Coletânea Lesbohistórica escrita por GabanaF


Capítulo 5
I hear you calling me (though years have stretched) - Fernanda Redfield




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Sobre a autora

Fernanda Redfield esconde um nome, mas não uma paixão. Formada em Odontologia, encontra amor no meio das letras. Escritora desde os 13 anos, divide-se entre fanfics e histórias originais buscando sempre a representatividade em meio a um mundo excludente. Aos 25 anos, prestes a fazer 26, resolveu participar da coletânea para expandir a sua escrita e o seu amor.

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PARTE I: 1920

O lustre refletia a eletricidade na sala de visitas, tornando a luz dourada e concedendo uma aparência quente aos seus ocupantes e ao que ocorria ali. Casais e famílias desfilavam pelo espaço, cumprimentando conhecidos, formando grupos que relembravam os áureos tempos da aristocracia inglesa ou amargavam as tragédias da Grande Guerra. Mas, tudo era passageiro.

Os Anos 20 agitavam-se ao redor daqueles membros de uma instituição tão fragilizada pelas mudanças do tempo e pelas conseqüências da Guerra. As mulheres lutavam por seus direitos e a classe trabalhadora exigia respeito. Os Loucos Anos 20 estavam presentes, mesmo naquela sala que tentava manter a tradição. E, para muitos, eram Felizes mesmo que fossem assustadores.

No centro, gravitando todos ao seu redor, Lady Cecily Newport comportava-se como uma perfeita anfitriã mesmo que esse posto ainda não fosse seu. A sua mãe, Mary, junto ao esposo Anthony Newport, Conde de Bradford, formavam o casal mais respeitado do pequeno condado. A vila mais próxima adorava a família e as mudanças daquela época não pareciam chegar até a sala de estar de Weston Park.

Mesmo assim, ela conseguia senti-las em seus ossos, remexendo-se entre os costumes que lhe foram ensinados. Londres respirava a mudança nas vezes em que fora lá e ela já destoava bastante das jovens criadas somente no campo. Os seus cabelos loiros eram curtos (e ela ainda não fora corajosa o bastante para alisá-los) e a seda de seu vestido era verde. O seu pai olhara mais de uma vez para a sua roupa, desde que descera... E Cecily ria ao pensar que ele deveria dar graças aos céus por ela não estar usando as famosas franjas e pérolas das flappers londrinas.

Aquele jantar era como qualquer outro, o que restava da aristocracia na região estava feliz por ainda possuir um evento como aquele. E Lady Cecily, sinceramente, estava entediada. A verdade é que estava cansada dos preparativos e tudo que queria era subir e adormecer. Contudo, o jantar sequer fora servido e boas-vindas deveriam ser ditas.

Atrasos não eram aceitos em Weston Park, desde que fossem plenamente justificados. Por isso, era um mistério que ainda estivesse naquela sala e não, à mesa.

Cecily servia-se de mais uma taça de seu coquetel quando a porta da sala foi aberta pelo mordomo, Sr. Scott, a expressão dele refletia o incômodo por interromper o que fosse que seus patrões estivessem fazendo. A jovem escondeu um sorriso ao levar a taça aos lábios. O ouro da sala pareceu-se misturar ao brilho prateado vindo do exterior, da noite. No portal, um casal chegou acompanhado de uma jovem que, imediatamente, atraiu a atenção de Cecily.

Bem, se o seu pai estava incomodado com os seus vestidos... Ela gostaria de imaginar o que ele faria diante da recém-chegada.

Ela tinha os cabelos escuros, alisados e cortados na altura das orelhas, no corte que estava em muitas, mas, ficava bem em poucas. O vestido também era escuro, mais curto do que o de Cecily e só não era mais desrespeitoso pelas franjas presentes. Ela também usava maquiagem, pouca, mas, perceptível. Ela era magnética.

— O Sr. Grey e sua esposa, Sra. Joan e a filha, Srta. Victoria, milorde. — A voz do mordomo trouxe Cecily de volta para a realidade, ela deixou a taça sobre a bandeja de um dos lacaios e ajeitou o vestido, sentindo-se observada em cada ato. Ao erguer o rosto, olhos azuis estavam presos aos seus, castanhos. Novamente, ela se viu atraída para a recém-chegada, não restando outra solução que não fosse caminhar até ela.

Lorde Newport já atravessava o salão, trazendo a esposa elegantemente em seu braço. Cecily chacoalhou a cabeça para a estranha névoa que encobrira a sua visão naqueles curtos segundos em que os olhos azuis foram o seu único farol, então, apressou o passo até chegar aos pais, parando respeitosamente atrás deles, tentando proteger-se do que lhe era entregue em um olhar.

Os homens sorriam um para o outro, ambos parecendo extasiados por terem se encontrado. A família Grey não parecia ser tão rica e poderosa quanto os demais presentes, mas, o patriarca usava um traje de gala e a esposa, um vestido de noite. Eles não pertenciam à mesma esfera social daqueles na sala, mas, eram tão poderosos quanto.

— Por um instante, achei que fôssemos perdê-lo, meu velho Bill! — Lorde Newport estava animado ao apertar a mão do homem com virtuosidade e educação. Cecily observou o pai fazer uma discreta reverência às damas. — É um prazer tê-las aqui. Não posso descrever a alegria que é ter um companheiro de armas em minha casa. A Guerra nos tirou muito, mas, também nos deu o bastante em forma de amizade e afeto.

— Peço que perdoem o meu marido, ele costuma falar pelos cotovelos quando está animado. — Lady Mary completou com um sorriso gentil, estendo a mão para as damas e cumprimentando uma a uma. Por cima dos ombros da mãe, Cecily ruborizou ao ter os olhos azuis de volta para si. Ainda assim, aproximou-se e, com o tom mais leve que o seu nervosismo permitia, disse com um sorriso:

— Eu posso dizer com convicção que jamais presenciei um atraso no jantar de Weston Park... Tudo que papa diz é verdade, então, a consideração é muita e eu peço que se sintam à vontade!

Os pais afastaram-se a caminho da sala de jantar, acompanhando os recém-chegados. Lady Cecily deixou-se atrasar, na esperança que pudesse ficar sozinha para retomar a compostura que não sabia quando perdera. Contudo, a Srta. Grey pareceu ter a mesma ideia. Ela apanhou uma das poucas taças que sobravam na bandeja de um dos lacaios e a levou à boca, mas, antes que os lábios tocassem o vidro, os olhos azuis procuraram Cecily novamente.

E por mais que a jovem não soubesse o motivo, ela deixou-se ser encontrada e vista. Por alguns segundos, ela permaneceu ali, do lado daquela desconhecida, tendo somente o silêncio a dividir com ela. As duas destoavam nas cores que usavam, nos cabelos que possuíam e na forma como se portavam. De certa forma, faziam parte de uma geração que mudava e tentava encontrar o que fazer depois que os seus antepassados tomaram decisões que os destruíam.

Estavam perdidas e de alguma forma, se encontraram.

Lady Cecily mantinha as mãos entrelaçadas na altura do diafragma, olhando para o chão, sentindo o perfume forte como tudo na mulher ao seu lado. O rubor inesperado voltava e aquela névoa a envolvia...

— Lady Cecily e Srta. Grey, vocês são esperadas à mesa. — O Sr. Scott trouxe a realidade de volta, com o ouro brilhando ao redor delas e a prata perdendo-se em suas palavras. A jovem anfitriã sorriu de forma educada, recolhendo os pedaços de sua compostura enquanto dava um passo à frente, tentando afastar-se do campo magnético de Victoria Grey.

Pelo canto dos olhos, viu que não era a única que estava cativa dos próprios pensamentos. Porém, Victoria a olhava e desviou os olhos tão rapidamente que foi impossível não perceber. Dentro de si, Cecily sentiu algo inflamar o seu peito e lutar bravamente contra o que ela achava saber. Mesmo assim, a sua educação possibilitou que dissimulasse e disfarçasse, ao ignorar o que nascia em seu interior, respondeu com o melhor dos seus sorrisos:

— Muito obrigada, Sr. Scott. Estamos a caminho.

E assim, ela foi. Sem olhar para trás. Sem perceber que olhos azuis deliciavam-se com o seu comportamento e que um sorriso nascia no canto dos lábios finos rosados.

Os jantares em Weston Park não acabavam tão cedo, como muitos promovidos pela aristocracia, até adquiriram certa fama desde que Lady Cecily convenceu o pai a comprar um gramofone, ela não se orgulhava de ter mentido a respeito da finalidade, mas, não tinha culpa se a música era melhor do que qualquer programa de notícias. Se ela pudesse escolher, o jazz estaria explodindo de encontro às paredes do longo hall... Mas, tudo que podia ter era o baixo e tranqüilo som do foxtrote com o qual todos estavam familiarizados.

Ela estava entediada e, por isso, não conseguia tirar os olhos de quem a observara durante todo o jantar. Victoria dançava com o pai, melhor, o conduzia enquanto o velho Sr. William Grey tentava acompanhá-la. Eles riam abertamente um para o outro, girando pelo hall e, por vezes, até perdendo o ritmo. A Sra. Joan os observava com um sorriso carinhoso nos lábios e Lady Cecily admirou aquela cumplicidade familiar.

Os seus olhos castanhos desviaram-se dos Greys por um momento, procurando os pais e os encontrando prontos para dançar. Ela sorriu satisfeita e desejou que também tivesse um par, mas, ela e Victoria eram as únicas jovens naquele jantar e ela não queria ter que dançar com um dos senhores que a viram crescer. Por isso, aprumou a postura e voltou a procurar os Greys, encontrando apenas os pais enquanto a filha escapava pela porta da frente.

Cecily riu quando os lacaios ficaram sem saber se abriam ou não a porta e, apressando o passo, chegou até eles. Victoria olhava-os reprovadora, por isso, resolveu intervir. Com um sorriso no rosto, olhou de um para outro dos jovens rapazes e perguntou divertida:

— Algum problema, Ronald?

— A Srta. Grey quer sair, milady. Mas, o Sr. Scott nos orientou a manter as portas fechadas até que toda uma família estivesse disposta a sair... Não sabemos se devemos ir até ele ou simplesmente acatar ao pedido dessa senhorita, milady. — O alto moreno de olhos verdes respondeu inseguro, mantendo a mão firme na maçaneta que lhe fora responsabilizada. Lady Cecily ficou satisfeita pela obediência sincera dos rapazes e, por isso, respondeu tranquilamente:

— Eu acompanharei a Srta. Victoria até lá fora, se o Sr. Scott quiser causar algum problema para vocês, por favor, me comuniquem. Tudo bem?

Os rapazes entreolharam-se desconfiados, mas, acataram a ordem e as portas foram abertas para a noite. As duas senhoritas atravessaram o elegante portal de Weston Park, banhando-se pelo luar cheio do exterior. Milagrosamente, era uma noite amena em Yorkshire e Lady Cecily permitiu-se fechar os olhos para a brisa fresca antes de dar um passo à frente, para a noite.

Em silêncio, Victoria a acompanhou e os passos delas ecoaram no cascalho que contornava a frente da enorme casa. Ao redor delas, os campos circundavam a propriedade e os sons eram poucos, um grilo ou o farfalhar das folhas. Era calmo ali fora e silencioso, de forma que tudo que vinha uma da outra era mais perceptível.

Mesmo assim, Cecily estava distraída com o que não era visto. A curiosidade era tamanha que tinha medo de olhar demais e parecer rude, o nervosismo tencionava a sua postura e não permitia que ela parecesse elegante ou a mesma pessoa que estivera dentro da residência. Tudo por causa daquela garota com a qual mal trocara uma palavra.

— "O céu é mais escuro no campo, tal qual o coração dos homens ao longo dos anos. E as estrelas contidas neles são destinadas a cair em terra, como humanos devem desabar no amor..." — As palavras flutuaram a partir do tom de voz grave, recebidas por um ofegar de Cecily. Tudo parecia mais misterioso agora, quando o teor do que foi dito não pareceu se encaixar no pouco que se conheciam. Corajosamente, a anfitriã olhou para a sua visitante, encontrando-a entre sombras e fumaça de um cigarro que ela não vira acender. Victoria sorria, olhava o horizonte à frente, parecendo intocável. — Perdoe o meu pensamento alto, milady, o campo me inspira por mais que eu não seja adepta da vida levada nele...

— Por que não? — A pergunta foi tão abrupta que definiu perfeitamente a gula que Cecily tinha por conhecer aquela mulher. Uma sobrancelha foi arqueada em sua direção, o ato era curioso. O sorriso no canto dos lábios foi finalmente visto e a jovem senhorita suspirou. Mais uma tragada no cigarro e alguns segundos de silêncio entre fumaça e os abafados sons ao redor delas. Victoria relaxou a postura, inclinou-se para uma das herdeiras de Weston Park e sussurrou sarcástica:

— Eu acho que a senhorita não quer que eu ofenda o seu modo de vida, Lady Cecily.

— Pois saiba que eu gosto de Londres como qualquer outra garota da minha idade. — Ela respondeu de imediato, sorrindo ao se lembrar dos clubes de dança, das lojas, dos salões de chá e dos teatros e museus. Londres parecia respirar e funcionar em um ritmo totalmente divergente de Yorkshire. Ela corou quando os olhos azuis encontraram os seuss na penumbra, Victoria sorria deliciada com a resposta. — Trocamos palavras e opiniões e não fomos devidamente apresentadas. Eu sou Lady Cecily Newport, filha mais nova do Conde Bradford.

Victoria olhou para a mão que lhe foi estendida, mistério habitava aquele olhar e Cecily não soube o que encontrou ali. Dessa vez, não desviou o olhar e permaneceu resoluta em sua atitude. Finalmente, a sua mão foi apertada, seguida de uma discreta reverência. A anfitriã riu e a visitante grunhiu:

— Victoria Grey, filha de um dos condecorados na Guerra. Os meus modos não são os melhores, é difícil estar nos salões de jazz de Londres em uma noite e na outra, no meio de Yorkshire para o jantar na casa de um Conde.

— Você se acostuma, teve muita desenvoltura lá dentro... — Cecily respondeu com uma piscadela seguida de uma risada que soou solitária e sem saber o motivo, inclinou-se em direção a outra, apanhou o cigarro e tragou. Aquele era o pequeno ato de rebeldia que a sua classe permitia. Victoria observou-a com cuidado e Cecily ruborizou achando que tinha feito algo ofensivo. Isso logo passou quando a risada até então desconhecida juntou-se a sua. Elas só pararam quando se olharam.

E o silêncio veio a seguir, paciente e generoso.

— Eu terei que me acostumar, papai precisa do campo assim como eu preciso de Londres. E por mais que eu ame uma cidade, a família deve vir em primeiro lugar. — As palavras soltas, dessa vez, não tinham a mesma energia contida naquelas que começaram a conversa. Cecily olhou preocupada para a desconhecida que a atraía tanto, os olhos azuis, prateados pela noite, eram tristes e longe dos seus.

Era uma postura submissa que não combinava com a rebeldia que aquela garota emanava. As duas ficaram em silêncio, uma sem saber o que falar e a outra, esperando ouvir algo que a ajudasse. E elas escutaram, por fim, as portas de Weston Park se abrirem. Conversas sem importância chegaram até elas, seguidas de despedidas e vozes conhecidas. O Conde as chamava, assim como os Greys.

Em um momento de tensão, Lady Cecily fingiu não escutar, procurando o que fazer com o cigarro. Victoria pensou mais rápido do que ela e apanhou o cigarro de sua mão, apertando-o na própria e grunhindo com o calor que ainda tinha no filtro. Depois, jogou o que resto no cascalho e o encobriu com a ponta do sapato.

Cecily dissimulava enquanto sorria aos pais e visitantes e caminhava em direção a eles, reassumindo a sua função social. Despedidas sem perspectiva de reencontro foram feitas e, com mais um olhar, a jovem anfitriã entregou um agradecimento a visitante. Foi a vez de Victoria piscar.

Diante dos olhos azuis brincando nos seus, escondendo os segredos de uma noite que não fora comum, ela não escutou a sua mãe comentar o cheiro de cigarro nem sentiu quando foi puxada para dentro. Ela voltou à luz querendo ficar, mais um pouco, na escuridão.

Olhos azuis ficaram em sua mente enquanto os seus castanhos pareciam opacos à eletricidade de Weston Park. A noite acabara enevoada pela fumaça de um cigarro.

* * *

PARTE II: 1921

Um simples bilhete de agradecimento de Lady Cecily para Victoria iniciou uma série de cartas curtas que se tornaram mais longas e cotidianas. Festas e meses se passaram, com as duas se esbarrando em salas douradas e trocando olhares no meio de outras pessoas que as cercavam.

Sempre existia um empecilho cruel que as afastava, fosse o magnetismo que Cecily exercia pelo que representava, fossem as ausências de Victoria que eram repreendidas por sua mãe quando perguntada por ela. Mas, os Anos Loucos eram assim, separando uns aos outros. Todas as relações estavam fragilizadas assim como a maioria das estruturas da sociedade. A era da mudança também tornava a permanência incerta.

Lady Cecily queria ter Victoria por perto porque sentia que havia mais a ser desvendado na dona dos olhos azuis que recitava palavras para a lua. E se as cartas eram o pouco possível, ela as aceitaria de bom grado.

Com o passar dos envelopes trocados, ela foi apreendendo pequenos nuances nas frases que lhe eram destinadas. Victoria escrevia como falava, de forma aberta e franca, exceto quando o assunto era Londres e as maravilhas que a cidade escondia nos becos, casas suspeitas e salões de jazz para onde ela fugia quando podia. As anedotas desse período eram leves e divertidas, cheias de cor e vida.

Victoria conseguia pintar imagens apenas no branco do papel e no preto da tinta de sua escrita.

Outra exceção eram os sentimentos que ficavam escondidos à superfície de sua caligrafia fina, inclinada e refinada. Cecily ainda não os tinha interpretado por inteiro e sempre era surpreendida quando a narrativa ágil se tornava contemplativa e quando uma descrição era interrompida por uma divagação distante... Victoria precisava ser compreendida aos poucos, mas, parecia ser incapaz de manter o mistério.

Por isso, a carta deixada junto ao seu prato na mesa do café daquela manhã pareceu não fazer sentido, ao mesmo tempo em que despertava um estranho medo em seu peito. A correspondência entre elas era feita de intervalos incertos e uma carta mandada no dia seguinte ao que Cecily enviara a sua resposta era, no mínimo, urgente.

Os olhos castanhos demoraram a se afastarem do amarelo do envelope, a caligrafia no endereço aparentava desleixo e pressa. A lady sacudiu a cabeça e beijou a bochecha do pai, resultando em um pequeno sorriso no canto dos lábios do Conde de Bradford. Ele tomou o seu chá e disse:

— Bom dia, querida. Dormiu bem?

— Bom dia, papa. Existe a opção de não dormir bem em Weston Park? E mama? Acordou? — Primeiro veio o brilho nos olhos do pai que se orgulhava da imensa propriedade que possuíam. Em tempos como aquele, onde o Partido dos Trabalhadores alcançara céus cada vez mais limpos, era um milagre que ainda existisse algo que ecoava o passado. Em seguida, o Conde acenou que a esposa estava acordada. Cecily suspirou e, finalmente, apanhou o envelope em suas mãos. Não era pesado. — Eu acho que precisarei da companhia dela mais tarde.

— Algo de natureza feminina que seu pai não deve saber? — A risada de ambos ocupou a sala de refeições, ecoando nas paredes que os cercavam. Cecily suspirou quando o pai voltou-se para a sua refeição, desejando ter a mesma vontade que ele tinha para começar o dia. Os dedos trêmulos demoraram-se na aba selada do envelope quando, em meio a uma forte batida de seu coração, ela decidiu abri-lo e enfrentar o que a caligrafia que tanto gostava trazia.

Para a única Lady Cecily Newport,

Eu recebi a sua carta ontem, fiquei feliz em saber que não fui a única incomodada com todos aqueles garotos com dois pés esquerdos no jantar dos Crawfords. Também ri bastante, respeitosamente e à distância, das tentativas do Visconde em se aproximar de você. Eu acho que ele não entendeu que os tempos são outros. Eu estava disposta a passar sorrateiramente por ele e pisar em seu pé ou derrubar uma boa dose de vinho em seu traje de gala... Bem, saiba que eu poderia abandonar o riso para planejar uma boa vingança que fizesse jus ao que a senhorita representa. Seria um prazer como tudo que a envolve. E mesmo que eu esteja acostumada com essas cartas e pouco de sua presença tenha me sido permitido, eu ainda prefiro a senhorita sob a luz da lua e das estrelas enquanto ouve as minhas divagações e fuma o meu cigarro furtado.

Por isso, eu sinto muito que o tempo foi pouco e não pudemos discutir o que estou prestes a escrever. Infelizmente, eu terei que viajar por alguns meses. Paris me espera para aprimorar o meu francês. Porém, esse não será um adeus. Eu prometo voltar, muito mais afetada do que agora e, talvez, ainda mais rebelde e espero que me aceite da mesma forma, mesmo com nossas poucas palavras e muitos olhares e sorrisos baixos no meio de tantas pessoas.

A oportunidade de nos encontrarmos, longe dos outros, foi perdida, mas, espero que as cartas não se percam no correio francês. Eu mando o endereço quando estiver estabelecida.

Sempre é um prazer escrever para você, seria melhor se tantas noites não fossem roubadas de nós e se não tivéssemos acreditado que o tempo era eterno.

Volto logo, sempre sua única,

Victoria Grey.

O conteúdo da carta era tão bizarro que precisou ser lido mais de uma vez para fazer sentido e como Cecily esperava, eram rápidas desculpas que parecia esconder muito mais do que o sentido primordial delas. Aquela viagem não fazia sentido, assim como não parecia ser planejada. Algo acontecera desde a noite passada e ela repassava em sua mente se fizera algo ou se ofendera Victoria de alguma forma... Mas, tudo que se lembrava era da forma como o vestido azul dela contrastava com os seus olhos da mesma cor e da forma que os lábios dela, avermelhados pelo vinho, riram do seu desespero em tentar se livrar de mais um pretendente que tinha o dobro de sua idade...

Todas as lembranças de sua noite remetiam a Victoria, mas, nenhuma delas parecia justificar aquela viagem inesperada.

De súbito, ela perdeu a fome e abaixou a carta, lentamente, até que pudesse dobrá-la e recolocá-la no envelope. Os seus olhos castanhos procuraram algo em que fixar e, desolados, observaram o campo visto através das grandes janelas da sala. Ela queria entender o que acontecia, mas, tudo que conseguia sentir era o arrependimento pelo tempo que perdera e pelo que ficara agora que Victoria ficaria longe por algum tempo.

O Conde parecia ignorante ao que acontecia a filha e, apressado, dobrou o jornal e o colocou na mesa. O papel ainda estava morno e a tinta seca não manchara a branca toalha do café-da-manhã. A trivialidade daquela atitude duelava intensamente com o que Lady Cecily sentia e tentava entender. O seu coração estava apertado e ela não sabia até onde a sua tristeza fazia morada. Lorde Newport beijou a testa da filha ao se levantar e, rapidamente, o Sr. Scott retirou seu prato e talheres sem olhar duas vezes para a sua jovem patroa.

Subitamente, ela se sentiu sozinha e atônita, sem dar importância para o que planejara para o dia.

As palavras na carta flutuaram em sua mente e mesmo que não explicassem muita coisa, significavam outras tantas. Significados que Lady Cecily não estava pronta ou não queria entender. Ainda assim, ela acenou a cabeça e assentiu. Um sorriso sufocava as lágrimas quando a sua mãe a chamara para os afazeres do dia.

Talvez, Victoria precisasse se afastar de Yorkshire e Cecily perguntava-se se não era a causa dessa partida.

* * *

PARTE III: 1922

O salão vibrava pela luz e se exaltava aos sons dos instrumentos do grupo que tocava "Blue Call Blues". Os músicos se contorciam e sorriam entre batidas e sopros enquanto os dançantes iam à loucura no ritmo ligeiro que tentavam acompanhar com os pés. Ali, não parecia que existia uma vida lá fora... Nem que o Estado Nacional Irlandês fora fundado, nem que os conservadores estavam seriamente ameaçados pela ascensão do Partido Trabalhista.

Tudo era feito de jazz, de dança, de risos e suor.

Lady Cecily observava a pista de dança enquanto retomava o fôlego depois de meia hora sendo rodada de um lado para outro por Thomas Dormer, o seu primo distante que estava determinado a ganhar o seu coração, segundo a sua irmã mais velha Anne. A caçula das Newports fora educada e divertida durante toda a noite, mas, casamento não era algo que estava em sua mente.

Pelo menos, não agora, diante de tanta diversão.

Anne, por outro lado, parecia extremamente feliz com Robert Holland, seu noivo, e não parava de sorrir e desfilar ao lado do bonito rapaz. Eles se conheceram quando Anne ficara em Londres durante alguns meses e Cecily sabia, agora, o motivo da irmã praticamente ter desaparecido de Weston Park. O Conde e sua esposa estavam magoados por serem deixados de lado, mas, ela desconfiava que os pais sabiam e que ficariam extasiados com o primeiro casamento na família.

E Cecily esperava que esse bastasse, por agora. Ela não iria casar tão cedo.

— Eu achei que Thomas não tiraria as mãos de você, Ceci... — A voz risonha e cheia de suposições de Anne chegou aos ouvidos da mais nova, as duas se afastaram da balbúrdia e voltaram as suas mesas, Cecily apenas sorriu com os olhos ainda na dança, mas, a expressão lisonjeada fez a irmã mais velha rir ainda mais. — Você não possui nem um pouco de vergonha para fingir desinteresse.

— Um pouco de atenção sempre é bom, você que perdeu o costume já que tem Robert aos seus pés... — Cecily respondeu afiada, bebendo um gole de sua taça de champanhe, os olhos castanhos brilharam maliciosos para a irmã antes de voltarem à dança.

Um casal lhe chamou a atenção entre os outros, rodopiando com elegância e vivacidade. A mulher usava um vestido verde escuro cheio de franjas e pedrarias enquanto o rapaz usava um elegante traje de gala. Ela se deixou levar pelo momento para não se lembrar da última vez, desde Thomas, em que se sentira tão necessária e importante a alguém...

Há oito meses, na noite do jantar da Família Crawford quando Victoria Grey cuidara dela à distância, atenta a qualquer ato desrespeitoso de um velho Visconde do qual ela mal se lembrava. Claro que era diferente, havia de ser diferente, porque a atenção de Victoria era muito mais sutil do que a do primo... Mas, provocava um frescor em seu peito que parecia mais genuíno do que o abafado sentimento atual.

Lady Cecily chacoalhou a cabeça e recolocou o melhor dos seus sorrisos em seu rosto, ignorando toda a magnitude do que sentia pela partida de uma pessoa que prometera e jamais, lhe escrevera. As poucas notícias que tinha de Victoria eram esparsas informações esparsas adquiridas nos chás semanais com a Sra. Joan e que envolviam a melhora do francês, a vida boêmia e o talento que florescia no decorrer dos dias. Victoria estava escrevendo algo e Cecily daria tudo para ler mesmo como uma mera leitora e não mais uma confidente.

E assim, quando pensou em Victoria no meio de todo aquele calor humano e daquela música visceral, ela escutou uma risada sobrepor-se a todos os outros sons, incluindo a voz animada de sua irmã. Para ter certeza, ela voltou os olhos para a pista de dança, à procura do casal que atraíra a sua atenção anteriormente e que, agora, saía enquanto a mulher ria apoiada no homem sorridente.

Então, naquele segundo, a atenção dedicada ao par assim como as lembranças de Victoria estabeleceram um vínculo e um sentido porque depois de todos aqueles meses de silêncio, ela via Victoria Grey da mesma forma que a vira pela última vez. As mãos de Cecily tremeram sobre a toalha de seda amarela da mesa, por um instante, ela desejou que não existisse luz ali dentro.

Ou melhor, ela desejou que estivesse sob o céu feito de estrelas e lua ou à sombra da vela em seu quarto, lendo uma carta. Ela desejou o ano anterior de volta.

Afoita, Lady Cecily pediu licença à irmã, não se preocupando em adquirir uma permissão ou provocar um questionamento. Ela só precisava chegar a Victoria, nem que fosse para ser afastada de novo.

A jovem Newport caminhava atenta, tentando não perder os curtos cabelos negros de vista, desviando-se de casais pelo caminho e praticamente ignorando a existência de Thomas e Robert que passaram confusos por ela com novos drinks em mãos.

A Srta. Grey e seu amigo chegaram a uma mesa mais distante da dança e próxima ao bar. Ele não puxou a cadeira e ela também não fez questão, Cecily sorriu para aquela interação porque essa era uma atitude que sempre relacionou a sua antiga confidente. Encorajada por essa familiaridade, atravessou a pouca distância que ainda as separava, esquecendo-se do silêncio de tanto tempo.

O homem foi o primeiro a vê-la já que estavam frente a frente, ele arregalou os olhos azuis e ajeitou os cabelos negros de forma afetada, servindo-se de um longo gole de brandy. Victoria percebeu a alteração de comportamento dele e prestes a se virar para verificar o que acontecia, foi sofregamente interrompida por um toque angustiado de Cecily em seu ombro.

A intenção não era essa, na verdade, a lady ainda tentava entender porque viera até ali. Porém, tudo estava difícil de ser compreendido porque ela não pode ignorar a nova energia que percorria seu corpo e parecia vir, diretamente, de Victoria. Depois de tanto tempo, os olhos castanhos voltaram a encontrar os azuis que tanto a marcaram naquela noite prateada, Lady Cecily riu para o ar estupefato da outra e disse com um sorriso saudoso:

— É um prazer saber que continua viva e que Paris não a mudou a ponto de se tornar irreconhecível, Srta. Grey...

— Lady Cecily, eu n-não...! — Victoria gaguejou, atitude que Cecily jamais pensara presenciar. Finalmente, as duas se afastaram e a jovem aristocrata fechou a mão, sentindo a leve umidade do suor da outra entre os seus dedos. Era reconfortante de uma forma que ela não sabia explicar, era uma prova de um reencontro improvável. Diante do silêncio nervoso da morena, ela se virou para o acompanhante e sorriu gentil. — É um prazer conhecê-lo, Sr...?

— Atticus. Atticus Capell, milady. É um prazer conhecê-la. — Ele comentou de uma forma espontânea que mesmo soando inferior, não era má. Era um homem de trejeitos diferentes que não possuíam o que Cecily estava acostumada a ver nos homens que a cercavam. Ele parecia não ter medo de demonstrar fragilidade e insegurança, como agora. Ele não tinha a necessidade de provar algo.

Ela gostou dele de imediato e estendeu-lhe a mão que foi devidamente apertada. Em seguida, virou-se para o objeto primário de sua observação e Victoria parecia recomposta, a postura misteriosa e magnética, da qual Cecily não se esquecera, voltou à tona, aparentando possuir um novo componente que ela não conseguiu descobrir. Os lábios pintados desenharam um sorriso travesso e Victoria disse:

— Parece que estamos destinadas a nos encontrar em eventos nos quais não podemos conversar.

— Bem, isso poderia ser amenizado se a senhorita tivesse cumprido o que escreveu em sua última carta... — Lady Cecily surpreendeu-se com a mágoa em sua voz, os olhos azuis perderam um pouco do brilho divertido e feriram-se, opacos. Ela não conseguiu manter os seus castanhos fixos e, por isso, desviaram-se para Atticus. — Mas, isso não importa mais. Estão aqui há muito tempo?

O homem olhou de uma para outra, entendendo o que nem elas compreendiam. Pelo canto dos olhos, Cecily via que Victoria continuava a observá-la, mas, sem toda aquela alegria que demonstrara ao dançar, sentiu-se culpada e vingada, ao mesmo tempo. Por isso, dedicou toda a sua atenção ao homem que respondeu nervoso:

— Estamos matando uma hora até o nosso próximo compromisso, nossos conhecidos estão preparando uma festa surpresa a Srta. Grey pelo seu retorno a Inglaterra, mas, ela conseguiu tirar a verdade de mim antes que eu pudesse evitar, milady.

Os olhos castanhos de Lady Cecily piscaram interessados para as palavras e ela, efetivamente, virou-se para Victoria. A expressão de dor abandonara os belos traços da outra e, diante da luz dourada do salão, ela conseguiu enxergar aquele sorrisinho de canto que chamou a sua atenção em Weston Park. Era um desafio? Cecily não sabia.

— Lady Cecily, nós estamos indo... — A voz de Thomas pareceu desagradável diante do que ela tentava desenrolar no rosto de Victoria. As duas aparentaram acordar de um sonho e na realidade que se estendia diante delas, Cecily não gostou da forma como o seu "pretendente" olhou para as suas companhias.

Thomas sequer fez questão de se apresentar. E ainda segurava seus pertences como se fosse o seu dono.

O rosto da jovem Newport se fechou em desagrado. Com os olhos indo de Atticus para Victoria, demorando-se nesta que olhava para Thomas com a sobrancelha arqueada e uma expressão desafiadora, respondeu:

— Na verdade, a Srta. Victoria é uma conhecida e, juntamente com o Sr. Capell, me convidaram para uma festa. Seria uma falta de educação recusar, senhor.

O primo a olhava incrédulo e dando nova demonstração de ausência de boas maneiras que deveriam ser inerentes a sua classe social, deu às costas aos outros dois e aproximou-se de Cecily, sussurrando em seu ouvido:

— Eu detesto dizer-lhe isso, milady, mas, Victoria Grey e Atticus Capell não são as melhores companhias em Londres. O seu círculo de amigos é conhecido pelas festas extravagantes e...!

— Que são justamente o que eu preciso. Eu não me sinto cansada nem sonolenta, senhor. Portanto, encarrego-o de passar o recado a minha irmã e agradeço por ter trazido meus pertences. — Lady Cecily não gostava de usar aquele tom imperativo, mas, parecia ser necessário quando Thomas estava sendo insistente e mal educado. Ela apanhou os seus pertences e não esperava que ele saísse dali marchando, muito menos, que passasse direto pela sua irmã e Robert, rumo à saída. Anne ficara estupefata, mas, logo se recuperou diante do olhar pedinte de Cecily. Depois, ela voltou-se aos seus companheiros e sorriu, como se nada tivesse acontecido. — Então, vamos?

Atticus sorriu como se tivesse ganhado na loteria e Victoria pareceu incomodada, como se escondesse um grande segredo. Cecily amargava aquela aura quando, antes de saírem do salão de jazz, olhos azuis encontraram os seus e um deles foi piscado, aquela familiaridade que a fazia sorrir. Enquanto esperavam o carro de Atticus, Victoria sussurrou em seu ouvido:

— Eu sinto muito pelo meu comportamento.

E sem saber a razão, Cecily respondeu charmosa:

— Essa será uma noite de redenção para nós.

O grupo era extravagante como Thomas dissera, mas, divertido como ele jamais compreenderia. Cecily não parava de rir e sorrir desde que chegara a casa. A sua presença foi recebida com desconfiança logo dissolvida por Atticus e sua animosidade ao apresentá-la. Ele não a deixara de lado mesmo com Victoria tendo que dividir atenções desde que entrara na festa.

Os amigos de Victoria eram boêmios que faziam arte ao escreverem, atuarem e cantarem. Eram excêntricos, alguns homens usavam saias e vestidos enquanto mulheres usavam trajes de gala masculinos. Atticus lhe explicara que era uma brincadeira que copiaram do Grupo de Bloomsbury depois que um deles conheceu Virginia e Leonard Woolf em uma festa. Inexplicavelmente, aquilo não assustara Cecily e ela só imaginava como Victoria podia ficar em trajes masculinos...

Era uma imagem e tanto.

Em algum momento da noite, Cecily sentou-se junto a duas garotas para conversarem sobre a vida no campo e sobre as particularidades de Victoria Grey. Uma delas vestia-se normalmente, cheia de franjas em seu vestido grená enquanto a outra usava calças, camisa e cartola. Elas trocavam afetos e palavras carinhosas em meio à conversa, isso não assustou a lady que sabia que pessoas como aquela eram mais comuns e conhecidas do que muitos imaginavam... Os seus olhos procuraram Victoria quando isso lhe ocorreu e acabou sorrindo, sem saber por que.

Atticus voltou para ela, trazendo Victoria consigo. Sem cerimônia alguma, a dona da festa sentou-se junto a Cecily. As duas tinham camadas finas de suor em suas peles que se misturaram ao se tocarem. Victoria tinha champanhe em mãos e ofereceu uma taça para a sua convidada, a jovem Newport sorriu agradecida enquanto os outros três as olharam. Por fim, a garota de trajes masculinos, chamada Gwen, perguntou maliciosa:

— O que tem a nos contar sobre Paris e seus amores, jovem Victoria?

— Por favor, me diga que conseguiu conhecer Colette... — A companheira dela, Rose, completou entusiasmada, provocando risos em Atticus e Victoria. Gwen lhe fizera cócegas e ela se encolhera de encontro ao corpo dela. Cecily sorria por, finalmente, ter algo em comum com todos.

Colette era a autora de Chérie, uma das muitas obras que causaram furor naqueles Anos Loucos. Mas, antes disso, era sabido que ela fora a inspiração da série de histórias de Claudine escritas pelo seu ex-marido no começo do século. Se bem que Cecily duvidasse que um homem pudesse ter sensibilidade a ponto de escrever tão bem o amadurecimento de uma mulher ao longo dos anos... Ela não se surpreenderia se Colette fosse a verdadeira autora daqueles livros.

Ela deveria ser uma mulher formidável e Cecily também gostaria de conhecê-la.

— Não a conheci como queria, mas, sim... Ela fez uma leitura enquanto estive em Paris. — Victoria respondeu no mesmo tom que Gwen usara, o rubor coloriu a sua face quando olhou para Cecily enquanto os outros riam. Cecily bebericou a champanhe, escondendo um sorriso enquanto sentia o seu peito esquentar. Algo estava acontecendo ali e, talvez, a bebida estivesse fazendo-a considerar uma loucura sã.

A risada de Atticus se sobrepôs às femininas e ele empurrou Victoria, de forma que ela se encostou ainda mais em Cecily. As mãos da jovem aristocrata tocaram a perna desnuda da anfitriã, houve um choque mútuo e ela tentou afastar-se, respeitosamente, mas, teve a mão firmemente mantida no local por Victoria. Ela pensou ter visto os olhos claros de Atticus lampejarem em direção àquele ato e ele disse risonho:

— Mas, garanto que teve tempo o bastante para conhecer outras francesas exatamente da forma como queria.

Victoria deu de ombros como se não tivesse o que falar enquanto Gwen protestava indignada e Rose ria abertamente. No meio deles, Cecily os observou até que os seus olhos encontraram os azuis. Foi como se uma redoma tivesse sido colocada sobre elas, separando-as da música e dos risos, envolvendo-as naquele silêncio que dividiram naquela distante noite prateada.

Os olhos castanhos desviaram-se quando Cecily se sentiu alvejada, mesmo assim, eles observaram o local onde a sua mão estava e na forma como ela se entrelaçara a de Victoria sem que ela entendesse o motivo. Em silêncio, a morena apertou-lhe e se levantou, ainda de mãos dadas, ela olhou para os outros participantes da conversa e disse:

— Vocês estão assustando Lady Cecily, depravados...

— É o seu comportamento que assusta qualquer uma. Não temos nada a ver com as suas falhas de caráter, Vic. — Rose respondeu entre risos, se inclinando ao abraço que Gwen lhe dava. Ela recebeu um beijo na bochecha enquanto Atticus gargalhava e Victoria revirava os olhos.

Em seguida, Cecily se sentiu puxada para longe, sem saber para onde ia.

Elas caminharam em silêncio, atravessando portas enquanto deixavam a balbúrdia para trás. As duas só pararam quando chegaram no jardim iluminado apenas pela lua, Victoria fez questão de fechar a porta antes de juntar-se a Cecily que já se sentava em uma das cadeiras de metal no meio do gramado. Ali fora, era como se ambas se desnudassem, Victoria tornava a sua coragem mais delicada e Cecily abandonara as conveniências de sua classe.

— Eu sinto muito se algo lhe ofendeu essa noite. — A voz, sempre tão resoluta e firme, estava frágil e temerosa, remexendo o desconhecido dentro da lady. Ela jamais seria capaz de se ofender pelo que Victoria era e o absurdo era não ter ideia porque aquilo lhe ocorria. Victoria acendeu um cigarro e, após tragar, ofereceu a Cecily que o negou.

A fumaça de um cigarro já fazia parte de suas lembranças, ela queria o novo, queria mais do que aquele mistério feminino podia lhe entregar. A negação pareceu agir em Victoria que suspirou pesado, por isso, a Newport se apressou em responder:

— Não há nada de errado, eu só preciso lidar com a sua volta ao mesmo tempo em que ficamos sozinhas pela primeira vez.

— Parece que muito tempo se passou desde àquela noite em Weston Park... — Victoria comentou mais tranqüila e, pelo canto dos olhos, Cecily viu que ela sorria ao divagar no passado. Foi inevitável não sorrir de volta e deixar-se levar para àquela noite tão parecida com essa, a diferença era que, aparentemente, existia algo de eterno no hoje. A lady não conseguiu deixar de comentar, divertida:

— Eu sei que as suas noites foram boêmias e produtivas...

— Vejo que conversou com a minha mãe. — Victoria comentou com carinho, ajeitando-se na cadeira de ferro, de forma que conseguisse se esticar e tocar a porção interna do pulso de Cecily. O ato pegou-a despreparada e o arrepio que a tomou foi angustiante, à luz do luar, os olhos azuis brilhavam em meio à névoa de sentimento que as envolvia.

O silêncio voltou como se fosse a única forma que elas possuíam para se entender. Mas, depois de tanto tempo, não parecia o bastante. Victoria levantou-se abruptamente e tragou o cigarro por inteiro antes de abrir a cigarreira em busca de mais um, Cecily percebeu a mudança no temperamento dela, pesando tudo que era feito de leveza até então. Ela também se levantou e, levando-se pelo instinto, se aproximou, segurando os punhos da outra que a deixara sem resposta, olhando-a nos olhos em busca de algo que pudesse explicar o que passara oito meses tentando entender.

Victoria parecia ter as respostas, mas, era egoísta em não fornecê-las. Como em poucos momentos, os olhos azuis distanciaram-se dos seus e Cecily resistiu à necessidade de segurá-la no rosto e mantê-la ali, consigo. Victoria queria ir embora, mas, daquela vez, Cecily não deixaria porque não era capaz de sofrer, de novo, sem entender.

— Eu não sei se sinto muito pelo que ocorreu hoje ou por ter ido embora sem lhe explicar ou por aquilo que eu ainda não lhe disse... — Victoria murmurou mais para si mesma do que para o mundo. Cecily engoliu em seco e abaixou as mãos, dando a ela liberdade se ela quisesse partir. Mas, Victoria a surpreendeu, aproximando-se e juntando a testa de encontro a sua. De olhos fechados, ela suspirou enquanto Cecily tremia. — Eu achei que esse tempo em Paris fosse mudar o que eu senti naquela noite em Weston Park, mas, ver você de novo naquele salão de jazz mostrou que eu ainda não me curei do que me fez ir embora...

Novamente, o silêncio. Cecily respirou fundo, ansiando a resposta para as suas dúvidas. Nada fora dito, mas, ela sentia e, por isso, fez o que desejava sem pensar. Ela deixou que as suas mãos tocassem o rosto de Victoria que, primeiro, tentou se desvencilhar antes de se inclinar ao seu toque. Por fim, dividindo o mesmo ar, a dona dos olhos azuis sussurrou:

— Por favor, diga-me que sente o mesmo.

Cecily não disse, mas, beijou-a. E, diante de tudo que sentiu, diante da certeza de que o seu mundo tinha mudado pra sempre e de que jamais poderia viver da mesma forma... Cecily Newport fugiu com medo.

Atticus não entendeu quando ela disse que precisava ir embora, ele perguntou por Victoria, mas, Cecily não teve coragem de lhe responder. Ela saiu pela casa à procura de seus pertences, agarrando-se a eles como se pudesse agarrar ao que ainda restava de sua vida antes daquele beijo. Ela precisava encontrar Thomas... Para que? Não sabia, mas, era o único pensamento em sua cabeça.

Ela esperava pelo carro prometido do lado de fora, Atticus entrara novamente apenas para apanhar o que lhe pertencia porque ele insistia que iria levá-la para onde quer que fosse. Ele percebera o seu estado emocional e, com certeza, conhecia Victoria melhor do que ninguém, já tinha juntado as peças e podia estar remediando a situação.

Londres estava silenciosa e, por isso, qualquer som era perceptível, ainda mais para Cecily que estava com os sentidos à flor da pele. Por isso, ela ouviu os passos atrás de si e soube, antes de qualquer coisa, quem era. Victoria caminhava lentamente, tratando-a como uma ameaça e, ao mesmo tempo, algo frágil. As duas pararam lado a lado, nenhuma delas agiu, mas, os seus corpos aproximaram magnéticos.

Lado a lado, elas respiraram e inspiraram para a noite de Londres. Os sons distantes da festa, a música parecendo um eco diante da confusão em suas mentes e corações. Victoria, mais corajosa e rebelde, foi a primeira a assimilar uma atitude. Ela virou-se por completo para Cecily, os olhos azuis endurecidos pela rejeição e amortecidos pela dor, ela crispou os lábios e, dividida entre a tristeza e a raiva, perguntou:

— Se você quiser, eu vou embora e nunca mais ouvirá falar de mim... Você quer que eu vá, Lady Cecily?

O peso das palavras a fez lembrar-se das cartas que não vieram e da solidão que, agora, fazia sentido e assustava o seu coração. Cecily não soube responder e o carro chegou junto com Atticus, ele olhou de uma para outra e Victoria foi a primeira quebrar. Cecily viu quando a lágrima escorreu pela face esquerda, tingindo a pele com uma dor que ecoava dentro de si.

As duas se separaram em silêncio e a noite voltou a se dourar pela luz de uma cidade que as excluía. Não havia mais escuridão protetora para elas, não havia mais luar para declamar... Só luz e ouro. Só realidade.

* * *

PARTE III: 1925

Os anos se passaram e o silêncio que abrigavam não era mais reconfortante. Lady Cecily se viu ansiando por cartas que não viriam e visitas que jamais aconteceriam. O arrependimento era mais latente a cada mês e mais insuportável a cada ano, ela recusava-se a pensar no que dividiu com Victoria Grey, mas, não podia ignorar o que provocara.

A única lágrima ainda a assombrava em noites solitárias, o toque fortuito na pele quente e suada ainda era real na ponta dos seus dedos... Victoria ecoava em todos os anos, fazendo-se ouvir em meio à saudade e ao tempo.

E Cecily parecia como tantos outros aristocratas que ansiavam pela volta dos áureos tempos sociais. Só que ela não era como eles. Porque eles falavam saudosos de status enquanto ela falava de amor.

Agora, ela entendia e não importava. Por isso, ela carregava o anel em seu dedo como um peso morto, ela não olhava Thomas nos olhos, mas, sorria quando ambos falavam do noivado e futuro casamento... Ela não o amava e a dissimulação estava presente em cada um de seus atos, ela amargava um silêncio que exigia palavras.

Lady Cecily sabia que deveria ter pedido para Victoria ficar.

Agora, os anos levaram muitos e deixaram poucos...

Anne estava casada com Robert e viviam em Weston Park, apaixonados pela vida matrimonial e isolados nela. O Conde de Bradford começava a se preocupar com a demora do segundo casamento na família enquanto a sua esposa escondia a própria angústia ao tentar consolá-lo. Os Greys tinham deixado Yorkshire desde que William Grey falecera no ano anterior, tudo que Cecily sabia sobre era que a Sra. Joan morava com o filho mais velho em Londres. E que Victoria fora embora como prometera.

Por isso, foi surpreendente receber a Sra. Joan Grey em Weston Park em uma fria manhã de janeiro. Thomas discutira com Cecily na noite anterior a respeito da data do casamento, ele fora embora na escuridão, deixando-a com uma enxaqueca que ainda permanecia na manhã. Contudo, tudo se tornara ínfimo ao ver a senhora cujos traços lembravam tanto quem lhe fazia falta.

A viúva retirou o casaco e cumprimentou a todos com um sorriso, respondendo amável para a gentileza que lhe era dedicada. Por fim, foi Lorde Newport que, alheio ao que lhe cercava, perguntou a caminho da biblioteca onde o chá seria servido:

— E os seus filhos, Sra. Grey? Estão bem?

— Matthew ficou em Londres junto à esposa, um dos pequenos está com uma gripe fortíssima e ambos acharam o campo muito arriscado a sua saúde... — Cecily ofegou para o que viria a seguir e foi atingida, com surpresa, pelo olhar de conhecimento que lhe era dedicado. A Sra. Joan sorriu para a sua animosidade, parecendo compreender o que acontecia entre sua filha e Cecily Newport. — Victoria esteve na América com meu irmão, ela o ajudou a administrar algumas propriedades e agora, voltou a Inglaterra. Pelo que me diz, ela pretender reabrir a nossa casa em Yorkshire e deve estar lá, verificando documentos... Victoria amadureceu como jamais imaginamos, gostaria que Bill estivesse aqui para vê-la.

— E vocês pretendem morar em Yorkshire? — A pergunta gananciosa irrompeu antes que Cecily pudesse ponderá-la. Anne foi a primeira a perceber a sua ansiedade, seguida por pelo arquear da sobrancelha de sua mãe. Mas, a Sra. Joan continuava a sorrir como se soubesse de tudo e, sem pestanejar, respondeu:

— Não, não. Victoria pensa em arrendar e até mesmo vender, ela quer voltar a Paris, diz que a vida adulta envelheceu-a nesses anos e precisa ter a sua boemia de volta.

As palavras adentraram e acalmaram a mente de Cecily como mantras sagrados há muito esquecidos. E ela não sabia se fora a briga com Thomas ou a imprevisibilidade do ocorrido, mas, algo bombeava seu peito, forçando-a a agir. Ela arrumou uma desculpa, disse que precisava ir à aldeia para resolver algum evento inexistente que, mesmo existindo, ninguém se importaria. E, desabalada, ela abandonou Weston Park em meio ao frio.

Era dia, mas, não fazia sol. A névoa era feita de branco e prata e Cecily rezou, no interior do carro, para que isso bastasse para que Victoria se lembrasse do que dividiam em uma noite escura. Porque, na ausência da luz, elas se entendiam... E ela esperava que esse eco não tivesse desaparecido naqueles anos que passaram.

Ela queria consertar o passado, mesmo não sabendo o que aconteceria no presente. Ela só queria um futuro e esse incluía, em todas as hipóteses e probabilidades, Victoria Grey em sua vida.

O silêncio tornara-se amigo de Victoria ao longo dos anos, a ironia dessa companhia era cruel quando ela lembrava as noites de festa e jazz que freqüentou em anos anteriores. Porém, a ausência de sons era algo com o qual se acostumara quando passava horas, imersa em documentos e itinerários nas noites dos Estados Unidos da América.

Ela atravessara um oceano para esquecer e acabara se redescobrindo.

O sobrenome Grey era muito mais proeminente no outro lado do Atlântico graças à riqueza que o seu tio construíra com os latifúndios e produções agrícolas e tudo que aprendera com ele poderia vir a calhar diante da decisão que tinha, literalmente, em mãos. A escritura da Residência Grey em Bradford estava debilmente segura entre seus dedos enquanto ela tragava um cigarro e bebia uísque, hábito adquirido na terra colonizada.

Na verdade, era fácil. Ela tinha o respaldo de Matthew e da mãe, mas, Yorkshire invocava tantas lembranças que ela mal conseguia manter o foco. Ela perguntava-se o que acontecia em Weston Park, não pela presença da mãe no local e sim, pelos moradores que ainda podiam residir lá.

Ela procurou manter a sanidade quando os seus pensamentos rumavam, perigosamente, para intensos olhos castanhos e para um caloroso sorriso que parecia ser capaz de salvar o mundo. Victoria não estava ali para lembrar e sim, para fechar um ciclo.

Determinada, ela voltou a reunir os documentos necessários para o leilão, mas, sons do lado de fora a distraíram. Irritada pela interrupção, ela levantou-se abruptamente da antiga cadeira do pai no escritório e marchou para a porta, apertando a madeira branca entre seus dedos. Abriu-a de imediato, deparando-se com a jovem criada sussurrando nervosa:

— A Srta. Grey não quer ser incomodada, por favor, milady...

O vocativo evocou sentimentos no peito de Victoria, ela os ignorou e fechou a expressão adulta adquirida pelos anos passados. Estava com um pé para fora do escritório quando, não bastassem os sentimentos, o seu próprio passado materializou-se em seu hall.

Lady Cecily Newport tremia da cabeça aos pés enquanto tentava empurrar os pertences para a criada. As mãos pálidas e bem cuidadas eram as mesmas, assim como os fios loiros delicadamente penteados. Assim como na última lembrança, ela não sorria e os olhos castanhos estavam opacos.

Mas, diferentemente da última vez, ela parecia determinada a ficar.

Ao mesmo tempo em que o encantamento natural de Cecily embriagava, Victoria sentia a mágoa chegando à superfície, amargando aquele improvável reencontro. A morena voltou para o escritório, fechando a porta as suas costas e apoiando-se na mesa enquanto respirava fundo, tentando reerguer as defesas adquiridas naqueles anos.

Contudo, a porta abriu-se atrás de si e o aroma adocicado da outra ocupou o ar. Ela cheirava da mesma maneira e Victoria podia sentir que também beijaria da mesma forma, se fosse possível... Aquilo não deveria e não iria importar. A criada balbuciava pedidos de desculpas e a senhorita da casa suspirou ao dizer:

— Tudo bem, Jane. Pode ir.

Quando a porta se fechou, o silêncio retomou e agora, não era amigável. Victoria podia senti-lo arranhar as suas entranhas, forçando-a a interrompê-lo e pedir respostas. A falecida escritora em si pintou a cena que não podia ver: Lady Cecily olhando para as suas costas, mordiscando o canto dos lábios róseos, procurando palavras no extenso e educado vocabulário que possuía.

Victoria não era como ela, nunca foi. Por isso, as palavras saíram rudes:

— A que devo a honra, Lady Cecily?

— A Sra. Joan comentou o que estava fazendo e eu vim até aqui fazer-lhe companhia. — Cecily nunca soou tão insegura e Victoria amargou ser a razão daquele comportamento. O tempo ajudava a lidar, mas, não era capaz de fazê-la esquecer e ela se perguntou quantos anos e quantas mulheres seriam necessários para ser, finalmente, capaz de olhar aquela lady sem querer desabar. — Como você está?

— Hoje é um dos meus melhores dias. — O sarcasmo era uma defesa que ela aprimorara com os anos e diante do silêncio da outra, ela soube que atingira o seu objetivo assim como surpreendera. Victoria não estava pronta para olhar, mas, o seu coração batia acelerado para a possibilidade... Eram anos ofuscados à luz que não lhe pertencia.

Por isso, ela respirou fundo antes de contornar a mesa e sentar-se na cadeira do pai. Lentamente, ergueu os olhos e, de imediato, sentiu-se afogada pelo castanho que a engolfava e a atraía, da mesma forma que sempre a atraíra. A dor propagava-se através daqueles olhos, derrubando cada uma de suas defesas. Por fim, Victoria tentava se esconder na fumaça de seu cigarro e Cecily, ainda em pé, sussurrava:

— Eu vejo que os anos mudaram você.

Aquelas palavras ecoaram a fatídica noite. O jazz que ela não mais lembrava e o beijo que ela jamais esqueceria. Assim como Atticus que lhe mantivera informada sobre Cecily, incluindo o noivado. Os olhos azuis procuraram o anel, encontrando o brilhante entrelaçado na mão que se encaixara tão bem a sua. A aristocrata percebeu e escondeu a mão, enquanto Victoria não fazia questão de esconder mais nada:

— Ah não, milady... As mudanças são frutos das decepções.

Mais uma vez, o silêncio. Mas, dessa vez, Cecily a chamava pelos olhos, mantendo-se determinada e fixa, sem qualquer menção de desaparecer. Victoria tragou mais uma vez e inclinou-se para beber quando, enfim, pode ver o anel de perto. A outra a segurava com a mão que carregava o seu destino e ela tentou se afastar, Cecily percebeu e a manteve ali, segurando-a da mesma forma que a segurara na recepção.

Algo lampejou nos olhos castanhos, um brilho muito parecido com aquele que a manteve perto na segunda noite estrelada que dividiram. Victoria se viu incapaz de ir, ela ficou mesmo sentindo tudo queimar dentro de si. O que estavam fazendo? O que Cecily queria depois de tantos anos?

Quando, finalmente, o toque se tornou desnecessário, a noiva entre elas retirou o anel, deixando-o ao lado do uísque, observando-a enquanto fazia isso. Cecily contornou a mesa e apoiou-se na madeira próxima a Victoria. Tão próxima que a fez suspirar por aquele calor que não esfriara com os anos... Uma olhava para os jardins decadentes através da janela, a outra olhava para essa que observava. Por fim, Cecily pigarreou e, sem pestanejar, disse:

— Eu não queria que você partisse e fui incapaz de pedi-la para ficar... Mas, você nunca me disse o que eu teria com você.

E como em todos aqueles anos passados, Victoria se viu escutando Cecily chamá-la. Mas, dessa vez, não era em sonho ou divagação. Era real e ela sentia tudo que a outra representava por inteiro. Era evidente que seria incapaz de esquecê-la. Lady Cecily Newport era como poucas.

Observando-a naqueles segundos, contemplou o perfil do rosto impassível que não conseguia conter a ansiedade dos olhos castanhos. A curvatura da mandíbula que segurara, a marca de nascença no pescoço que contornara com seu polegar... Os lábios entreabertos que escondiam o sorriso ofuscante que tomava toda a luz de seu mundo. A escuridão daqueles olhos, o nervosismo daquelas feições...

A mulher que amava.

Victoria abaixou a cabeça e suspirou diante da insensatez de seu coração. O seu juízo nunca fora dos melhores, mas, possuir um coração tão arredio era uma verdadeira maldição. Não havia espaço para a dor que sentira, tudo que importava era o que achava ter escutado nas palavras de Cecily.

Uma esperança, uma chance, um eco do sentimento que dividiram sob céus estrelados e luas prateadas.

Victoria se levantou sem saber o que fazer, exatamente como da outra vez. E, tal qual, Cecily a direcionou, guiando-a para o que dividiam e o para o que ecoara naqueles anos. Ela a alcançou, tomando-a pela mão e trazendo-a para perto pela clavícula. A testa tocou a sua e a respiração dela misturou-se ao seu ofegar, os olhos castanhos desapareceram atrás de pálpebras pesadas enquanto os azuis procuravam algo em que se ancorar. Lábios se aproximaram, mas, não tocaram. E sim, falaram:

— Por favor, me diga. Para onde, o que for... Me diga e eu vou embora com você.

Victoria ofegou diante da intensidade do que jamais pensou ouvir. Mesmo depois de tantos anos, ela continuava incapaz de resistir ao que Cecily lhe pedia. Por fim, os olhos castanhos se abriram para a sua reação e diante da sua incredulidade, o sorriso que escurecia a sua razão se abriu, fazendo daquela casa praticamente abandonada um lar. Ela não soube o que fazer, ela ofegou e Cecily a beijou.

Um beijo de anos, um amor de uma vida.

Quando se separaram, bastou o olhar trocado para que entendessem que, mesmo naqueles Anos Loucos, elas estavam entrelaçadas. Victoria olhou para as mãos que se encontraram e beijando cada um dos nós dos dedos que amava, sussurrou:

— Paris.

Cecily sorriu e acenou freneticamente com a cabeça antes de abraçá-la e girá-la em seus braços. Victoria segurou-a como se segurasse a própria vida. As suas risadas ecoaram juntas na casa vazia, da mesma forma que foram sufocadas, juntas, no cascalho à luz prateada do luar.

O anel de noivado ficou esquecido naquela escrivaninha, assim como as escrituras. Elas partiram no trem da noite para Londres, depois de um jantar em Weston Park, com escapadelas para a noite de lua e estrelas do lado de fora. Houve um silencioso entendimento da Sra. Joan Grey que se encarregou de tranqüilizar o Conde de Bradford e sua esposa para aquela iminente viagem que suas filhas fariam.

Uma viagem que não teve retorno, só correspondências.

Elas abandonaram as instituições que as prendiam, a cidade que as excluía e o campo que as sufocava. Para muitos, elas enlouqueceram como tantos outros naqueles anos... Mas, no silêncio do quarto que dividiam, entre os sôfregos e suores de seus corpos, elas sabiam que seguiram o que acreditaram.

A Cidade Luz as iluminava, mas, eram as suas sombras que desenhavam o êxtase e a paixão. Elas sempre fugiram da luz da sociedade e agora, elas encontravam em todas as noites o amor na escuridão.

*Trecho da música "I Hear You Calling Me" de 1921, cantada pelo tenor irlandês John McCormack.


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