Doce Promessa escrita por Nah


Capítulo 7
Sete


Notas iniciais do capítulo

O que vocês estão achando?? ♥
Boa leitura!



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As rodas de uma carruagem protestaram contra o cascalho da Rua Primeiro de Março, unindo seu som ao das conversas altas, trotar dos cavalos e vendedores ambulantes. Naquela manhã abafadiça de sexta-feira, o comércio estava frenético. De um lado era possível encontrar alfaiataria, sapateiro, armazéns de secos e até floriculturas. Do outro lado, mulheres e homens ocupavam a calçada em frente à cafés e charutarias, jogando conversa fora e espalhando a fumaça do tabaco que se misturava ao aroma das perfumarias. Dois homens se cumprimentavam e uma senhora balançava seu lenço em direção à uma carroça que partia quando as De Castro passaram por eles.

Matilda e Isabel seguiam na frente, braços entrelaçados e suas conversas sem fim. Logo atrás Joana caminhava despreocupadamente, acompanhada de Francisca. A senhora De Castro não se considerava uma entusiasta das compras e passeios pelas ruas comerciais. Ela tentava acompanhar toda a movimentação a sua volta, lhe provocando uma expressão de estranheza que roubou uma risada de Joana, no exato momento em que ela puxou o braço de sua mãe para evitar que trombasse com um comerciante de lãs.

— Esse lugar me causa dor na cabeça. – Francisca disse, ajeitando seu chapéu de seda verde-musgo que quase escapara.

— Então vamos voltar para casa.

Joana tentou, mas sua mãe nem pareceu considerar a possibilidade.

— Vamos conseguir um vestido para você. Esse lugar pode me causar dores na cabeça, mas os lamentos de suas irmãs sobre esse jantar me causam muito mais.

Assistindo Isabel e Matilda cumprimentarem cada sujeito que cruzavam o caminho delas em direção aos ateliês de moda, foi a vez de Joana entrelaçar o braço ao de sua mãe. Apesar do discreto sorriso nos lábios, Joana não estava muito contente. A última coisa que queria era sair naquele calor escaldante para provar vestidos. Some isso ao fato de que aquele jantar em nada a animava. Só de imaginar ter que aturar Carlota e toda a sua estirpe esnobe a fazia querer resmungar mil vezes. Joana se lembrava muito bem dos jantares fornecidos pelos Tavares, a luta incessante para se vangloriar e ela simplesmente não entendia por que fora a única convidada.

— Por que a senhora acha que não convidaram todos nós dessa vez?

— Iolanda e o barão apreciam os seus jantares. São tantos oferecidos ao longo do ano que mal posso contar. Mas esse jantar em especial, eles apenas convidam quem realmente os interessa. Em outras palavras, os excessivamente ricos.

Joana franziu o cenho.

— Quando foi mesmo que entrei nessa categoria?

Apertando o braço da filha, Francisca sorriu.

— Seu pai e eu nunca demos muita importância a esse jantar. Afinal, são os negócios do seu pai a única coisa que faz aquela família nos considerar com amizade. Quanto ao fato de você ter sido convidada, bem... Eu também não entendo. Você fez alguma coisa para impressionar aquela família?

— Enganei Iolanda com histórias sobre petit fours? — Joana mordeu o lábio e quase caiu na risada.

Francisca arregalou os olhos para ela.

— Você o que? Como... Quer saber, não me conte. A propósito, irei pedir a filha de Prazeres que a acompanhe esta noite.

— Não preso de uma dama de companhia, mãe.

Francisca bufou.

— É claro que precisa. Não vamos alugar uma carruagem para você ir sozinha e...

— Joana! Mamãe!

— Vocês precisam ver isso.

As duas irmãs pararam em frente a uma loja, mal conseguiam desviar os olhos do que viam. Joana não esperava se impressionar tanto assim, mas até ela ficou sem palavras quando finalmente as alcançou. Ateliê de Madame Olímpia estava escrito sobre a vitrine mais bonita que as quatro mulheres já haviam visto. Duas portas cerradas por grossos anteparos de vidro guardavam fascinantes vestidos, meticulosamente projetados para atrair olhares e chacoalhar moedas em retículas. Flores silvestres foram espalhadas aos pés dos vestidos, o contraste perfeito com as cores vivas dos tecidos, dava à cena a aparência de uma celestial chuva de pétalas. Joana se inclinou para analisar uma delicada profusão de rendas em um vestido de passeio, quando fora arrastada para dentro do lugar por Isabel.

E se ela achava que não podia ficar melhor, dentro da loja era uma completa explosão de cores. Rosa, roxo, vermelho. Xales de crepe, luvas rendadas e chapéus com fitas. E, ah! Os vestidos! De passeio, noturnos, de todas as cores possíveis. Pilhas de tafetá, cetim e sarjeta eram apenas uma parte dos tecidos expostos ali.

— Que lugar incrível! – Matilda suspirou, deslizando a mão por um luxuoso vestido de baile.

— Ora, muito obrigada!

Uma voz feminina surgiu detrás do balcão de madeira, conseguindo a atenção delas. Saindo de lá, uma mulher de cabelos escuros e linhas de expressão que denunciavam sua idade sorria astutamente.

— Madame Olímpia, ao dispor das senhoritas. Como posso ajudar damas tão belas?

Ela circulou pelo lugar e em volta delas, com uma graça e altivez que confundia e encantava Isabel e Matilda – até mesmo Francisca. Joana apenas a observava, se perguntando se aquela postura tão ereta era por conta do espartilho ou era seu modo de demonstrar elegância e superioridade. Mas seus pensamentos foram para longe quando Olímpia finalmente passou em frente a ela e parou.

— Mas olhe para esses traços! – Olímpia segurou o rosto de Joana, analisando como se estivesse diante de um de seus sapatos exibidos nas prateleiras. – Esses olhos. Belíssima!

Joana começava a inclinar-se para longe das mãos da mulher quando Isabel se adiantou, a agarrando pelos ombros.

— É para essa belíssima mesmo que precisamos de um incrível vestido de noite.

Sem precisar ouvir mais nada, Olímpia deu uma olhadela para trás, onde uma pequena mulher grisalha irrompeu e começou a girar Joana, tirando medidas e repuxando aqui e ali.

— Isso tudo não é necessário. Preciso do vestido para hoje à noite.

Olímpia a encarou, com um sorriso de alguém que parecia ter sido desafiada.

— Bem... – ela ergue a mão a sua volta. – Sintam-se a vontade então.

Deixando suas irmãs e sua mãe fazerem o trabalho, Joana apenas se sentou em um sofá posicionado no centro da loja. Observou Isabel desaparecer entre os tecidos, Matilda e Francisca balançarem enormes vestidos para lá e para cá. Era até divertido de se assistir, mas quando suas costas tocaram o estofado, a mente de Joana estava distante. O que será que estava acontecendo na biscoutaria? Algum problema teria surgido? Algum cliente insatisfeito? Talvez ela conseguisse dar um jeito de sair dali. De fininho, quem sabe as irmãs nem notassem.

— O que acha desse, Joana?

Isabel surgiu, carregando consigo um vestido de sarja carmesim.

— Sim, sim. Perfeito. – mas Joana mal dera uma olhada e Isabel voltou a sua busca, resmungando.

E ainda tinha aquele inglês. Sentindo o maxilar tenso, Joana cruzou os braços. Ele muito provavelmente estava agora na cozinha da biscoutaria, construindo torres de ferro com um sorriso de triunfo no rosto. Não, ele não estaria sorrindo. Joseph Fretcher não apreciava um bom sorriso. Era muito mais fácil imagina-lo com uma carranca no rosto do que com um daqueles raros sorrisos que esquentavam o rosto dela. Assim como os olhares, a mão em suas costas duas noites atrás que... Espera, no que ela estava pensando?! Talvez ela mesma pudesse jogar aqueles pedaços de ferro para fora de Recife. Pensando bem, até que não era uma má ideia. Na calada da noite, quem sabe?! Discretamente, assim como os constantes encontros dos dois. Encontros guardados em segredo na biscoutaria, que a irritavam e lhe causavam arrepios na mesma proporção que...

Apertando os dedos contra as têmporas, Joana tentou não bufar. O que estava acontecendo com sua cabeça? Seus pensamentos estavam tão embaralhados que ela agradeceu por estar sentada, se não teria ficado tonta. Com um suspiro resignado, ela virou a cabeça, para encontrar o olhar inquiridor de Olímpia. A modista sorriu, como se compartilhasse do segredo de Joana. Desapareceu em segundos, retornando com algo púrpura e escuro nos braços.

— Levanta-se, querida. Atrás daquela cortina fica um vestuário. – Olímpia entregou o vestido para Joana. – Prove.

— Na verdade, eu...

— Prove.

O olhar que Olímpia lhe lançava deixou Joana intrigada. Resignada, ela caminhou para o lugar, contando com ajuda de Matilda para experimentar a peça. Abrindo a cortina novamente, encontrou Isabel e Francisca sentadas no sofá que estivera antes, esperando com ansiedade. Ao lado delas, Olímpia permanecia sentada com fineza, tentando esconder um sorriso por trás de uma xícara de chá. Junto com a imagem delas, a expressão de surpresa.

— Joana! Minha nossa!

— Por que esses rostos?

Matilda, que não parara de sorrir um segundo, segurou Joana pelos ombros para gira-la em frente a um espelho. Encarando seu reflexo, Joana ficou sem palavras pela segunda vez na mesma manhã. O deslumbrante vestido lhe servia com um amplo decote, de um ombro ao outro com uma grande renda bordada com minúcias floridas que lhe tocavam até os cotovelos, para apertar na cintura e então abrir em uma longa saia drapeada que bastava um mínimo movimento para esvoaçar. A luz do dia que entrava pela vitrine fazia o tafetá ganhar vida com o brilho discreto e aquele era o vestido mais lindo que Joana já vestira. Transmitia elegância e a pele exposta dos ombros e pescoço dava o ar sensual ao conjunto.

— Você está incrível, filha.

— Acertei em cheio, não acertei?

Olímpia já estava de pé atrás de Joana, encarava sua obra através do espelho. Olhou diretamente nos olhos de Joana, pareceu compartilhar mais um segredo. Então ergueu uma delicada joia, prendendo em volta do pescoço de Joana.

— Tenho certeza que irá capturar a atenção de um bom partido esta noite.

Joana bufou, enquanto deslizava as pontas dos dedos pela saia.

— Não tenho intenção nenhuma de capturar ninguém.

E por algum motivo o inglês surgiu em sua mente. Joana obrigou-se a acreditar que fora apenas porque a ideia de captura-lo e o mandar de volta para Londres lhe parecia muito tentadora.

Ela levantou o olhar, encontrando mais uma vez o reflexo do sorriso perspicaz de Olímpia.

— É mesmo? – dessa vez a modista quase sussurrava. – Pois eu sei muito bem reconhecer a feição de alguém que está profundamente intrigada por outro alguém.

Sem se conter, Joana engasgou em horror.

— O que aconteceu, Joana? – Isabel quis saber, tentando espiar por trás das duas mulheres em pé a frente do espelho.

— Nada. Eu... me engasguei com a beleza desse vestido. – que desculpa horrível! E agora ela teria que encarar o sorriso de vitória da modista. Não que ela houvesse acertado na sua afirmação, de forma alguma. – Mas deve ser caro demais para levarmos.

Francisca fez um movimento de desdém com a mão, já se dirigindo até o balcão. – Não se preocupe com isso. Vamos levar.

— Ótimo!

Para alguém tão ferrenha, Joana aceitou com prontidão, correndo para retirar o vestido. Ela só queria sair daquele lugar, pensou, o rosto esquentando. Joana desejou que fosse pelo calor.

As De Castro começaram a deixar o local, um comentário e outro sobre o encanto do lugar e Joana olhou mais uma vez Olímpia. A mulher estava novamente sentada no sofá, sorrindo para ela.

— Volte sempre, querida.

Joana duvidada seriamente que isso acontecesse. Não lembrava a última vez que se sentira tão desconcertada, como se houvesse sido pega em flagrante cometendo um ato vergonhoso. Como aquela mulher conseguira ler as expressões dela, em tão pouco tempo? E, pior ainda, o que estava estampado no rosto de Joana? Argh! Era tudo culpa do inglês.

Sua inquietação apenas começou a suavizar quando avistou a biscoutaria. Pronta para dar meia volta, ela quase tropeçou quando Francisca lhe segurou pelo braço.

— Nem pense nisso.

— Preciso ir na biscoutaria.

— Vamos deixar a biscoutaria de lado por hoje, está bem?

Joana a olhou como se lhe tivessem insultado. Respirando fundo, Francisca não cedeu e Joana não teve nenhuma chance, passando direto em direção ao casarão. Dentro da biscoutaria, não havia nenhum cliente descontente ou um biscoito sendo desperdiçado, como imaginava Joana. Tudo corria normalmente, com discretas conversas, grandes encomendas e cafés próximos ao meio-dia.

Sentindo suas costas reclamarem pelo tempo sentado, Manoel levantou-se de sua mesa no escritório da biscoutaria. Percorreu sem pressa o caminho até a cozinha, para encontrar Joseph dando instruções a um dos funcionários. Sem cerimônias, ele encontrou uma cadeira para sentar, a bengala entre os joelhos lhe servia de apoio para as mãos enquanto observava o movimento de seu negócio. O peito quase inflava de orgulho, ele pensou. As coisas corriam bem demais. O número de clientes fiéis só aumentava, a biscoutaria nunca estava vazia e a todo lugar se ouvia um comentário sobre ela. Seus funcionários não lhe causavam problemas e ele tinha uma perfeita carta na manga: o homem a sua frente.

— Então, Sr. Fretcher, como andam as minhas máquinas?

Joseph não olhou para ele enquanto sentia suas mãos se fundirem ao carvão que depositava na fornalha da primeira máquina a vapor.

— Mostrarei em alguns minutos. E, mais uma vez, é Joseph.

Apesar da expressão séria e absorta, Joseph tinha o coração acelerado pela euforia, como ficava sempre que construía algo. Manoel soltou um risada prazerosa.

— Gosto de como é rápido e comprometido com o seu trabalho. Acho que temos mais coisas em comum do que imaginávamos, o que acha, Joseph?

Manoel se permitiu mais uma risada, provocando apenas um pequeno sorriso em Joseph, que não tinha tanta certeza quanto àquela afirmação. Foi quando um pensamento lhe ocorreu, o fazendo parar por um momento.

— Não tanto quanto o senhor tem coisas em comum com a sua filha.

O sorriso de Manoel desapareceu, dando lugar a um resmungo.

— Espero que não esteja falando sobre Joana.

— É sobre ela exatamente.

Mais um resmungo.

— O que quer dizer com isso?

Joseph levantou-se, deixando uma pinça na mão de um funcionário que ele não recordava o nome. Apenas o nome da mulher que surgira a sua frente lhe veio à cabeça. Dona Aurélia sorria brandamente, entregando a ele uma xícara de chá.

— Uma xícara de chá quentinho para o senhor. Imagino que o prefira ao café.

O sorriso de Joseph fora um pouco maior desta vez, mesmo que sem durar mais que um segundo, para a mulher de cabelos quase totalmente brancos que insistia em o paparicar.

— É muito gentil da sua parte. – tomando um gole do chá, ele encostou-se na parede mais próxima, voltando a olhar para Manoel. – Só estou dizendo que não precisa punir a sua filha por conta da minha presença aqui.

Manoel ergueu uma sobrancelha, de repente intrigado.

— Não estou punindo Joana. Apenas a teimosia dela dificulta nossa convivência. Por que esse assunto de repente? O que ela tem dito para você?

Joseph apenas movimentou os ombros com desdém, condizendo com o tom despreocupado que ele tentou colocar naquela conversa. Ele jamais iria se entregar e assumir que estivera pensando no que Joana o dissera noites atrás. Jamais admitiria que se pegara pensando na expressão de consternação que vira no rosto dela, apenas um relance enquanto ela falava sobre a distância entre o pai e ela. Ele com certeza estava precisando trabalhar mais.

— Apenas não se preocupe com a influência da senhorita De Castro, a ponto de atrapalhar sua relação com ela. Não vou abandonar minhas responsabilidades aqui, como já disse antes.

Joseph largou a xícara sobre uma mesa para se ocupar novamente com seu baú de ferramentas, perdendo o momento em que um sorriso se esticou nos lábios de Manoel, quase como se o homem de cabelos brancos o admirasse um pouco mais. Não demorou muito para o funcionário ao lado de Joseph sinalizar com a cabeça.

— Bem, está na hora do show.

Depositando a massa de biscoitos no repositório, a máquina a vapor começou a queimar o combustível, o vapor transformando a energia em movimentos alternados. A tensão e a maravilha entre os funcionários amontoados em volta era quase palpável, e os sons de surpresa se misturavam quando pequenas massas perfeitamente moldadas surgiram, prontas para a próxima etapa de cozimento.

Manoel levantou-se, extasiado, pronto para aplaudir. E, então, a máquina parou, soprando uma fumaça escura pela cozinha.

— O que está acontecendo, Fretcher?

Joseph franziu o cenho. Como era possível que ele tivesse errado? Joseph jamais se permitia errar.

— Eu não sei. Eu...

Uma risada ecoou pelo lugar.

Todos os rostos se voltaram para Alfredo, parado na entrada da cozinha. Joseph sentiu a raiva começar a crescer dentro de si, acompanhado pela revolta e desgosto de seu recente fracasso e do desdenho claro no rosto daquele homem. Ele cerrou os punhos, obrigando a si mesmo a não ir até Alfredo e arrancar aquele sorriso estúpido com suas próprias mãos.

— Desculpem-me. Acabei de lembrar de algo engraçado que a senhorita Joana me contou.

Por algum motivo, a raiva de Joseph aumentou. Era tão claro que Alfredo pusera o nome dela ali apenas como uma provocação. O que ele pretendia? Joseph precisava sair daquele lugar, ou perderia a cabeça. Alcançando seu casaco e caderno, ele olhou para Manoel.

— Não se preocupe. Vou descobrir o que deu errado.

E saiu sem mais uma palavra ou esperar pela resposta de Manoel, que possuía a censura no olhar apenas para Alfredo.

Joseph praticamente correra de volta para o sobrado, a porta sendo fechada com um estrondo. Sentado no sofá, a cabeça entre as mãos, ele se sentiu novamente dentro do corpo do garoto de 15 anos, com inocência suficiente para contar ao pai que era apaixonado por máquinas. Uma risada foi tudo que ele recebeu.

Ele não iria errar. Não se permitiria errar. E quando a cidade foi tomada pelo alaranjado que indicava o fim do dia, Joseph ainda permanecia debruçado sobre seu caderno, engolindo cálculos e palavras, tentava descobrir onde fora o seu erro. Na pequena cozinha, a dispensa quase vazia e uma chaleira esquecida. Irritado consigo mesmo, ele não queria a porcaria de um chá. Queria algo que pudesse aquietar sua mente. Nesse momento, lembrou-se do envelope pardo esquecido em seu bolso. Escondido dentro dele, o convite para um jantar que Joseph nem sabia como havia conseguido. Pedro surgira com o envelope dias atrás, com histórias sobre jantares, famílias ricas e barões. De repente, era tudo que importava para Joseph.

Não importava quais eram as intenções daquela família Tavares com ele, ou como sua existência era do conhecimento deles. Famílias ricas possuíam vinhos caros e damas que talvez que lhe roubassem a atenção o suficiente para o seguirem até seu quarto.

Dentro de um terno preto, ele atravessou a entrada da enorme casa do barão de Tavares, deixando para trás a carruagem alugada. Um mordomo aguardava na porta, conduzindo os convidados para a sala de visitas, onde eram servido chás, cafés e licores, acompanhado de apresentações.

— Então o senhor é Joseph Fretcher.

O barão levantou-se num salto e seguiu até Joseph, que permanecia parado observando que ainda não havia muitas pessoas no lugar. Lourenço de Garcia era um homem de espessos cabelos escuros, arrumados de modo que seus numerosos fios recentes brancos ficavam evidentes, e que mal chegava ao ombro de Joseph.

— Admito que fiquei intrigado em saber que um inglês está trabalhando para meu bom amigo Manoel de Castro. Então que jeito melhor de nos conhecermos, não é mesmo? Seja bem-vindo à minha casa.

— Fiquei imensamente satisfeito e feliz com seu convite. – não, Joseph não tinha ficado, mas ele sabia muito bem como se portar diante daquelas pessoas.

— É claro que ficou.

A voz de uma mulher surgiu ao lado dos dois.

— Esta é minha esposa, Iolanda.

Iolanda analisava cada detalhe de Joseph, a mão erguida esperando pelo beijo. Joseph lutou contra a vontade de revirar os olhos, tocando os lábios no dorso da mão enluvada da mulher.

— E esta... – o barão olhou em volta, puxando pelo cotovelo uma mulher muito jovem. – É minha filha, Carlota. Meu filho mais velho, Teodoro, está na Europa estudando Medicina.

O tom de má disfarçada vaidade na última frase fora ignorado por Joseph, que assistia o momento em que Carlota de Garcia pareceu estremecer. Os olhos grandes demais se arregalaram e, de repente, Joseph não precisava olhar em volta para entender que não estava ali para conhecimento do barão, e sim por um único motivo: ele era um estrangeiro.

— Esse é o inglês, papai? – ela disse, sem tirar os olhos de Joseph.

— Sim, é ele.

Carlota esboçou o maior sorriso do mundo, a voz afinando ainda mais – se isso fosse possível.

— Carlota de Garcia.

— Joseph.

Ele deixou um beijo sobre a mão dela. Era tudo o que me faltava, pensou, notando que ela parecia devora-lo com o olhar e ele nunca se arrependeu tanto de sua decisão.

— Farei companhia ao senhor até o jantar começar.

— Isso não é necessário.

— Não se preocupe. Não deve demorar.

Antes que Joseph pudesse dizer mais alguma coisa, Carlota já o conduzia entre as pessoas.

— O que o senhor quer beber? Café, talvez licor? Ah, o que eu estou perguntando! O senhor é inglês, claro que prefere chá. Antônio!

O grito de Carlota para o serviçal parado próximo a eles fora tão estridente que Joseph quase acreditou que ficara com um zumbido em seus ouvidos. Lutando desesperadamente para despistar a mulher ao seu lado, Joseph se assustou mais uma vez com outro grito.

— Ah! Joaninha!

Girando o corpo, Joseph encontrou a última pessoa que ele esperava – e queria – ver. E apesar da inquietação e desagrado comichando em seu peito, ele não conseguiu desviar os olhos do que via. A beleza de Joana preenchia cada canto vazio daquele lugar e de sua mente, o fazendo se questionar se aquela era a mesma mulher de cabeça-dura e boca esperta que estava sempre pronta para insulta-lo. Joseph se pegou sentindo-se embriagado sem ainda ter encostado em uma gota de álcool, porque subitamente ele não conseguia prestar atenção nas pessoas a sua volta. Apenas no fato de que o vestido e as luvas escondiam um segredo que ele se sentia tentado a descobrir, revelando somente a tenra pele dos ombros, a evidente linha da clavícula. Se ele fechasse os olhos, quase poderia sentir seus lábios percorrendo aquele caminho, encontrando o calor do pescoço dela.

Pelos céus, ele estava perdido.

Erguendo o olhar mais um pouco encontrou os olhos dela presos à ele também e foi como um golpe de realidade. Joana não poderia estar mais surpresa. Indignada, também. O que aquele homem estava fazendo ali? E como seria possível que ela desse meia volta e desaparecesse? Já era ruim o suficiente a mulher de cabelos loiros presos em um árduo penteado que caminhava na direção dela. A julgar pela proximidade de Carlota e Joseph, ela podia apostar o porquê ele estava ali. Joana ficou um pouco mais enfurecida.

— Senhora, acho que é melhor eu esperar lá fora. – Alice, a filha de Prazeres, se remexeu inquieta em seu vestido de noite verde folha que reluzia em contraste com sua pele escura.

— Sozinha com os cavalos? Você vai ficar e jantar comigo.

Alice, que possuía a mesma idade que Matilda, se encolheu mais um pouco quando Carlota as alcançou.

— Joaninha. Quanto tempo!

— Já falei que meu nome é Joana.

Carlota desenrolou um sorriso na boca pequena, claramente não dando nenhuma importância ao que Joana falava. Quando seus olhos chegaram em Alice, o sorriso desapareceu.

— O que ela está fazendo aqui?

— Ela é minha dama de companhia esta noite.

Carlota revirou os olhos, e Joana se deleitou com a cena em sua mente em que ela arranca cada grampo daquele cabelo.

— Ótimo. A deixe em algum canto da casa. Antônio!

Joana estremeceu com o grito.

— Alice vai jantar conosco.

Carlota deixou uma risada carregada de maldade escapar.

— Você só pode estar me caçoando.

— Minha senhora...

Alice tentou intervir, mas Joana permaneceu inabalável, encarava Carlota deixando claro que falava sério e que nada poderia lhe causar menos medo que a mulher de cabelos claros a sua frente.

A expressão de Carlota endureceu. – Por que você está aqui? Você nem mesmo merece estar...

— Ela está aqui porque eu quis.

A voz de Iolanda encerrou o protesto de Carlota. Por um segundo, pelo menos.

— Por que a convidou?

— Não te devo satisfações, Carlota. – Iolanda olhou para Joana, recebendo uma pequena mesura em resposta.

— Senhorita De Castro. Fico feliz que tenha aceitado meu convite.

— Confesso que fiquei surpresa.

Sorrindo, Iolanda reconheceu que gostava da franqueza de Joana.

— Gosto da sua personalidade. Ela... m'éblouit.

É claro. O francês. Iolanda sorriu, como se realmente se considerasse graciosa e Joana apenas forçou um sorriso. Aquela seria uma longa noite.

Enlaçando o braço de Joana ao seu, Iolanda começou a conduzi-la pelo longo corredor até a sala de jantar em uma conversa sobre prestígios e atributos, deixando para trás uma boquiaberta Carlota. Antes de realmente deixarem o salão, Joana arriscou uma olhada para trás e seu olhar foi diretamente para Joseph, que conversava com um homem que ela não reconhecia. Ao lado e consumida pela raiva, Carlota seguiu o olhar de Joana até Joseph.

— Nem pense nisso, Joaninha.

O vasto salão de jantar dos Tavares e Garcia poderia passar uma impressão intimista sob a baixa luz das velas, mas para Joana mais parecia um salão sombrio. Paredes vermelhas escuras, madeira fosca e uma longa mesa no centro. Empregados esperavam em uma fila perfeita que os convidados se acomodassem. Sentada entre Alice e um homem de barba enorme que se intitulava de visconde, Joana notou sem surpresa e com irritação que Carlota arrastara Joseph para sentar ao seu lado. Fingindo estar ocupada admirando os arranjos de gladíolos e cravos, Joana analisou o rosto bonito de Joseph, procurando alguma expressão de desagrado, irritação ou tédio. Mas ele não revelava nada e quando permitiu que Carlota tentasse discretamente lhe tocar a mão, Joana desviou o olhar.

— A senhorita está bem? – Alice cochichou ao seu lado.

— É apenas Joana.

Alice sorriu um pouco.

— Joana, está tudo bem?

— Sim. Estou ótima.

Mordendo o lábio, a mais nova teve certeza de que aquilo não era verdade.

— E tem certeza que está tudo bem eu estar nessa mesa?

— Mais do que bem. – Joana suspirou, sorrindo para ela em seguida. – Sua companhia torna estar aqui mais fácil. Além de que você poderá me segurar caso eu perca a cabeça e ataque Carlota.

Alice levou uma mão coberta por luva à boca, tentando esconder um riso. Como ela nunca tinha reparado na senhorita Joana? Sua mãe trabalhava para os De Castro desde muito antes de Alice nascer, mas ela nunca tentara se aproximar. Agora, sentada ao lado de Joana, com tantos olhares tortos e curiosos para ela, Alice sentiu uma pontada de gratidão e se permitiu relaxar um pouco.

— Aposto que ela está se revirando por me ver sentada aqui.

— Não tenho dúvidas. Talvez devêssemos brindar a isso.

Na mesa, grandes pratos cheios de carne de porco, feijão preto, pirão e canjica eram servidos. Diversos tipos de pães e presuntos dividiam espaço com filés, arroz e variados vinhos. Apesar de tudo parecer incrivelmente apetitoso, Joana se obrigara a comer. Sua mente estava muito ocupada se aborrecendo com as conversas arrogantes a sua volta e projetando imagens de Carlota e Joseph rindo um para o outro, brindando e fazendo planos para o futuro. Vencida pela curiosidade, ela arriscou uma olhadela ou duas. Talvez três. Em todas elas Joseph estava esvaziando uma taça de vinho em uma velocidade inexplicável. Ela teria se permitido um pensamento preocupado, se ele não houvesse direcionado o olhar para ela naquele exato momento. Foi a vez dela engolir um pouco de vinho.

Depois que todos estavam satisfeitos com doces e cremes de frutas, os homens seguiram para um salão particular e Joana fora arrastada junto com as mulheres para a sala de desenho. Todas elas, entre viscondessas e esposas afortunadas, acomodaram nos sofás e poltronas. Indicando o piano, Iolanda fora a primeira a falar.

— Toque para nós, senhorita De Castro.

Antes mesmo que Joana pudesse levantar, Carlota saltara de seu assento.

— Eu toco!

Embora tentasse evitar, Joana revirou os olhos, recebendo uma sutil cotovelada de Alice.

Entre as suaves notas de Chopin produzidas por Carlota, uma onda de fuxicos começou pela sala. Para desespero de Joana, tudo que se ouvia era sobre o inglês. “Que rapaz bem apessoado” uma disse, sendo seguida por “era o que faltava para nossos olhos aqui em Recife”. Como se não pudesse ficar pior, Carlota virou-se para elas, o olhar se demorando mais em Joana propositalmente.

— Vou casa-lo comigo.

Uma onda de risadas se seguiu e Joana teve certeza que enlouqueceria se permanecesse mais um minuto ali. Esperando até que ninguém prestasse atenção nela – o que ela não julgou muito difícil –, se esgueirou até a porta e fugiu em direção a qualquer lugar daquela casa. A passos delicados, ela percorreu corredores, salões e se escondeu atrás de colunas quando empregados passavam. Até estar no famoso salão de baile do barão de Tavares.

O lugar era ainda maior que o salão de jantar e, parada no centro, Joana quase podia ouvir o agradável som das músicas e observar o movimento dos passos de dança. Então um som realmente chegou ao seus ouvidos, mas eram o de passos se aproximando. Assustada, Joana olhou para trás de si, encontrando Joseph Fretcher se aproximando.

Joseph caminhava lentamente, até estar próximo dela. Joana deu um passo para o lado, desconfiada. Por longos minutos, nenhum dos dois ousou dizer alguma coisa. Joseph permaneceu com as mãos nos bolsos, encarava o vazio daquele lugar com uma expressão no rosto que Joana só pode julgar como tristeza. O coração dela acelerou, mesmo sem querer.

— Estranhamente, esse lugar me lembra Londres.

Joseph quase sussurrava, um lembrete claro a Joana de que eles poderiam ser pegos ali a qualquer momento. Ela sussurrou também.

— Por que?

— Não sei. As pinturas, talvez. Os detalhes nas paredes e no teto. Já estive em centenas de lugares como esse.

A voz dele deslizou e arrastou-se até os ouvidos dela, se traduzindo em arrepios na pele de Joana.

— Sente falta de Londres? – ela arriscou, imaginando que informações conseguiria tirar dele. Por um momento, achou que ele cairia na risada.

— Nem perto disso.

— Como é possível não sentir falta de casa?

Deixando de lado o momento de fraqueza que tivera ao entrar naquele lugar e se aproximar daquela mulher, Joseph a olhou, percebendo o jogo que ela estava fazendo.

— Londres não é minha casa.

Joana cruzou os braços contra si, dando lentos passos, sem tirar os olhos dele. Ela o desafiava, mesmo com o olhar, e Joseph precisou conter-se – se para não sair correndo ou para não puxa-la para junto dele, ele não sabia.

— Nunca conheci ninguém assim, tão desprendido de sentimentos pela família.

— O que a senhorita está esperando que eu diga?

Como Joana respondeu apenas com um pequeno movimento com os ombros, ele continuou.

Joaninha.

Joana se aproximou, o olhar queimando com exasperação. Joseph fizera questão de usar o mesmo tom que ouvira Carlota pronunciar mais cedo.

— Não me chame assim.

— Não gosta do apelido? Acho que combina muito bem com a senhorita.

— Não precisa me tratar assim para eu saber que o senhor combina muito bem com aquele tipo de gente.

Foi a vez de Joseph avançar um passo. Joana não recuou. Encaravam-se nos olhos com tamanha força, capaz de derreter velas e fazer estremecer o chão.

— Que tipo de gente eu sou?

Os olhos azuis estavam próximos demais dos dela que, por um momento, Joana esqueceu como se respirava. Tentou dar um passo para trás, aumentar a distância entre eles, mas um braço impetuoso lhe envolveu a cintura.

— O que o senhor está fazendo?

— Diga.

— O senhor... o senhor é...

— Ficou sem palavras? Realmente estranho para você, Joaninha.

Com irritação, Joana cravou a mão no ombro dele, desejando na verdade poder coloca-la em volta do pescoço daquele homem insuportável.

— Me chame assim novamente e juro que não respondo por mim.

Para sua surpresa, a resposta dele foi uma pequena risada que desarmou Joana completamente.

— A senhorita já dançou valsa?

— O que?

Ela ouvira direito? O que tinha de errado com o homem?

— Valsa. Já dançou?

Pronta para desfazer o braço dele de sua cintura, ela respondeu. – Não.

— Já que a senhorita estava tão interessada no lugar de onde vim, vou te mostrar como fazemos em Londres.

Sem aviso, o enlaço que Joana pretendia desfazer foi utilizado para trazer ela para mais perto dele e Joseph lhe segurou a mão, começando a conduzi-la pelo salão em uma dança silenciosa. Ele a guiou, rodopiou e trouxe de volta para si, com movimentos que pareciam ter sido feitos exclusivamente para envolve-la. Se a dança tinha a intenção de ser calma, tudo que ela irradiava agora era a intensidade gritante entre os dois. Mesmo ali, parecia se transformar em uma disputa entre os dois, e Joana se pegou desejando que ele não parasse nunca. Que a conduzisse para bem longe dali, no exato momento em que ele a girou mais uma vez, a segurando junto de si em seguida.

Os olhos se atraíram imediatamente e Joana sentiu algo acender em seu peito, lhe causando pânico e arrebatamento.

— Tão linda. Tão insuportavelmente linda.

Se ele a tivesse largado de supetão naquele exato momento, Joana não teria sentido que retiraram o seu chão como sentiu ao ouvir aquelas palavras. Ele não tinha o direito de faze-la se sentir daquela forma, mas ainda assim...

Mesmo imaginando que o “insuportavelmente” teria sido colocado ali de propósito, ela arqueou uma sobrancelha quando sentiu o aroma de álcool lhe atingir as narinas.

— Quanto o senhor bebeu hoje?

Um pequeno sorriso foi a única resposta que conseguiu, junto com o lento movimento de Joseph se aproximando dela. Então Joana percebeu, com espanto.

Ele estava prestes a beija-la?


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