclando-se ao da água morna da torneira.

Gregory o observou da porta ao encostar-se no batente. Não ficou muito tempo ali, apenas largou sua garrada vazia ao lado da porta e juntou-se a Kyle naquela banheira que tinha espaço o suficiente para os dois. Não tirou qualquer peça de roupa, apenas entrou, sentando-se na outra ponta em um processo lento. Ao sentir metade do seu corpo para dentro da água, deslizou por completo para debaixo da água, mas não levou muito, e então submergiu, retirando o excesso de água do rosto e, enfim, mirando os olhos que oscilavam entre um azul marinho e o escuro, em Kyle. Kyle o olhava de volta.

E aqui estavam mais um vez, pacificamente, cansados demais para encontrar algum motivo para brigarem ou reclamar sobre. Cansados demais de desgastarem um ao outro, cansados demais para dizerem algo. Mas Gregory fez uma observação, aquela que sempre fazia a si mesmo depois de muito olhar para o ruivo com atenção, em seus momentos de tréguas.

Kyle era a pessoa mais bonita que já conhecera.

Não simplesmente bonito como um modelo de revista. Era como se ele houvesse sido esculpido, perfeitamente moldado em nome da beleza, e Gregory sabia o quão brega isso poderia soar, mas ele não encontrou palavras mais exatas em sua mente. Até seus pequenos defeitos (que Gregory jamais reconheceria como defeitos), eram pequenos charmes a mais. Nunca vira orbes tão grandes e chamativas antes, nada como os de Kyle. Agora deixavam o óbvio cansaço de alguém que vivia no limite, e que estava pagando o preço por isso.

Se lembrava tão bem de como aqueles olhos eram vivos, duas pequenas orbes que pareciam vidro, jamais tocados, reluzindo a qualquer feixe sutil de luz que passasse por eles. No lago. No final da tarde, quando nada nem ninguém poderia atingi-los, longe de tudo e todos. Quando só tinham um ao outro.

— Eu realmente tento te controlar? — A voz surgiu, fraca e pequena, perdendo força no final das palavras. Depois de alguns fragmentos de lembranças. Kyle sentiu a embriaguez no seu tom. Pensou honestamente consigo sobre o assunto.

Esse era uma outra versão de Gregory que Kyle não via desde a adolescência; um adolescente bêbado e deprimido sobre o rumo da sua própria vida. Era a versão com quem gostava de conversar sobre coisas mais profundas do que o normal, porque ela estava constantemente tentando compreender o que acontecia a sua volta. E Kyle estava surpresa em vê-la mais uma vez, depois de todo esse tempo.

Kyle entendia como a mente de Gregory funcionava. Não era complicado, talvez um pouco confuso para ele mesmo. Uma das primeiras coisas que aprendeu sobre Gregory, era como ele agia e reagia a situações que estava fora do seu controle, de como forçava sobre a natureza de algo ou alguém sem estar ciente disso, porque ele realmente acreditava que estava fazendo a coisa certa.

Mas não estava.

Estava machucando Kyle na maior parte das vezes, machucando seu orgulho e quem ele era. Deixando-o puto quando estava decepcionado, levando-o a agir cada vez mais imprudente a ele, só para provar que ninguém passaria por cima dele.

Quando Kyle agia do seu jeito, como uma maluco aos olhos alheios e um problemático que precisava de ajuda para Gregory, o homem louro chegava com seus conselhos e sermões em um tom tão macio e cauteloso como quando se diz a uma criança o que é certo e o que é errado. Kyle não tinha palavras para descrever a raiva que o dominava quando ele usava aquele tom. E tudo se repetia como em um filme antigo que passava pela milésima vez na sessão das 22:00; as manipulações de Gregory, Kyle reagindo a elas como um maldito cuzão por não suportar a ideia de alguém tentar monopoliza-lo.

— Levou alguns anos, mas a pergunta finalmente apareceu. — Kyle disse, inclinando a cabeça — É, você faz. O tempo todo, e às vezes eu preciso me esforçar muito mais do que eu gostaria pra não te matar. — Abraçou as pernas com mais força — Fica cada vez mais difícil, Greg.

Gregory analisou as palavras em silêncio, engolindo com dificuldade.

— Eu não sei, é como se... — moveu-se na banheira, deitando com a nuca apoiada na borda da banheira. — Kyle, eu só quero te ajudar. O que eu faço se tenho medo de te perder, porra? Age como se fosse indestrutível por trás de toda essa... — Não verbalizou, mas Kyle entendeu de alguma forma — Você diz que não precisa disso, não precisa que esteja aqui tentando fazer alguma coisa por você, e eu sempre acreditei que fosse seu orgulho.

— Talvez seja... — concordou — talvez meu orgulho faça parte disso, mas isso não é sobre o meu orgulho. — Faziam uma direta troca de olhares. A água já não estava mais tão morna, a torneira não jorrava mais e a chuva cessava do outro lado, transmitindo apenas um som sutil e relaxante. — É sobre você estar o tempo todo tentando me dizer o que eu devo fazer e como devo agir. Sempre me limitando, me censurando, e, claro: — aumentou um pouco seu tom de voz para uma conversa antes quase sussurrada — agindo pelas minhas costas.

— Não foi minha-

— Não foi sua decisão. — Interrompeu — É, eu já ouvi isso antes. Mas não é só sobre a banda Gregory, não desse vez. É sobre eu e você. É sobre você estar sempre sussurrando pra cada pessoa que me cerca pra ver se consegue chegar até mim, pra ver se consegue me dominar. — O nervosismo em sua voz foi aparecendo gradualmente, mas quando acabou, sua expressão aliviou novamente.  

— Eu sinto que se eu não te protejo, você desaba. Como um prédio em chamas — Gesticulou com ambas mãos, juntando-as para encher de água, e depois, separando um da outra para que a água retornasse a banheira. O adolescente perdido ainda estava ali, cada vez mais fundo em buraco que cavou sem querer.  

Kyle soltou-se de suas pernas, arrastando-se para mais perto de Gregory, e este o acompanhou com os olhos, esperando pelo o que viria. Seu rosto dizia tão pouco. Seus corpos se aproximaram e ambos sentiram o calor, o aquecimento que não vinha mais da água, mas dos seus corpos se atraindo um para o outro como ímãs, como se pertencessem um ao outro. Era o efeito imediato entre eles, algo que sempre esteve lá desde a juventude, quando eles decidiram juntos se entregarem a essa atração.

Esse foi o erro, o maior de todo eles; dar uma chance ao que sentiam porque eram apenas curiosos, e inocentes. Como poderiam saber?

Mas naquele momento, ali naquela banheira, era diferente. Diferente por ser tarde demais. Agora já não importava mais.

Kyle tocou a bochecha de Gregory com leveza, prendendo sua mão a ela, e repetiu o ato com a outra mão, fazendo-o encara-lo diretamente, mas o outro homem fechou os olhos, algo próximo a dor estampado em seu rosto.

— Gregory — Kyle o chamou, baixo. O polegar massageando a maçã do seu rosto com gentileza. O ruivo lhe beijou no nariz e em seguida, nos lábios. O beijo não passou de um toque rápido em seus lábios, apenas correspondidos quando este estava para acabar. Gregory ainda mantinha os olhos fechados.

— Greg. — Insistiu, usando o apelido que não usava há meses.

— Sim?

— Eu te amo.

A dor se transformou em tristeza, a simples tristeza. As palavras de uma trapaça; um golpe sujo, um jogo baixo. Kyle nunca dizia aquelas palavras para conseguir algo em troca, nunca da boca pra fora ou para amolecer o coração de um homem bêbado que se esqueceu de quem ele é. Nunca por nada.

Três palavras ditas apenas quando sentidas. Quando olhava para o outro e seu peito palpitava, e ele sentia o que amor realmente era, quando mal podia respirar pois era um sentimento tão devastador para ele que parecia sufoca-lo. Gregory era a sua personificação desse sentimento intenso.

— Eu te amo.

Kyle disse mais vez, porque seu peito palpitava. Gregory não ousou abrir os olhos ainda.

— Eu te amo tanto.

Um beijo leve, duradouro e carregado desse sentimento foi depositado na testa do outro, com todo o seu coração naquele gesto tão simples e comum entre eles. Gregory sussurrou: eu também te amo, com algumas palavras falhando em sua garganta. Eu sei que sim, Kyle disse de volta no mesmo tom, a voz abafada contra o rosto do outro. Eu sei que sim.

— Porque foi a única coisa que nos manteve firmes até aqui. — Afastou-se mais do seu rosto para observa-lo com atenção, seus olhos azuis marejados abertos agora, apenas para vê-lo. — Mas, Gregory, meu amor... — Uma mão desceu para a curva do seu pescoço — Você precisa parar de tentar me proteger de mim mesmo. — Ele pausou, capturando cada traço do rosto alheio — E você vai parar porque, Gregory, eu não sei... não sei se posso continuar fazendo isso. — Sua voz falhou miseravelmente caindo em algo choroso, e tentou controla-la para que não passasse disso. Gregory ergueu o olhar para ele, como uma criança confusa.

— Do que está falando?

Kyle piscou algumas vezes, repensando suas palavras, separando os lábios para dizer algo e depois juntando-os novamente. Então os separou mais um vez, confiante desta.

— Eu estou dizendo que... — As palavras ficaram presas em sua garganta, difíceis de sair. Ele deu um longo suspiro — Eu tô cansado, Gregory. Esgotado. E você também está.

Gregory desviou o olhar para água, assentindo de maneira incerta. As palavras simultaneamente processando em sua mente.

— E não é algo de hoje. Nem de ontem, ou do mês passado. Anos, Gregory.

Seu rosto estava em branco, bloqueando aquela transparência de emoções que estava lá até pouco tempo atrás.

— Então, você vai me deixar? — sua voz se partiu, fraca.

Kyle quis chorar pela primeira vez em muito tempo.

Balançou a cabeça negativamente por não saber como responder aquela pergunta, embora tivesse a resposta.

— Eu sabia que o lance da banda aconteceria uma hora ou outra. Pra ser honesto, não fiquei surpreso — Afastou-se um pouco mais, sentando-se com o braço apoiado na borda da banheira. — Quer dizer, eu sei que não facilitei nada pra vocês mas boa sorte encontrando um guitarrista e vocalista que der conta disso tanto quanto eu.

— Kyle...

— Escuta — Interrompeu Gregory que provavelmente faria a observação sobre Kyle ter mudado de assunto — E com tudo isso acontecendo, eu vou ter ir de qualquer jeito, estou errado?

Gregory negou, não a pergunta necessariamente.

— Você só vai... vai desistir da sua própria banda? Achei que ia lutar pra ficar. Você disse que iria. — Gregory estava realmente confuso e insatisfeito com a decisão do melhor amigo, como se visse algo terrivelmente de errado no que dizia.

— É, eu fiquei puto. Se fosse pra sair da banda que não fosse sendo expulsa dela, principalmente sendo avisado sobre isso como não fosse nada demais. — Passou os dedos entre os fios ruivos e úmidos — A gente trabalhou pra caralho por essa banda, Gregory, tantos anos...

— Por isso você precisa-

— Mas — O interrompeu mais uma vez — eu pensei sobre isso, por dias. Quando eu percebi que vocês estavam prestes a me chutar pra fora, eu considerei a possibilidade e o que eu deveria fazer sobre isso. — Jogou a cabeça para o lado, como se ela pesasse, e a deitou sobre um braço — Processar vocês? Eu não sei. Pegar o nome da minha banda e os direitos autorais sobre ela? Não sei. Queimar aquela porra de estúdio com todos vocês bastardos dentro? Talvez. Eram muitas opções. — Abriu um sorriso torto, apenas para ele mesmo — E algo me ocorreu. Algo óbvio mas que eu não tinha percebido até então...

Gregory franziu o cenho, ouvindo com atenção

— Eu preciso de um tempo.

— Um tempo?

— É, um tempo.

— Quanto tempo?

Kyle esfregou ambas mãos em seu rosto, agitado.

— Eu não sei, Gregory. Uns cinco anos? O maldito resto da minha vida? — Respondeu com irritação. — Eu não posso mais viver nessa corda bamba.

— Então você vai fugir? Assim? — Ele virou o rosto. A água estava tomando a temperatura ambiente para si, Gregory sentiu seu corpo se arrepiar.

— Eu não estou preso para estar fugindo, não. Eu não fujo, eu só preciso de um caminho diferente.

— Então vai me deixar? — Perguntou mais uma vez, dessa vez mais ansioso, nervoso, como em meados de 60.

Kyle passou a língua pelos dentes, pensativo, não querendo verbalizar aquelas palavras. Olhou para diversos ângulos enquanto afogava alguma coisa em si, tentando manter suas emoções no lugar em que deveriam. Ele pensou diversas vezes sobre esse diálogo, sobre como ele aconteceria e como acabaria. Mas em nenhum momento soube se chegaria a isso.

— Eu vou pra cama. Preciso deitar. — Kyle desviou o assunto, algo que fazia quando não queria responder a uma pergunta. Mas de fato, ele só queria sair dali. Foi a resposta mais sincera que poderia dar naquele momento.

Levantou-se, pegou seu roupão de banho do chão e saiu do banheiro, sem olhar para Gregory. O louro o assistira em cada passo, até que travessasse o batente.

 Quando viu-se sozinho naquele banheiro frio e vazio, voltou sua atenção para o teto, e depois além do que estava a sua frente. Assombrado por seus fantasmas, por memorias e sentimentos de um tempo que já ficou para trás. Sensações e cheiros, tudo arquivado em algum lugar obscuro da sua mente, um lugar que ele gostava passear quando se sentia vazio e infeliz, quando tudo o que restara era o que estava lá. Fragmentos.

Kyle dizia que ele era uma pessoa presa ao passado, porque ele sempre o mencionava; em meio ao silêncio, costumava rompe-lo para perguntar: Você se lembra, Kyle, de quando erámos crianças? E logo em seguida, vinha uma história distante de lembranças confusas pois parte delas ficaram no caminho, no passado. Um costume novo que aderiu em algum momento nos últimos três anos, assim como muitos outros costumes novos que ambos aderiram.

Ele não se importava em estar preso ao passado se lhe fazia tão bem, mesmo que doesse tanto. Era seu espaço seguro, onde ninguém poderia machuca-lo. Queria poder reviver tudo de novo, e em certo ponto, fazer algumas coisas diferentes.

Gregory escorregou para dentro debaixo da água, submergindo por completo.

Olhos e abertos e... Ah, as memorias, imagens se formando entre as pequenas ondas de água, fechando lentamente os olhos, ele poderia ver tudo de novo, como um mero expectador que não pode ser visto ou tocar do que estar a sua frente, apenas observar, apreciar mais uma vez algo a qual já pertenceu.

            Havia esse rio, depois da floresta e não tão distante da escola em que frequentavam o ensino fundamental em South Park. Em algumas das tardes em que matavam aula se dirigiam até a beira daquele rio. Kyle sempre fora um amante de uma bela paisagem (embora dificilmente admitisse isso naquela época), e a visão que aquele espaço na natureza proporcionava era simplesmente majestoso, levando Gregory a entender sua paixão pela natureza.

O limpo e bem conservado rio seguia seu fluxo natural, enquanto refletia um brilho à luz do sol de maneira que cegava, mas que de alguma maneira, apenas o deixava mais bonito. Formava pequeno feixes de luz sobre a água. As árvores grandes e floridas balançavam ao dançarem com o vento em um ritmo lento e suave. Com a brisa natural atingindo seus rostos, Gregory apenas dispensava a grandeza daquela beleza por uma outra: pela a de Kyle Broflovski. Poderia passar dias observando e analisando o sorriso não intencional em seu rosto, a pacificidade em seus olhos, como se tivesse encontrado seu paraíso. Um paraíso que um dia se perdeu.

Uma das suas coisas favoritas enquanto na beira daquele rio, era o efeito que ele causava em Kyle. A paz. No entanto, houve um dia em que essa paz não existia em sua feição, que não condizia com quem Kyle era quando estava em seu pequeno paraíso; em vez de um sorriso não intencional, haviam lágrimas em suas bochechas, sofrimento e dor em sua linguagem corporal.

Seu rosto sangrava em diversos pontos, com marcas vermelhas que também variavam de lugar. O nariz sangrava sem parar e o lábio inferior estava estourado; uma visão não muito incomum quando se é perseguido constantemente, mas isso era o de menos. Dessa vez não foram valentões do nono ano, Kyle preferiria que fosse se tivesse que escolher. Kyle tinha um namorado na época, alguém com quem não estava há muito tempo, e esse alguém tinha um irmão muito forte por sinal, pois quebrou o nariz de Kyle.

Após encontra-los no porão, fazendo coisas que viadinhos como eles faziam, ele lhes deu duas opções: um termino ou a morte. É claro, ambos fizeram a escolha mais sensata diante daquele situação, mas não saíram impunes, e bastava você olhar para o rosto de Kyle para saber disso. Só não apanhou mais do que o pobre irmão do babaca de merda. E Kyle assistiu horrorizado, quase certo de que viria o rapaz morrer, mas então ele parou, apontou para Kyle e disse: “Nunca mais chegue perto dele. Se eu souber que vocês dois trocaram um única palavra, eu mato os dois viados de merda, você entendeu?” Kyle assentiu, com uma mistura de medo e ódio em seu rosto, “ótimo, agora sai da porra da minha casa”.  

Naquela tarde, na beira daquele rio, Gregory o viu chorar como nunca o vira antes, como Kyle Broflovski nunca choraria, como um real ser humano. E assim, de repente, esqueceu-se de dizer que o amava. É, ele tinha isso planejado há uma semana, e esteve nervoso. Mas naquela tarde tudo o que quis fazer foi permitir Kyle em seus braços e abraça-lo com toda força e compaixão que tinha, dizendo que tudo ficaria bem mesmo que nem ele estivesse certo disso.

Em nenhum momento desde que chegaram em Londres Kyle pensou em desfazer as malas. Não era relevante e só traria mais trabalho mais tarde, felizmente não teria esse trabalho em algumas horas. Ainda com os cabelos molhados e enrolado em um roupão, deitou-se em um lado da cama. Não conseguiria dormir ainda, então apenas fechou os olhos, e pensou. Pensou sobre coisas que não pensava há anos, e sobre esses anos. Como Gregory geralmente fazia.  E quando menos esperou, seus olhos começaram a queimar, lágrimas rolando pela sua bochecha. Fez o que sempre fazia, limpou essas lágrimas e tentou fingir para si mesmo que nunca estiveram ali.

 Porém, dessa vez não fez diferença; Kyle desabou, entregou-se ao que não poderia lutar contra. Então ele apenas chorou, chorou como uma criança perdida da própria mãe em meio a multidão. Agarrou-se ao travesseiro onde afogou o rosto, permitindo-se soluçar.

Gregory apareceu caminhando até ele sem suas roupas encharcados, com os cabelos úmidos e um roupão semelhante ao de Kyle. Deitou-se ao lado do melhor amigo e o abraçou firme, o acolhendo no calor do seu corpo mais uma vez, como daquela, há muitas anos atrás. Só que desta vez, não poderia dizer que ficaria tudo bem para reconforta-lo, porque ele sabia que não ficaria, assim como Kyle, que não precisava de mais das suas mentiras, não mais. E Gregory finalmente dera o que ele precisava; o que os dois precisavam: um momento de paz. Manteve suas lágrimas para si por pouco tempo, e Kyle não as viu rolar com o seu rosto enfiado no peito de Gregory.

Gradualmente o choro foi desaparecendo, indo para longe e esvaindo-se do seu corpo como uma purificação, afinal era o que Gregory acreditava que as lágrimas eram; algo do qual você deveria se livrar, deixar para trás para poder seguir em frente, tirando esse peso de dentro de si. E ele estava errado?

Agora o ruivo apenas fungava baixinho, respirando normalmente e deixando que a calmaria fizesse parte do seu corpo. E nos braços de Gregory, isso era bem mais fácil.

Kyle dormiu abraçado a ele e um tempo depois, Gregory fez o mesmo.

Kyle acordou às 05:47 da manhã seguinte, ainda agarrado ao louro. O cheiro de Gregory impregnado em suas narinas o perturbou imediatamente da mesma forma que o tranquilizava ao mesmo tempo. Passou os dois minutos seguintes retirando-se dos seus braços de maneira que não o acordasse. Quando bebia, dormia feito uma pedra, lembrou-se disso quando rolou para fora da cama quase que bruscamente, e Gregory não moveu um único musculo.

            A primeira coisa que Kyle fez foi aceder um cigarro. Precisaria de vários pelos próximos dias. Pegou todas as peças de roupas suas espalhadas pelo quarto de hotel e jogou de volta para uma das três malas que tinha, assim como alguns objetos, drogas, documentos e sapatos. Quando viu que estava tudo ali, fez um telefonema.

O telefone de cor verde pastel ficava em cima da mesinha próxima a janela, pela qual Kyle observou o clima nublado e monótono de Londres enquanto a chamada ocorria.

— Acho que acordei um pouco mais cedo do que gostaria — brincou, mesmo sem humor para isso. Sua cabeça doía e pedia desesperadamente por mais algumas horas de sono. Christophe respondeu algo do outro lado da linha — É, mais ou menos. Eu só preciso vestir alguma coisa. Te vejo no aeroporto em vinte minutos. — expeliu a fumaça dos pulmões — Certo, até.

Vestiu as peças que havia separado da mala: uma camisa de mangas compridas, um casaco xadrez em preto e branco, calças quentes e confortáveis o suficiente. Também um cachecol que um dia pertenceu a Gregory.

Com as malas prontas, a cabeça feita e os pés no chão, Kyle deu mais uma olhada envolta pelo o quarto, os olhos vagando por toda a bagunça que fizera, a sujeira, e então, Gregory. Ainda dormia na mesma posição, indicando um sono profundo. Sua visão pairou sobre ele e se recusou a sair por sólidos trinta segundos. Tanta coisa se passando pela sua cabeça naqueles segundos, tantas memórias, sentimentos, desejos ou alternativas para a sua partida.

Como pôde amar alguém tão perdidamente a ponto de suportar o inferno por tantos anos? Esse era o lado do amor que conheceu da maneira mais cruel que poderia, no qual se manteve preso durante grande parte da sua vida, pois acreditava ser dependente demais de Gregory para continuar sem ele, como se fosse parte dele. E não estava errado sobre isso; Gregory era parte dele, parte da sua história e todo o trajeto de vida. Os altos, os baixos, as mudanças, os bons dias e os maus. Em cada pequeno momento, ele estava.

E agora era hora de tirar um tempo para si, pois sabia que não conseguiria recomeçar assim tão fácil. Em quatro ou sete anos, talvez. Para o melhor ou para o pior.

Sua partida não era sobre uma banda da qual foi expulso dela após ter agido como um maldito drogado durante uma turnê inteira a ponto de esquecer as letras que ele mesmo escrevera ou errar acordes de guitarra, ou sobre a relação casual e incerta que tinha com Christophe, com quem viajaria para Paris em vinte minutos. Mas sobre amar demais Gregory a ponto de não querer mais ama-lo, para não machuca-lo mais.

O hotel oferecia pequenos bloquinhos de papel deixando-os sobre superfícies como mesas e/ou estantes, sempre ao lado de uma caneta. Kyle usou o bloquinho da mesa em frente a janela, — que estava ao lado de um papel com alguns versos escritos e outros riscados, uma tentativa de Kyle de escrever algo meses atrás. Gregory comentou que deveria continuar pois estava bom. Usou um papel do bloquinho para fazer uma breve e sincera anotação, a caneta deslizava entre os dedos enluvados com couro. Deixou sua despedida sobre a mesa, pegou suas três malas (uma mochila nos ombros e as outras duas em cada mão), e saiu silenciosamente pela porta.

            O vento soprou para dentro do quarto, arrastando alguns pingos de chuva para dentro e fazendo-os cair em cima da mesinha, na borda do pequeno bilhete que dizia:

“Você lembra, Gregory, quando erámos crianças e você prometeu me amar pelo resto da vida?  E eu te fiz essa promessa, também. Eu sei que você irá cumprir porque essa sempre foi a sua melhor qualidade entre tantas. Obrigado por todas as boas memórias, as que eu escolhi ficar, e o resto não importa mais.

Vou cumprir minha parte assim como você, mesmo não estando mais ao seu lado.

— Ky.”


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