Doce Promessa escrita por Nah


Capítulo 12
Doze


Notas iniciais do capítulo

Prontos para um pouco de drama? haha Boa leitura ♥



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Era um dia quente e tumultuado da segunda-feira que marcara a inauguração da biscoutaria DeCastro. Recife estava brilhante e abafada, as nuvens no céu contadas a dedos, as sinhás e iaiás balançando seus leques com o vento e joias reluzindo na luz do sol. As pessoas transitavam por todos os lados, ocupadas com seus compromissos e obrigações, um olhar de esguelha voltada para a vistosa construção na praça Guadalupe. Todos reservariam um pedacinho de seu dia para conferir o que Manoel de Castro havia inventado dessa vez e mesmo os que diziam não se importar seriam vencidos pela curiosidade antes do dia terminar.

Atrás das grandes portas nunca abertas para os clientes, Manoel resmungava para disfarçar o nervosismo, jurando a Alfredo ao seu lado que se aquele negócio não desse certo o faria devolver cada moeda investida. Alfredo apenas sorria, afinal, quando ele estava errado?! E atrás do balcão de madeira recém polida, uma jovem e animada Joana assistia a cena, o sorriso incapaz de deixar seu rosto diante da perspectiva de ver aquelas portas abertas e que todos pudessem sentir o cheiro de biscoitos assados que a envolvia. Mal sabia ela que o cheiro já preenchia o ar da praça e até mais longe, certificando-se de aguçar ainda mais os interesses, uma sutil promessa que provocava troca de olhares interessados e cochichos discretos.

Naquele dia, Ramos se ocupara com o descarregamento dos biscoitos importados e Aurélia sacodia a poeira das mesas, tentada a colocar a mão na massa, mas apenas feliz por finalmente poder deixar o sobrado de sua irmã e trabalhar em algo para si. Havia algo de encantador naquela biscoutaria e Aurélia trocou um pequeno sorriso com Ramos, o fato de serem os primeiros contratados por Manoel parecia criar um vínculo entre eles.

Era exatamente nisso que Aurélia pensava quando pisaram na biscoutaria naquela manhã de quarta-feira. Caminhando lentamente ao seu lado, Ramos tagarelava sobre seu futuro casamento com Marieta, a filha do fabricante de licores. Deixando a luz do sol reluzir em seus cabelos brancos, Aurélia abriu as janelas da biscoutaria com satisfação, um sorriso no rosto beirando a risada a cada comentário sobre cansaço, animação ou nervosismo que Ramos emitia.

— Nunca, em meus 37 anos, imaginei que ficaria tão entusiasmado com a ideia do casamento. E eu mal a conheço.

— Não me diga que está apaixonado, Ramos. – Aurélia o zombou, desfazend0-se de seu xale estampado enquanto caminhava em direção a cozinha. Ramos era um conquistador, todos sabiam disso. Era fácil demais encontra-lo perdido nos eventos noturnos, entornando copos e galanteando moças. Aurélia quase caíra para trás quando ele surgiu tal dia afirmando terem o prometido a casamento com uma moça. E o melhor – ele estava feliz.

— Não, não acho que seja o caso. A vi três vezes no total. Com o pai ranzinza dela ao lado.

— Então deve considera-la extremamente bonita.

Ramos parou no início do corredor com o comentário, sem saber como negar aquilo. Marieta nem de longe seria a mulher mais linda que já viu e sua personalidade acanhada não o atraíra, mas ainda assim ele estava feliz com a ideia. O motivo, descobriria depois.

— Bem, como eu estava dizendo... - desviou o assunto, alheio ao fato de que Aurélia estava imóvel a sua frente.

— Ramos...

— Farei uma grande festa. Aqui mesmo, na praça. Quero todo mundo da biscoutaria comemorando comigo.

— Ramos...

— Não acho que Manoel irá importar-se em usarmos o lugar e...

— Homem, se cale!

Aurélia virou-se para ele bruscamente, o olhar arregalado em alarme e preocupação com a sujeira branca que envolvia seus sapatos.

— Mas o que aconteceu aqui?

Os dois se entreolharam antes de observar o caos de farinha que os levavam para o depósito no andar de cima. Sacos revirados, montantes de poeira branca e a mente Aurélia trabalhava a todo vapor, presumindo todo o prejuízo que eles teriam.

— Você acha que alguém fizera isso? – Aurélia balbuciou, sentindo falta do seu xale enquanto esfregava as mãos em seus braços. Eles precisavam daquela farinha. O que fariam agora?

— É claro que foi alguém, Aurélia. Esses sacos não se estragariam sozinhos assim. E acho que vai querer ver essa farinha mais de perto.

Temendo o que Ramos queria dizer com aquilo, a mulher se aproximou mais um pouco do homem agachado ao chão, apenas perto o suficiente para ver pequenos bichos movimentando-se pelo alimento. A descrença na voz de Aurélia passara despercebida para Ramos.

— Larva-da-farinha?

— Carunchos. – Ramos a corrigiu, os dedos percorrendo o queixo anguloso, a expressão perdida em pensamentos. Ele estava de pé novamente, analisando cada canto daquele abafadiço lugar, os olhos atentos a qualquer coisa que pudesse parecer fora do lugar.

— Nunca tivemos bichos em nossa farinha.

— Gostaríamos de pensar que esses bichos se aproveitaram da bagunça, mas sabemos que não é o que parece. Não é o que as pistas indicam.

Aurélia levou as mãos a cintura, o rosto marcado se contorcendo em confusão. Do que aquele homem estava falando?

— Que pistas, Ramos?

Em resposta, ele apenas movimentou os ombros após um longo suspiro.

— De quantos quilos era mesmo o pedido que temos para esta semana?

A expressão de Aurélia passou de perplexidade para pânico e então preocupação. 50 quilos. Quilos e mais quilos de biscoitos e agora nenhuma farinha.

— Precisamos falar com o senhor De Castro. Agora.

Os dois sacudiram os pés, levantando poeira branca para todos os lados e seguindo para as escadas que os dirigia para o andar inferior. Mas antes mesmo que descessem mais que dois degraus, um barulho pode ser ouvido dali, anunciando que alguém chegara na biscoutaria. Aurélia apressou-se na esperança de ser seu patrão, descendo com ainda mais rapidez para encontrar um desatento Joseph no corredor.

— Oh! Senhor Fretcher.

Joseph parou subitamente ao notar as duas figuras quase trombarem em sua direção, antes de oferecer uma pequena mesura para Aurélia.

— Joseph.

O pequeno sorriso da mulher aumentou um pouco mais, desaparecendo segundos depois.

— Certo. Joseph. Achei que o encontraria aqui assim que chegamos. Todos recebemos ordens para chegarmos mais cedo, mas acredito que ninguém como o senhor.

Aurélia estava sorrindo novamente, mas Joseph não retribuiu. Passava a mão pela barba em seu rosto, produzindo um barulho ao limpar a garganta, desconcertado.

— Eu me perdi nos horários. Uma coisa incomum para mim. – seu rosto começava a queimar com cada palavra, como se temesse que aqueles dois pudessem ler seus pensamentos. Ele nunca revelaria o que o fizera dormir tão tarde e nem os cabelos escuros que envolviam esse motivo.

— Entendo.

— Não é como se tivéssemos o que fazer aqui hoje mesmo. – Ramos acrescentou, encostando-se em uma parede.

— O que quer dizer? – o olhar de Joseph viajou dele para então Aurélia, notando a preocupação em seu olhar. – O que aconteceu?

Aurélia apenas lhe deu passagem para que visse o que as escadas escondiam. Joseph permaneceu parado por algum tempo, sem entender se aquele caos era ou não motivo para preocupação.

— Isso é farinha?

— Sim. Temos um pequeno problema com a mercadoria. – Aurélia adiantou-se, dando uma cotovelada em Ramos após ouvir o resmungo que o homem fizera com a palavra “pequeno”. – Precisamos falar com o senhor De Castro.

Joseph acenou uma vez, o cenho permanecendo franzido.

— Posso chama-lo.

Mas Aurélia não replicou de imediato, seu olhar perdido sobre o ombro de Joseph.

— Não acho que será necessário. – ela finalmente disse, um movimento com a cabeça indicando a entrada da biscoutaria. – Mas pode torcer conosco para que o senhor De Castro não derrube as paredes com seus berros.

Os três voltaram-se para a porta, por onde Manoel acabara de passar, acompanhado de Joana. Ela tentava colocar uma mecha de cabelo para dentro do penteado novamente, mecha que escapara com a pressa de acompanhar seu pai até a biscoutaria, distraída do fato de que todos encaravam Manoel apreensivo.

— Que expressões são essas? Animem-se, ora. Em alguns dias nossos biscoitos estarão no Rio de Janeiro.

Joana tentou não resmungar, mas não conteve um revirar de olhos. Não entendia como seu pai podia achar tanta graça em satisfazer uma cidade tão distante, quando seus clientes estavam bem ali.

— Sr. Fretcher. Esperava encontra-lo na cozinha.

Mesmo tentando parecer desinteressada ou nem um pouco surpresa, Joana já havia erguido o rosto para encontrar o olhar de Joseph sobre ela. Por algum motivo, estar diante dele na presença de seu pai estava desconcertando-a, fazendo seu rosto esquentar. Sustentaram os olhares por alguns segundos, no que parecia uma conversa silenciosa. “Por que está me olhando assim?” ele parecia dizer. “Você não pode estar tão confortável na presença do meu pai depois do que temos feito” ela respondeu com o olhar, ganhando um tímido sorriso que Joseph rapidamente escondeu com um pressionar de lábios. Diferente dele, Joana não conteve o sorriso e precisou cobrir os lábios com a mão enluvada, disfarçando em uma tosse forçada.

Lembrava-se com clareza demais do modo furtivo como ele a deixara na porta de sua casa na noite anterior. Lembrava dos beijos e do que ele tentara roubar em meio a rua vazia, sob o sossego do casarão que os observavam. Joana não conterá o riso na ocasião, empurrando Joseph para longe de si apenas para agarrar-se ao tecido de sua roupa novamente, desejando tê-lo mais perto. Agora olhava para ele e seu peito comprimia com uma sensação que ela não sabia dar nome, mas que estava se tornando muito, muito familiar. Ousaria dizer que sentia falta dele naquele momento, se o pensamento não parecesse loucura demais para ser verdade.

— Tive um contratempo com o horário.

Manoel resmungou em resposta, ignorando a todos enquanto já caminhava em direção a seu escritório.

— Está começando a estragar minha manhã.

— Temo que vá ficar pior, senhor. – Aurélia arriscou, a voz firme para disfarçar a inquietação. – Temos um problema.

O silêncio conseguira deixar Manoel receoso e ele seguiu seus dois funcionários com passos irritados, deixando Joana e Joseph observando atrás. O olhar de fúria revelara o momento em que Manoel se deu conta do que se tratava toda aquela desordem.

— Mas o que...

Manoel balbuciava a incompreensão e quando chegaram ao depósito Joana já não estava pensando em mais nada. Encarava com horror o desperdício que havia sido causado ali, pega desprevenida, não sabia dizer coisa alguma.

— Isso é a minha farinha? A minha farinha?

— Quando chegamos já estava assim, senhor. – Ramos se pronunciou pela primeira vez, dando passos para trás quando Manoel agressivamente percorreu o lugar.

— Vocês têm ideia de quanto dinheiro eu perdi apenas em olhar para isso?

Manoel ainda não berrava e Aurélia preferiu pensar que era um bom sinal, mesmo que sua fala saísse entredentes. Conhecia bem demais o senhor De Castro, tanto quanto conhecia a Joana estarrecida que agora agachava-se para alcançar um pouco do alimento e analisar as larvas-da-farinha de perto. A mulher de cabelos brancos quase começara a sorrir diante do atrevimento que sempre vinha acompanhado de Joana.

À porta, Joseph se manteve observando, sem saber se deveria dizer ou fazer algo. Seu olhar fora atraído para Joana, percebendo o sulco permanente entre suas sobrancelhas e desejando poder pergunta-la o quanto aquilo a aborrecia, mesmo que já soubesse a resposta. Queria levanta-la dali e descobrir se Joana desejava que ele tentasse descobrir o que acontecera naquele lugar, que claramente não fora um acidente. Porque se ela quisesse, ele faria.

Então Manoel levou as mãos à cabeça, alarmando a todos.

— O pedido! Precisamos preparar o pedido. Ao trabalho, todos vocês.

— Papai... – Joana tentou intervir, imaginando que Manoel havia abandonado a sensatez de uma vez, mas fora ignorada.

— Continuem com o que sobrou da farinha. Viajarei agora mesmo até a fazenda do Fonseca.

Aquilo espantou Joana como nada mais conseguiria, a confusão que sentia se transformando em uma preocupação exasperada.

— Papai, esqueça esse pedido. Vamos dar um jeito com a farinha, apenas deixe esse pedido.

Mas Manoel não estava a ouvindo enquanto caminhava em direção a escada ou quando descia os degraus. Joana o acompanhava com o mesmo ritmo irritado, determinada a não permitir aquela loucura.

— Ramos, me consiga um cavalo. Conseguirei essa farinha eu mesmo e depois lidaremos com quem quer que tenha feito isso.

— Não, não vai sair por aí à cavalo sozinho. O senhor mal consegue andar sem essa bengala.

Manoel enfureceu-se um pouco mais quando finalmente se dera conta que Joana o seguia, reclamando ordens.

— Não se intrometa, Joana. Ramos, o cavalo.

— Não, Ramos, nada de cavalo.

Com os braços cruzados e a expressão firme, Joana encarou o pai, o desafiando a lutar contra a decisão dela. Manoel não poderia estar mais impaciente e aborrecido, o levando a ceder a persistência de Joana. Ou quase.

— Está bem. – então bateu sua bengala contra o assoalho, continuando a falar. – Ramos, uma carruagem ou qualquer outra coisa que sirva para me levar até a fazenda.

— O que?

Joana mal podia acreditar naquela cisma. Os passos ecoavam pelo lugar diante do silêncio dos outros três que observavam a pequena batalha travada por aqueles dois que nem mesmo precisavam de semelhanças físicas para se acreditar que compartilhavam do mesmo sangue.

— Essa fazenda não é tão perto de Recife para ser uma viagem segura. Peça para outra pessoa. Para o Ramos.

— Meus funcionários têm outras obrigações agora.

— Eu irei, então.

— Não.

A voz de Joseph os calou pela primeira vez, trazendo todos os olhares para si. Ele estava mais perto de Manoel agora, encarando duramente aqueles dois. Um silêncio instalou-se e diante da expressão confusa de todos, Joseph finalmente percebeu o quão desesperado sua negativa havia soado.

— Quer dizer... – corrigiu-se. – Não é seguro. Para nenhum dos dois. Manoel, seja...

— Volte ao trabalho, Fretcher. Estarei de volta antes que o dia termine.

Sem mais uma palavra, Manoel deixou a porta da biscoutaria aberta com sua ausência, seguida de um Ramos embaraçado que sussurrava desculpas à Joana ao passar. Ela permaneceu encarando a praça a sua frente, mal percebendo os poucos funcionários que chegavam, estranhando toda aquela agitação.

— Como pode existir alguém tão teimoso? – ela expirou, para ninguém em especial ou apenas para si mesma.

Joseph arriscou um olhar para Aurélia, que ao lado observava os dois. Estudou em sua mente o que poderia dizer ali, sem compromete-los ou insinuar qualquer intimidade que apenas eles sabiam que existia.

— Manoel ficará bem.

Fora a única coisa que conseguira pensar e que pareceu despertar Joana. Ela o olhou e então uma lembrança e um pensamento horrível passou por sua cabeça. A ideia do quão errado aquela viagem de seu pai poderia se tornar fora substituída momentaneamente por uma desconfiança pura que elevou ainda mais sua raiva, a fazendo levar a mão às têmporas, massageando o lugar. Joana esperou e esperou, até que todos começassem a dispersar-se, Aurélia assumindo as rédeas das explicações e da limpeza. Sutilmente, Joana se aproximou de Joseph, falando o mais baixo que conseguira.

— Podemos conversar?

Uma pergunta que ela não esperou a resposta, seguindo até o escritório do pai e esperando que Joseph entrasse, certificando-se que ninguém estivesse ocupado os espiando. Com seu rosto revelando nada, Joseph se manteve encostado ao tampo da mesa, os braços cruzados enquanto observava a mulher a sua frente fechar a porta com cuidado e então voltar-se para ele. Tentou não imaginar todos os jeitos em que poderia trazê-la para seus braços dentro daquele cômodo, porque era Joana que estava em sua frente, apoiada à porta com os mesmos braços cruzados. Era o rosto bonito dela que ele estava vendo e sabia que alguma coisa estava errada.

— Estou esperando você me dizer que não tem nada a ver com isso.

A acusação pegara Joseph completamente desprevenido. Ele franziu o cenho, empertigando-se no mesmo segundo.

— Com isso? Você acha que eu tenho algo a ver com aquilo?

Joana manteve seu olhar fixo no dele, duros olhos castanhos contra atordoados olhos azuis, ela se obrigou a não pensar em como eles a afetavam. A preocupação cega e a raiva a impediam de pensar em qualquer outra coisa que não fosse aquilo martelando em sua cabeça.

Ela se aproximou lentamente, seu tom de voz diminuindo consideravelmente, como se temesse que pudessem ser ouvidos.

— Ontem à noite você me perguntou o que tinha no andar de cima. Isso não pode ser coincidência.

Joseph imaginou que seu queixo cairia se não estivesse cerrando tanto os dentes para se conter.

— Você está mesmo desconfiando de mim? O que eu ganharia fazendo isso, Joana?

— Eu não sei. O que você ganha trabalhando aqui? Morando aqui? Isso eu também não entendo.

Joana estava com o coração retumbando em seus ouvidos e sua respiração parecia tão alterada quanto a de Joseph, os dois mal percebendo que já estavam a centímetros um do outro, cheios de julgamento no olhar e revoltas sussurradas.

— Eu não sei até que ponto o que está saindo da sua boca agora é fruto da sua raiva ou o que você realmente pensa de mim, mas não estou com a mínima vontade de descobrir.

Aquilo machucaria, ela pensou, se não estivesse sentindo-se cada vez mais fora de si. Joana ergueu o rosto ainda mais, firme em não deixar transparecer o quanto ele podia choca-la.

— Que motivos eu tenho para confiar em você? Eu não te conheço.

Se ela acreditou que uma frase tinha o poder de abala-la, a risada sem um traço de humor que Joseph dera a exasperou ainda mais.

— Você não me conhece e mesmo assim foi de bom grado para os meus braços?

A entonação de sua voz denunciava o quão Joseph estava irritado, mais do que já imaginou que poderia ficar com Joana. Ele agradeceu aos seus movimentos rápidos quando agarrou o pulso dela, que instintivamente erguera-se na direção dele.

— Pare. Não ouse usar isso contra mim. – ela disse, em um fiapo de voz.

Quando seus olhos ameaçaram arder, Joana piscou fortemente, apenas para desabar um pouco mais ao notar que lágrimas escorreram pelo seu rosto. Ela soltou-se do aperto de Joseph, desejando saber como se acalmar e que ele pudesse retirar de sua mente as ideias furiosas que Joana sempre tivera.

— Eu não confiei em você desde o dia que passou por aquela porta e você sabe disso. – ela continuou, limpando o rosto do rastro de exaustão abruptamente. – Me diga que você não tem nada a ver com isso.

A inexpressão no rosto de Joseph estava de volta e ele a olhava como se nunca a tivesse visto antes, empurrando Joana para a borda um pouco mais. Ela não tinha que confiar nele. Ela não o conhecia. Ainda assim, sentia cada fibra de si desfazer ao perceber que desejava, mais que tudo, confiar nele. Queria ter e ver os motivos para confiar em Joseph. Queria poder dizer que o conhecia de verdade.

— Se acontecer alguma coisa com o meu pai, eu nunca vou te perdoar.

Mas Joseph não disse nada. Não disse nada quando aproximou-se um pouco mais dela, nem quando a desviou e deixou o escritório, batendo a porta com tanta força que Joana estremeceu. E ela apenas permaneceu lá, estática, aturdida. Seu coração estava partido, por mais que tentasse negar, não seria capaz. Um tipo de tristeza que ela nunca esperou sentir antes.

Quando passos e vozes abafadas chegaram aos seus ouvidos, Joana tentou retornar a si mesma, a preocupação pelo pai e a irritação pela ideia de cogitar Joseph como um possível culpado a seguindo até a cozinha. Ela ocupou-se com Aurélia, organizando os afazeres e atendendo clientes. A biscoutaria não iria parar e todos pareciam muito empenhados no enorme pedido de 50 quilos, mesmo que Joana não pudesse se preocupar menos. Seu olhar estava voltado para a porta a todo momento, esperando que Manoel entrasse bem e reclamando, como sempre. Longas horas desenrolam-se, deixando Joana inquieta e ainda mais ansiosa. Pensava em seu pai perdido naquelas estradas, caído sobre a terra, abordado por ladrões. Aurélia tentou persuadi-la a tomar um chá, mas Joana prontamente recusou, porque só ela sabia o que aquilo a lembrava.

Quando de fato aconteceu, já era tarde da noite e Joana deixou-se correr para os braços do pai, o sufocando com um sentimento que não passava de alívio. Manoel estava coberto de poeira e confuso em ter Joana pendurada em seu ombro, como não ficava havia anos.

— Eu sinto muito. – ela disse, porque nada mais havia para dizer.

Manoel estava cansado demais para insistir naquela briga e um segundo depois seu aborrecimento havia sido esquecido. Estava cansado, mas seu peito inflamava de satisfação. A farinha estava de volta e seguiria para o Rio de Janeiro, envolvida em pequenas iguarias doces que ele esperava marcar o início de uma nova era para a DeCastro.

Joseph não aparecera na biscoutaria outra vez aquele dia. E no dia seguinte, o sol abandonava a cidade quando Joana acreditou que ele também não apareceria. Eu não estou preocupada, repetiu para si, mas não estava funcionando. Quase recolhera suas coisas e fora atrás de Pedro, crendo que ele seria o único que poderia saber por onde Joseph andava, mas desistiu quando alcançara a porta. Não queria parecer desesperada. Não estava desesperada. Revivera a discussão dos dois dezenas de vezes em sua cabeça. Ela jurou, por alguns momentos que fossem, que os dois poderiam dar certo. De alguma forma. Como fora burra! A desconfiança nunca havia ido embora e Joana apenas percebeu tarde demais. E se ele voltara para Londres? Era o que ela queria, não era?

Tudo bem, talvez estivesse apenas um pouco inquieta.

Joana fechou o livro de registros com um baque, no exato momento em que Joseph atravessara o salão em um rompante, disparando seu coração. Ela estava imaginando coisas? Então seguiu o caminho que ele fizera até a cozinha, para encontrar uma comoção da qual ela não fora informada. Joseph havia reestruturado as máquinas e agora as apresentava a cada funcionário que ficaria responsável pelo corte realizado por elas. Joana cruzou os braços, apertando-os enquanto assistia tudo a distância. Manoel estava lá, ao lado de Alfredo e acompanhado de funcionários animados com a novidade.

Domingas, o braço direito de Aurélia na cozinha, foi a primeira a se voluntariar para uma aproximação com o objeto de madeira e metal, parecendo fascinada minutos depois. Todos aplaudiram o sucesso. E quando os 20 quilos rapidamente tornaram-se 30, Manoel tocou sua taça de vinho contra a de Joseph. Joana voltara para casa mais cedo aquele dia.

No fim da semana, ainda ninguém parecia ter notado a única coisa que Joana conseguia enxergar. Que o contato havia diminuído. Que uma distância gigantesca fora criada entre cada funcionário que fazia a biscoutaria funcionar e o real motivo daquele lugar ser o que é: os biscoitos. Mas de que isso importava, ela pensou enquanto caminhava lentamente pelos fundos da fábrica, se o pedido estava pronto para partir até a mesa do Imperador. Trocava poucas palavras com seu pai, a fim de evitar uma discussão, assim como evitava Alfredo a todo custo. Assim como Joseph a evitava. Mas de que isso importava?

Até importar.

— Não vai para a biscoutaria hoje?

Francisca surgiu atrás da poltrona que Joana repousava na sala de desenho, onde encarava desanimadamente através da janela. Aquele sábado que amanhecera com alguma chuva, já ameaçava abafar cada cômodo daquele casarão.

— Estou me sentindo indisposta. – ela respirou fundo, sentindo a mão de sua mãe encontrar sua testa.

— Está doente, Joana? Você nunca se sentiria indisposta para ir àquele lugar.

Alisando o tecido estampado de seu vestido metodicamente, Joana pensou por algum tempo. Tempo suficiente para Francisca sentar-se próximo a ela, sem evitar a preocupação que sempre a seguia.

— Você tem escutado alguma coisa sobre a biscoutaria?

Então Francisca soube do que se tratava. Bem, ela acreditou que sabia.

— Não, Joana. Está tudo bem. Ninguém notou mudança qualquer naqueles biscoitos, mesmo que você teime em achar que mudou.

— Como não mudou? As pessoas agora estão mais preocupadas em queimar carvão com realmente fazer a coisa. Não tem como ser o mesmo.

Francisca lhe agarrou a mão, conseguindo o olhar de Joana para si.

— Volte para lá. Nunca conseguirei entender como aquele lugar é capaz de te fazer bem.

Mas Joana apenas negou, reforçando com um movimento da cabeça. – Não hoje. Acho que preciso me acalmar um pouco.

— Ah, sim, Joana. Você sempre precisa se acalmar. – soaria como uma reprimenda, se não houvesse tanto carinho na voz de Francisca. Suspirando consternada, ela levantou-se mais uma vez. – Vou pedir para preparem um café. Você me acompanha?

— Sim. Irei em um segundo.

Recebendo um beijo em seus cabelos e um pequeno sorriso, Joana comtemplou o momento em que sua mãe desaparecia da sala, para assim resgatar a carta de Alfredo escondida sob a almofada. Ela esquecera completamente do papel e desejou que continuasse assim quando finalmente leu as palavras que o trazia. Um poema de Bernardo Guimarães, claramente a comparava com uma nuvem cor de rosa e deixava ainda mais claro as intenções de Alfredo. Ela não poderia se aborrecer mais ao notar que as únicas palavras que realmente eram dele não passava da frase “impossível ler essas palavras e não pensar em ti”.

Revirando os olhos, Joana amassou o papel, até o objeto rolar pela madeira do chão e encontrar a boca de um apressado Dalton, que correu até ela e sem demora embrenhou-se nos pés de Joana, lhe arrancando um riso. Após cobrir o papel com saliva, ele ocupou-se em tentar a todo custo subir no colo dela.

— Sabe que não pode subir nessas poltronas, não sabe?

Joana observou o cachorro tentar um pouco mais, para enfim desistir e ela mesmo o segurar, impulsionando todo aquele peso para cima dela.

— Não conte para ela, está bem?

Dalton apenas suspirou satisfeito ao deitar no colo de Joana, as patas esticadas sobre o apoio para o braço da poltrona. O segredo estava bem a salvo com ele.

— Aí está você! – a voz de Alice preencheu o lugar e deixou Dalton alerta novamente, a cabeça erguida na direção da garota. – Nem pense que vai fugir do banho.

Com a boca aberta, Joana olhou espantada para Dalton.

— Dalton... E eu achando que ele queria a minha companhia.

Alice estava rindo quando sentou-se diante de Joana, deslizando os dedos pelas grandes orelhas de um Dalton que ainda a olhava desconfiado.

— Estou perseguindo esse aqui pela casa toda. Hoje é dia de banho e ele sabe muito bem disso.

— Está dando banho no Dalton agora? – Joana murmurou, agora também a olhando desconfiada. Alice não trabalhava para a família De Castro, mesmo que recentemente sempre estivesse por perto.

— Minha mãe pede ajuda às vezes e eu faço. Está tudo bem para mim.

Um rosnado de Dalton provocou risadas nas duas, quando a mão de Alice ameaçou aproximar-se mais uma vez.

— E está tudo bem para a senhorita?

— Com você trabalhando aqui? É claro.

— Não, se está tudo bem tudo bem.

Entendendo o que ela queria dizer e desviando o olhar da garota ao seu lado, Joana soltou o ar lentamente.

— Ah, bem...

— Não está. – Alice concluiu, quando Joana parecia incerta ou incapaz de terminar a frase.

— Apenas alguns problemas zunindo em minha cabeça.

Decidindo que podia confiar na distração de Alice, Dalton voltou-se a deitar, deixando Joana ocupada em entrelaçar os dedos em sua pelagem curta.

— Deixe-me adivinhar. É a biscoutaria.

— Essa é fácil. – Joana começara um sorriso, seguida por Alice.

— Então vou adivinhar o difícil. Esse problema seria alto, bonito de arrebatar os olhos e estrangeiro.

O sorriso de Joana sumiu e o de Alice aumentou, pois ela sabia que havia acertado em cheio. Mesmo Joana resolvendo não dizer nada sobre aquilo, ela soube pelo modo como a expressão de Joana mudara, o olhar ameaçando se perder em pensamentos.

— Pode me contar, se quiser. Não sou ingênua de achar que não aconteceu nada entre vocês dois.

Joana lembrou-se da noite que tivera Alice como companhia, que vira os mesmos olhos bondosos que via agora e antes que percebesse, já estava falando.

— Não sei se consigo confiar nele. Fiquei com raiva e talvez tenha dito coisas que eu não devia. E eu achei que pudesse dar certo. Eu quis que desse certo. Não lembro de já ter me sentido tão tola antes.

— Por achar ou por querer?

Ela não sabia o que responder diante daquilo. Ultimamente, o silêncio estava sendo um campo muito mais seguro para Joana.

— A senhorita gosta dele?

Ela gostava? Joana gostava apenas de como Joseph a fazia se sentir ou gostava do que via quando olhava para ele? Gostava apenas do que sentia quando era tocada ou beijada, ou também gostava do seu sorriso, seu olhar carrancudo ou de suas provocações? Naquele momento, o silêncio respondera tudo.

— Acho que precisa começar sendo sincera consigo mesmo. Pare de tentar escolher a opção mais fácil, a mais segura. A opção que a senhorita gostaria que fosse, mas que não é.

Joana prendeu o lábio entre os dentes, com medo de estar expondo-se demais. Ela com certeza não começaria a chorar diante de Alice.

— Você não vai espalhar isso para me difamar, não é?

Alice sabia que Joana não estava falando sério e deu um risinho.

— Sou negra, Joana. Filha de uma escrava. E você é minha patroa. Em quem você acha que acreditariam?

As duas sorriam, mas Joana apenas balançou a cabeça, desgostando de como aquilo soava.

— E além do mais, respeito muito a senhorita e a sua família. Não faria isso.

— Eu sei. Confio em você.

Confiança. A palavra estava de volta e Joana sentiu um aperto no peito quando percebeu o que tinha que fazer, se realmente queria que desse certo. Percebera isso noites atrás, mas não sabia se estava pronta para se arriscar tanto. Como se estivesse lendo o que se passava em sua cabeça, Alice sussurrou.

— Converse com ele. E se depois de tudo que vocês tiverem para dizer você ainda realmente quiser tentar, apenas tente. Acho que o senhor De Castro passaria mal de tanta felicidade se você acabasse casada com o estrangeiro.

— Acho que você está se empolgando, Alice. Vamos dar banho no Dalton de uma vez.

E assim o assunto estava encerrado, com sorrisos no rosto e o coração de Joana ainda mais apertado. Talvez Alice realmente estivesse certa. Talvez seus instintos também estivessem. Precisavam jogar as cartas na mesa. Joana estava pronta para tentar?

A cada minuto que passou daquele domingo, ela começou a ter mais certeza que sim. A essa altura, não enganaria nem mesmo a Dalton se dissesse que não queria que desse certo. Então falaria com Joseph. Colocaria tudo para fora e talvez devesse um pedido ou dois de desculpas, mas ela daria o braço a torcer, se fosse preciso. Se ele aceitasse as suas condições. Precisava conhece-lo, antes de tudo. Precisa sentir que era Joseph Fretcher que estava ao seu lado, e não um estranho vindo do outro lado mundo, por motivos desconhecidos. E se no final de tudo, eles ainda quisessem um ao outro, quem seria ela para negar?

Quanto a biscoutaria... Ela ainda não sabia muito bem como lidaria com isso.

Não que houvesse muito tempo para pensar naquele dia, quando Isabel e Matilda ocuparam seu domingo com conversas sobre saias e bailes. Passara a maior parte do dia entre blusas cheias de fru-frus, chapéus e cochichos pela casa e ela não parara de rir por um momento sequer. Sentia falta das irmãs e nem mesmo percebera.

Quando a segunda-feira chegou, Joana ocupou seu lugar na biscoutaria com nervosismo. Onde ele estava? Ela não aguentaria muito mais tempo, as palavras já escapavam da sua memória e Joana já se imaginava esquecendo tudo que tinha para dizer. Pelos céus, quando ela ficou tão vulnerável? Detestava esse sentimento.

E então, naquele dia, Joseph não apareceu. No dia seguinte ainda não ouvira nada sobre ele e então na quarta-feira ela perdera as estribeiras, interceptando seu pai no escritório.

— O senhor finalmente despediu o inglês?

Joana tentou parecer animada com a provocação ao pai, mas não conseguira.

— É claro que não. – Manoel lhe devolveu o sorriso irônico. – Ele se ofereceu para acompanhar a encomenda até o Rio de Janeiro.

— O que? – o espanto de Joana despertou a curiosidade de Manoel. – Mas quando ele volta?

— No fim da semana. Na semana que vem. Eu não sei. Por que o interesse?

Se recomponha, Joana.

— Nada. Eu só estava... Hum... Me animando com a ideia de não tê-lo aqui.

E deixou o escritório tão rápido quanto entrou, antes que seu pai fizesse mais perguntas. Sobre o balcão, um envelope repousava com Ramos apontando para ele.

— Deixaram aqui. É para o Sr. Fretcher.

— Tudo bem, eu guardarei. Obrigada, Ramos.

Joana capturou o papel envelhecido, analisando a escrita cuidadosa para perceber que se tratava de uma carta vinda de Hampshire. Olivia. Suspirando, ela apertou o envelope contra o peito. Então teria que esperar. Ele voltaria e os dois poderiam enfim conversar. Só precisava esperar. O que isso importava?

Em algum momento durante aquela longa semana, Joana deitara a cabeça em sua almofada, pensando a respeito do que dizem sobre as pessoas que realmente importam, aquelas que marcam nossas vidas para sempre. Ela se perguntou, sem pretensão, se Joseph era a pessoa que seria capaz de marca-la. Para sempre.


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