Torres Impotentes escrita por nukke


Capítulo 1
Único




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-Sirva o jantar assim que eu me sentar – ordenou a senhora Constança Manuel, sem me olhar diretamente mostrando todo seu desprezo.

-Sim, senhora – respondi pelo canto da boca e fui avisar às outras criadas.

Constança foi até a mesa e todos fizeram uma grande algazarra com sua chegada. Os homens ficaram de pé, como de costume, para mostrar-lhe respeito e lisonjeio.

Assim que ela se sentou fomos servir os inúmeros pratos. Não entendia porque mandavam fazer tanta comida, se no final sempre sobrava mais que a metade.

-Uma graça essa sua criada, Dom Pedro – disse o duque enquanto eu punha uma travessa na mesa. Seu rosto era bem avermelhado e tinha uma barba branca crescendo no contorno da mandíbula, de modo que as bochechas rosa ficavam pra fora. Seus olhos pequenos eram perversos e maldosos.

Senti vontade de despedaçar a travessa em sua cabeça coberta por aquela peruca branca com cachos. Mas tinha de me conter, como sempre.

-Está às ordens – respondeu o rei soltando uma gargalhada.

Eu teria ficado com muito mais raiva se não estivesse tão tensa. Minha mãe me dizia que eu devia me acostumar, que homens eram assim mesmo e que não podíamos fazer nada. Mas eu não conseguia engolir aquilo.

Minha vida e a dos meus filhos seriam decididas após aquele jantar. Eu seria entregue. E meus filhos seriam mortos também, muito provavelmente. Eu sabia que quando um dos mensageiros de Dom Pedro entrasse às pressas no castelo, a qualquer hora, estaria com a lista das que deviam ser mortas. E meu nome estaria lá.

Eu estava muito tensa. Sentia nódulos em minhas costas, elas estavam rígidas, assim como cada músculo de meu corpo. Minhas mãos, meus pés e meu pescoço não paravam de suar, aquele suor frio que nos deixa mais irritados e ansiosos.

Tinha que dar um jeito de sair assim que o mensageiro estivesse entrando, quando os guardas estivessem distraídos ordenando que ele se identificasse.

A probabilidade de aquilo dar errado era enorme, e eu sabia disso, porém, que escolha eu tinha? As outras criadas me disseram que era tudo imaginação minha, mas eu estava convicta de que tinha de fugir. Hoje.

Enquanto levava mais uma travessa me perdi em meus devaneios, pensando em tudo que poderia falhar, acabei tropeçando em meu vestido e o suor em minhas mãos deve ter contribuído para que a travessa me escapulisse das mãos e se espatifasse no chão. Todos se calaram. A mesa estava repleta de duques, lordes, príncipes. Todos eles se calaram e se viraram para me fitar com aqueles olhares impiedosos e perfurantes cheios de superioridade, deitada no chão com os restos da travessa e das comidas.

-Sua inútil! – berrou a senhora Constança, com sua voz esganiçada e seca.

As outras criadas se prontificaram a me ajudar, tentando me levantar e varrendo os cacos da travessa verde musgo com desenhos em ouro.

Eu estava em choque. Sabia que aquele erro seria motivo pra muito castigo. A não ser que eu conseguisse fugir...

Fiquei de pé e soltei um “desculpe” abafado.

-Sua crida burra! Incompetente! – insultou-me o rei, e cada nervo do meu corpo se exaltou.

Voltei para cozinha ainda ouvindo xingamentos. As outras criadas me olhavam com pena.

-Isso acontece com todo mundo – disse Narcisa tentando ser solidária e alisando meus fios ruivos.

Depois de passado o susto, voltei a me preocupar com minha fuga. Eu não havia explicado e nem contado nada aos meus filhos, eles seriam pegos de surpresa, mas não tinha outra escolha. Uma batida forte e frenética na porta da frente me fez sobressaltar. Era o mensageiro, eu tinha certeza.

-Vou pegar um vestido de mangas, estou com frio – avisei às outras criadas, como eu havia planejado. Se eu contasse pra onde eu iria elas podiam ser torturadas até contarem onde eu estava, por isso decidi manter tudo em segredo.

-Lara, não vai fazer besteira, vai? – Narcisa indagou-me, puxando-me pela mão quando eu ia me retirando da cozinha.

-Espero que não – falei às pressas, soltando sua mão e abraçando-a. Ela suspirou. Eu realmente esperava que o que eu estava pestes a fazer não fosse besteira.

-Por favor, me prometa que só trocar as vestes – ela disse por cima de meu ombro.

Desvencilhei-me dela lançando-lhe um último olhar de desculpas e me dirigi rapidamente à porta do salão de entrada.

Estava muito escuro e o único som naquele salão eram os dos meus passos e da minha respiração. Ouvi vozes abafadas lá de fora. Os guardas estavam mandando o mensageiro identificar-se.

Abri lentamente a porta que ficava ao lado da principal. Aquela sensação de estar sendo observada, de ser pega em flagrante me tomava. Meus pêlos da nuca estavam arrepiados e eu sentia uma incrível vontade de olhar pra trás, mas o medo me impedia. O medo de que tivesse alguém atrás de mim. Coloquei a mão no peito tentando acalmar meu coração com medo que alguém o ouvisse de tão forte que estavam seus batimentos.

Passei pelos guardas sem respirar. Eles estavam de costas pra porta por qual eu passei, interrogando o mensageiro que chegara sem prévio aviso.

Corri para floresta. Corri segurando meu vestido de algodão branco para não tropeçar nele. Minhas pernas corriam quase que sozinhas, meu corpo parecia saber que estava em perigo. Nunca corri tão rápido em toda a minha vida.

Na floresta densa e escura os galhos chicoteavam meu rosto, enroscavam em minhas roupas arrancando pedaços dela. O vento frio da noite golpeava minha face fervente e rubra. Meu rosto sempre ficava assim quando eu corria. Tropecei duas vezes em galhos e raízes, ficando de pé em dois tempos. Eu esperava, a qualquer hora, ver um soldado ou vários deles tapando meu caminho, me prendendo enquanto o rei me lançava olhares de censura, esbanjado toda sua autoridade com as mãos para trás, o que o deixava mais imperial. Imaginar essa cena me fez tremer de medo. Eu tinha de chegar à minha casa, e rápido.

Então as imagens vieram à minha mente de novo junto com uma forte dor de cabeça, pensei que iria desmaiar.

-Trouxe a lista, vossa majestade – ouvi a voz de um homem em minha mente, e a imagem de um pergaminho sendo entregue emergiu.

-Lara Amaral? Não é uma de nossas criadas, querida? – a voz do rei ressoava em minha mente. Eu ofegava e piscava tentando me livrar das imagens e vozes.

-É aquela criada imbecil! – a voz enojada da rainha ecoou. Vi seu pulso fechado batendo com força na mesa de madeira e uma taça estremecendo com o impacto.

-Ela estava aqui há pouco! – disse o rei.

-Se me permitem, ela foi colocar uma roupa mais quente – a doce voz de Narcisa surgiu. As vozes eram tão perto que parecia que eles estavam ali na floresta comigo.

E então acabou. As visões, as vozes e a dor na cabeça cessaram e me concentrei em correr mais e mais.

Cheguei finalmente ao conjunto de pequenos chalés onde os criados moravam. Abri a porta num estrondo e entrei em minha casa.

Emily, para minha surpresa, estava sentada na sala, acordada. Ela me olhou assustada com seus grandes olhos verdes transparecendo o medo. Minha imagem devia estar horrenda. Eu ofegava descontroladamente, meu rosto estava arranhado e cada arranhão ardia por conta do suor. Minhas roupas sujas e rasgadas pioravam a situação.

-Mãe?! – ela ficou de pé.

-Pegue seu irmão rápido!

Ela correu até o quarto enquanto explicava:

-Eu não conseguia dormir, eu estava tendo pesadelos. Mas acordada. Estou louca, mamãe? – ela me indagou entregando-me o pequeno Felipe que me fitava com olhos arregalados, sem entender.

-Eu tenho o mesmo. Rápido, temos que ir – a puxei pela mão e corremos floresta a fora. Felipe começou a chorar em meu colo, abraçado a mim.

Enquanto descíamos correndo o relevo onde o castelo estava, tentando chegar ao riacho eu ouvi de novo:

-ENCONTREM-NA! – o rei berrava em minha mente.

Ele havia descoberto que eu não estava mais no castelo. Cavalos. Eu via cavalos. Muitos cavalos e homens correndo pela floresta.

-O que fizemos?! – Emily perguntou-me assustada. Ela estava morrendo de medo, eu podia sentir.

-Nada, não temos culpa – falei pausadamente, eu estava ofegando muito – Mas eles não entendem que não tivemos escolha para ver o que vemos.

Cavalos. Ouvi som de cavalos galopando novamente, mas dessa vez eu sabia que não era só em minha mente. Eles estavam muito próximos.

Chegamos ao riacho finalmente ao som dos cavalos galopantes a poucos metros atrás de nós. Do outro lado, na aldeia da minha irmã, estaríamos a salvo. Mas então um estampido partiu de algum lugar e senti algo me atingindo. Depois o solo úmido que era banhado pelas águas calmas do riacho foram se aproximando de meu rosto rapidamente. Consegui segurar Felipe de forma a protegê-lo. Emily soltou um grito agudo de horror assim que meu corpo caiu. Tudo parecia ter acontecido em horas, mas foram apenas alguns segundos.

-Corra! Emily, corra! – eu berrei estendendo Felipe para que ela o pegasse. Ela o fez e eu dei um ultimo beijo nos dois. Emily relutou antes de ir, hesitante em me deixar ali sangrando. Fora o som de um tiro que eu ouvira.

-CORRA! PARA A CASA DE SUA TIA! CORRA! – ordenei incapacitada de me levantar do chão.

Ela obedeceu, olhando pra trás várias vezes antes de sumir na mata escura. Seus olhos estavam assustados e brilhavam com lágrimas.

Os sons dos cavalos agora estavam muito próximos. Ali, deitava no chão, tomada pelo dor do tiro em minhas costas, pude ver o castelo em cima do morro. A lua redonda estava bem acima dele. Então eu ri, parecia ridículo diante da situação, mas eu ri. Ri por notar que não adiantavam quantos eles quisessem matar para impor suas vontades, quantas como eu seriam punidas por terem dons que eles não tinham. Quantos eles acusariam por heresia, de trair a Igreja Católica, de bruxaria, feitiçaria, quantos empregados seriam contratados para construir castelos como aquele, nunca, nunca eles conseguiram alcançar a lua. E, aliás, quem pensamos que somos para termos algo que o rei cobiça e não consegue ter nunca? - me refiro às visões - Pensei com ironia.  Não importava. Nunca aquelas torres mandonas, como se fossem dedos apontando para a face da lua, jamais conseguiriam encostar-se ao orbe lunar, não importava quantos tentassem, seriam todas tentavas malogradas. E imaginar os rostos frustrados deles quando notassem aquilo me fez sorrir.

Aos poucos minha visão foi escurecendo. Ouvi os sons de vozes e cavalos ao meu redor, alguns se perguntando se eu estaria morta. E sorri de novo ao imaginar as caras decepcionadas ao saberem que meus filhos estavam salvos, e que não poderiam humilhar-me mais diante de toda a população enquanto assistiam a meu corpo arder em chamas. Eu estava morrendo, e de uma forma indolor, se comparado ao fogo. E sabia que meus filhos estavam salvos, embora me entristecesse saber que eu deixaria esse mundo com apenas 22 anos e dois filhos órfãos com apenas sete e um ano de idade. Mas eles estariam bem com minha irmã, e ela cuidaria deles como se fossem seus, eu sabia. Lúcia não podia engravidar, seria uma enorme alegria para ela tê-los. Notei com tristeza que Felipe não teria nenhuma recordação minha, somente os lockets em forma de coração com minha foto dentro que dei a eles. Mas eu sabia que Emily lhe contaria como eu o havia amado durante o pouco tempo que esteve comigo, e como dei minha vida pelos dois. Minha irmã com certeza mostraria a Felipe que um dia havia tido uma mãe que o amara cegamente, amor cujo ela tentaria dar a eles igualmente.


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