Uma canção de Sakura e Tomoyo: beijos e despedidas escrita por Braunjakga


Capítulo 22
Um novo sol, uma nova terra




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Barcelona, Catalunha

12 de setembro de 2002

 

Capítulo dedicado à Tabarnia. Visca Tabarnia lliure!

 

I

 

Já era de manhã, perto das nove horas. Como era o primeiro dia de aula, tinha muitos estudantes entrando e saindo do metrô. Muita gente também estava indo para o trabalho ou alguma faculdade.

Tomoyo entrou em um vagão na estação Sant Andreu, linha um vermelha do metrô, fez uma baldeação na linha três verde e desceu na estação "les corts". Tudo isso levou quarenta minutos e dezoito estações, assim que desceu do ônibus em frente à estação Sant Andreu. Estava cansada, agoniada e tinha muito medo de chegar na escola atrasada, mas pelo visto, teria que sair mais cedo de casa amanhã se quisesse chegar no horário. As muletas e o braço engessado reduziam muito sua mobilidade, só no final de outubro estaria livre daquilo.

Ela nunca viveu numa grande cidade antes. Já tinha feito o mesmo trajeto com a mãe antes, pena que não foi em um horário de pico como aquele. Tem coisas que a gente só aprende vivendo. 

No caminho da escola, ficava o imenso estádio do Camp Nou. Além daquela armadura vermelha como sangue, uma das heranças de seu pai foi uma velha camisa do FC Barcelona, mandante do estádio. Qualquer dia desses viria ver o time jogar para ver se era bom mesmo, como todo mundo falava.

Andou mais dez minutos e chegou na porta da escola, atrasada. Quase nenhum aluno estava mais lá, todos já tinham entrado nas salas. Acelerou as muletas e nem se importou de amarrotar ainda mais o terno cinza, nem a saia xadrez bege mais do que a viagem no metrô lotado tinha feito.

— Mas que droga! Mas que bela forma de começar o segundo ciclo do secundário! – reclamou a moça. 

O inspetor da escola, um senhorzinho de boina sentado num banco, quase barrou a costureira, mas como ainda era o primeiro dia de aula e muitos professores ainda não tinham entrado nas classes, ele autorizou.

— ¡Muchas gracias, señor! (Muito obrigado, senhor!) – disse Tomoyo.

— Es moltes gràcies, petita dona! Es així que parla tothom! Tingui un bon dia! (É "moltes gràcies" jovenzinha! É assim que fala todo mundo! Tenha um bom dia!) – respondeu o homem sério, como se não tivesse gostado daquele bom dia.

Tomoyo prosseguiu pelos corredores com uma sensação esquisita na barriga, tentando imaginar o motivo da raiva do inspetor. Sabia que estava em uma terra onde não conhecia nada e nem ninguém, mas aquele jeito de falar espanhol do povo de Barcelona era muito esquisito. Quando se matriculou, falou em espanhol perfeitamente com a diretora do colégio, fez a prova de admissão na língua de Cervantes, mas, em todo o canto que ia e falava espanhol, todo mundo olhava de cara fechada para ela e para a mãe. 

"Puxa vida, espero que aqui na escola eles sejam mais compreensíveis", pensou, mas só por um segundo apenas. Todo mundo nos corredores falava aquela forma esquisita de espanhol. Parou de pensar e lembrou-se que tinha que acelerar para a classe, já era nove e vinte da manhã e a professora já devia estar na aula. Levaria uma bronca merecida, mas jurava colocar o despertador para apitar meia hora antes.

Subiu as escadas com dificuldade, mas finalmente encontrou a sala. Os corredores estavam completamente vazios.

"Droga! Lembre-se Tomoyo: um atraso só não faz mal…"

Bateu a porta da sala com a maior cara de pau e sorriu de olhos fechados. A professora, uma mulher de cabelos curtos iguais aos da sua amiga Rika, abriu a porta e perguntou:

— Bon dia, Quin és? (Bom dia, quem é)

— Quin… és… ? Ah, buenos días, soy la nueva estudiante de esta institución. ¡Mi nombre es Tomoyo Daidouji! ¿Ustedes hablan un castellano muy distinto aquí, no? (Quem é, ah, bom dia, sou a nova estudante dessa instituição. Meu nome é Tomoyo Daidouji! Vocês falam um castelhano esquisito aqui, não?) – disse a costureira. Os alunos soltaram uma risada estridente que deu para ser ouvida do corredor.

— Profe, ella no sap parlar català! (professora, ela não sabe falar catalão!) – comentou um aluno. Outra sonora risada foi escutada na sala de aula. A professora chamou Tomoyo educadamente para o centro da lousa e apresentou a garota:

— Nois i noies, avui tenim una nova companyia a la nostra classe. Ella ha vingut de Japó. (Rapazes e moças, hoje temos uma nova compania na nossa sala. Ela veio do Japão).

Todo mundo ficou boquiaberto. A professora continuou:

— Ella ha fet tots els test de admissió i ha passat amb gran èxit. Podría encara fer el bachiller, però per no conèixer nostra llengua, ha tingut dificultats. (Ela fez todas as provas de admissão e passou com sucesso. Podia até mesmo passar pro ensino médio, mas por não saber nosso idioma, teve dificuldade). – A professora voltou-se para a morena – Si us plau, Tomoyo, repeteix amb jo: Meu nom és Tomoyo Daidouji, sóc de Japó i agraeixo per començar un nou any amb vosaltres! Tinc tota la certesa que serem amics al llarg del any. (Por favor, Tomoyo, repita comigo: Meu nome é Tomoyo Daidouji, sou do Japão e sou grata por começar um ano novo com vocês! Tenho certeza que seremos amigos com o tempo).

— Meu nom és Tomoyo Daidouji, sóc de Japó i agraeixo per començar un nou any amb vosaltres, tinc tota la certesa que serem amics al llarg del any. (Meu nome é Tomoyo Daidouji, sou do Japão e sou grata por começar um ano novo com vocês! Tenho certeza que seremos amigos com o tempo). – disse a garota de olhos púrpuras. Todo mundo ovacionou a garota por falar em catalão perfeitamente, sem sotaques. Ela já ouviu muito a língua durante os quase quinze dias que estava naquela terra.

— Veus? Parla català perfectament! Ara jo! Meu nom és Dolors Montserrat, sóc la seva professora de matemàtiques. (Tá vendo? Você fala catalão perfeitamente! Agora eu! Meu nome é Dolors Montserrat, sou sua professora de matemática.) – a mestra sorria para ela. Diante daquela recepção calorosa, Tomoyo tentou arriscar em catalão e devolveu o agradecimento.

— Molt… agraïta, professora?

Todo mundo riu de novo.

 – No és preocupi, no es preocupi, encara aprendrà molt amb fermesa i voluntat… Trobarem un lloc per vostè i mentrestant, escolta i observa… (Não se preocupa, não se preocupa! Ainda você vai aprender muito com firmeza e vontade e, enquanto isso, escute e observe.) – A professora Dolors ficou vasculhando na sala um lugar para ela até que encontrou uma carteira vazia no fundo. – Ah! Segui al costat de la meva neboda, Marcela, a la esquerra de la finestra. (Ah, sente-se ao lado da minha sobrinha Marcela, na esquerda da janela.) – A professora apontou para uma menina de cabelos castanhos e olhos verdes que era a cara de Sakura, sentada na janela. Tomoyo chegou mais perto e viu que a menina era um clone de Sakura. Tremeu toda, assustada. Marcela reparou e olhou para ela séria, com curiosidade. Por incrível que pareça, a morena de cabelos longos ficou mais aliviada. Sakura não era séria de assustar como Marcela. Se fosse Sakura, ela teria se apresentado soltando um sorriso enorme no rosto. Sentou-se olhando de esguelha para a garota, mas não tanto para que ela desconfiasse. A professora continuou:

— Algú aquí saps resoldre una equació lineal? (Alguém aqui sabe resolver uma equação linear?).

 

II

 

O alarme da escola tocou ao mesmo tempo que o relógio em cima do quadro negro marcou cinco horas. Tomoyo suspirou aliviada. Aquele dia de aula foi muito cansativo e não via a hora de acabar. Sentiu que tinha aprendido espanhol para nada no Japão. Se soubesse, já teria feito um curso de catalão na terra natal para não passar estresse. 

O pior foi na hora do intervalo. Um monte de gente veio até ela, curiosos, mas ela apenas sabia responder em espanhol. Um por um foram se afastando até que os poucos que ficaram usaram o inglês para tentar falar com ela. Nunca viu nada tão absurdo assim na vida, mas ela cedeu e conversou em inglês com eles. Oficialmente, estava na Espanha, mas na prática aquilo era outro país.

— Pessoal, amanhã quero ver resolvidos os exercícios do livro, entendido? – perguntou a professora Dolors.

— Sim senhora! – responderam os alunos. 

Assim que todos saíram, Tomoyo chegou na professora e perguntou, em inglês para não passar perrengue:

— Teacher, por que todo mundo aqui se recusa a falar espanhol? Eu estou na Espanha, correto?

— Tomoyo, vem cá… – a professora puxou a menina para um canto da mesa, o rosto extremamente sério, como se a garota tivesse falado um sonoro palavrão. – Saiba que aqui, nosso povo é muito unido. Falar castelhano é falar a língua dos opressores!

— Como assim opressores, se todo mundo está andando livre na rua?

A professora começou a ficar constrangida com as perguntas dela.

 – Tomoyo, você é jovem ainda, mas você já vai ver. Os castelhanos nos subjugaram há quase 300 anos… Até hoje somos um povo dominado!

— Dominados por quem?

A professora começou a fazer cara feia de impaciência para ela.

— Falar català é um ato de resistência, é desobediência civil, é direitos humanos… Você entende? Se lembra da Rosa Parks no ônibus?

Tomoyo fez sim com a cabeça. A "Teacher" continuou:

— Vai lá e pesquisa se no estado espanhol o català é língua oficial, vai lá ver e você vai entender nossa luta… – A professora afagava carinhosamente a mão dela, olhando-a severamente. Era como se a costureira fosse apanhar ou coisa pior se insistisse em tocar naquele assunto.

 

III

 

Os corredores da escola estavam mais vazios e silenciosos. Alguns poucos alunos ficaram, conversando com os colegas ou colocando o assunto em dia com algum professor.

Tomoyo andava por aqueles corredores quando, de repente, sentiu uma mão puxando a manga de seu terno. Era Marcela, falando em espanhol com ela.

— Vem cá, preciso falar com você… – O clone de Sakura puxou a morena até o pátio da escola. As duas se sentaram em uma mesa do refeitório ao lado da janela, uma na frente da outra. Agora dava para ver Marcela Montserrat em detalhes, nas pequenas diferenças que a separava da cardcaptor.

A luz do sol deixava o cabelo castanho dela com tonalidades mais clara, mais loiros. O cabelo de Sakura era um castanho mais opaco, mas dava para ficar mais claro quando ela passava secador no cabelo. A ponta dos cabelos curtos era curva no final e se voltava para dentro, os cabelos de Sakura eram pontudos e retos nas pontas. O nariz de Marcela era redondo igual ao dos árabes, o de Sakura era pontudo. De resto, as duas eram muito parecidas fisicamente. Os olhos verdes puxados, a altura, os pares de fios de cabelo na copa, que se estendiam até virarem duas anteninhas, o tom de pele, até as medidas eram iguais.

Talvez, a única diferença fosse no tom seco de voz e na personalidade séria de Marcela. Nesse aspecto, uma era o oposto da outra. Enquanto analisava Marcela, a moça de olhos púrpuras percebeu que a estudante na sua frente olhava para um ponto fixo na sua testa, como se estivesse tentando vasculhar seus pensamentos.

— O que você quer falar comigo, Marcela?

— Pensa que eu não reparei você me olhando, hein? Toma cuidado com isso aí que eu não curto essa tua praia não! – respondeu Marcela, seca e direta.

"Ora, ora, estou começando meu primeiro dia de aula com o pé esquerdo mesmo…", pensou.

— Você disse alguma coisa sobre começar a aula com o pé esquerdo? – indagou Marcela.

— Ora, eu não sabia que eu tinha falado tão alto!

— Não falou… Mas não fica pensando que gente como eu existem aos poucos no mundo… – Marcela levantou-se da cadeira e ficou observando o sol na janela. – Sakura é o nome dela, não é? Eu entendo… 

— Você não entende não… Não ia dar certo mesmo… – Tomoyo baixou os olhos e ficou olhando para a mesa. Ela entendeu que Marcela tinha poderes mágicos.

— Vai aparecer muita pessoa na sua vida ainda… Mas esse não era o assunto que eu queria falar com você. – Marcela tornou a sentar, olhando para Tomoyo. A morena levantou a cabeça. 

— E o que você queria me dizer? 

Marcela colocou uma pilha de livros didáticos em cima da mesa. Todos eles eram módulos de cursos de idiomas para aprender catalão.

— Acho melhor você começar a aprender como o pessoal fala por aqui, se não, você vai ter problemas…  

— Eu não entendo, Marcela! Eu não entendo! Eu estou na Espanha, não estou?

— Acho melhor você também tirar essa ideia de que tá na Espanha… Aqui é a Catalunha e é melhor você se acostumar com isso… 

Tomoyo ainda olhava contrariada para os livros e para a menina na sua frente. Marcela prosseguiu:

— Faz muitos anos que o governo daqui vem construindo a ideia de que aqui é um país diferente, que a gente é oprimido, que a gente tem que ser independente pra ter liberdade. E o povo ainda continua votando neles… Temos muitos hospitais sem uma máquina de câncer, mas temos dinheiro todo ano pra fazer manifestação na rua… Vai lá entender… 

— Então, não posso falar espanhol aqui porque o governo manda, é isso?

— Sim. 

— Espera… 

— Você consegue lidar com o governo? 

— Não, mas… 

— Ou você aceita o que o governo fala ou você cai fora daqui.

— Mas...

— Isso é, se não te expulsarem antes.

Tomoyo congelou. Marcela prosseguiu:

— Se você não obedece, a sua vida fica difícil aqui, você me entende? – Marcela segurou as mãos da menina, preocupada. Tomoyo entendeu o ponto de vista dela com resignação. – Eles começaram rindo de você aqui, Tomoyo, daqui a pouco, vão começar a te olhar com cara feia até te arrancar da escola… Daí você não vai estudar em canto nenhum daqui… 

— Nossa, que horror!

— Continua falando assim que você vai ver… 

Tomoyo sorriu timidamente e colocou os livros na mochila.

— Que negócio de louco… Parece uma ditadura isso aqui onde ninguém pode falar nada, pensar nada… 

— Pensa que nós não somos resistência? Toda ditadura têm seus furos… Eu não estou falando em espanhol com você agora?

As duas gargalharam, Tomoyo ficou mais aliviada, e as duas se levantaram das cadeiras. Já estava ficando tarde.

— Eu gostei de você… Eu vou te ajudar, tá certo? – Marcela sorriu pela primeira vez. Até mesmo no sorriso, as duas eram muito parecidas. Um brilho surgiu no olhar de Tomoyo só por se lembrar de Sakura… – Mas não vai pensando que eu sou substituição dela não! – … para logo desaparecer com a bronca de Marcela.

— Tem razão, a Sakura era mais gentil, você parece aqueles burros que quando empacam não se levantam mais! – brincou Tomoyo.

— Ora sua! – Marcela tentou dar um cascudo em Tomoyo. A morena desviou e as duas saíram sorrindo da escola. Quem sabe, aquela estadia naquele país estranho não fosse tão ruim assim.

 

IV

 

Chegando no pequeno apartamento onde morava, Tomoyo debruçou-se sobre os livros de catalão que Marcela emprestou. Nessa hora, sua mãe escancarou a porta com tudo, assustando-a.

— Filhota, eu corri na livraria pra comprar esses livros pra gente! A moça da padaria está a ponto de me matar! – disse Sonomi, colocando a pilha de livros com tudo sobre a mesa de jantar. Eram os mesmos livros que Marcela havia emprestado para ela. 

— Que bom que ainda deu tempo de me livrar dessa encrenca toda! – disse Tomoyo, sorrindo de olhos fechados. 

 

Continua… 


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