Epitáfio escrita por Kaya Levesque


Capítulo 1
Antes


Notas iniciais do capítulo

Olá a todos e todas e sejam bem vindos! Esta é a segunda vez que posto essa história aqui no site, vamos ver se agora vai. Lembrando que não há personagens da série aqui, somente originais, e que o enredo se passa no Brasil. Boa leitura!



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PARTE I - A FORTALEZA



Ela consultou o relógio em seu pulso mais uma vez e suspirou. Edith Albuquerque tinha a cabeça deitada em um dos braços e olhava pela janela de sua sala de aula para o céu azul, desejando fortemente que o tempo passasse mais depressa. Estava incrivelmente cansada e queria apenas chegar em casa para compensar a noite de sono perdida. Aquela parte era culpa sua: não deveria ter ido a um show com começo previsto para dez da noite em um domingo; como resultado, naquela segunda-feira, ela não conseguira se concentrar em nenhuma das aulas, e agora o último tempo - Biologia - se arrastava eternamente.

Edith moveu o rosto para o lado encontrando sua melhor amiga, Mai Nakagawa, com os olhos vidrados na explicação da professora, embora seus lábios entreabertos e pálpebras caídas denunciassem que ela não estava prestando atenção; a menina de descendência japonesa mexia em seu cabelo liso e preto distraidamente enquanto apertava os olhos, deixando-os menores do que já eram normalmente. Mai fora a única a acompanhar Edith ao tal show, visto que seu outro amigo, Matteo Blanche, o único que tinha algo na cabeça, decidira ficar em casa e dormir uma boa noite de sono. Ele estava sentado na cadeira à frente de Mai e prestava atenção em cada palavra dita pela a professora, anotando tudo em seu caderno. Era um rapaz franzino de pele clara, meio magrela e de longe o mais inteligente dos três, aquele que mais se esforçava e estudava certos assuntos por diversão - se é que tal coisa existia; Edith duvidava.

— Vou entregar suas provas, turma — anunciou a professora quando faltavam apenas dez minutos para o fim do período. Edith se endireitou para receber a folha: havia tirado 7,5. Nada mal, pelo menos estava na média. Ela olhou para Mai, que lhe mostrou a própria nota: um 8. Matteo não se pronunciou e a jovem logo assumiu que o rapaz deveria ter conseguido a pontuação máxima, como de costume. — Agora, sei que estamos todos preocupados com outras coisas — continuou a professora enquanto caminhava pela sala entregando as folhas para seus respectivos donos — essa doença nova apareceu e todos estamos ouvindo muitos boatos sobre ela. Infelizmente, não é desculpa para notas baixas; fiquei surpresa com a quantidade de pessoas que não atingiram a média, portanto aplicarei uma prova de recuperação semana que vem. Aqueles que desejam fazê-la podem falar comigo ao fim do período…

Edith ouviu alguns murmúrios de comemoração percorrerem a sala de aula, mas sua mente se fixou na menção à tal doença; de fato, estavam todos preocupados com o que diversos especialistas haviam apelidado de “a Peste Negra do século XXI”. O vírus era o maior problema da humanidade naquele momento e mesmo existindo há pouco tempo, já causava grandes mudanças no mundo inteiro.

O mais impressionante era a velocidade com a qual a doença se alastrava: era maior que qualquer outra epidemia já registrada na história. As autoridades lutavam para esconder, mas estava claro que uma grande parte da população já fora infectada. Apenas um mês antes, os olhos do mundo se voltaram para a capital da Irlanda do Norte, Belfast, onde imagens amadoras gravaram o exato momento em que a polícia tentava abater um infectado, sem sucesso. Edith não teve interesse nenhum em ver o vídeo, mas sabia que deveria ser algo aterrorizante: o ocorrido repercutiu de tal forma que uma semana depois o congresso nacional estava votando o projeto de lei que revogava o Estatuto do Desarmamento, permitindo a civis que possuíssem armas de fogo.

Além disso, ninguém sabia muita coisa sobre o vírus em si. Seu nome, Anthropophagi humana, fora divulgado muitas vezes na mídia, mas seus efeitos eram completamente desconhecidos pela população, até o mesmo após o vídeo da Irlanda. As instruções para o caso de encontro com um infectado eram, em outras palavras, correr para o outro lado o mais rápido possível, o que deixava a todos mais inquietos ainda. Muitos dos colegas de Edith não iam mais às aulas e vários professores já haviam pedido as contas graças ao medo generalizado que se espalhara feito fogo em palha.

Edith não sabia o que pensar de tudo aquilo. Tentava se agarrar às coisas mais simples de sua vida, como a escola e os amigos, mas sentia que a linha que separava seu país do resto do mundo ficava mais tênue a cada dia que passava. Por outro lado, Valquíria, sua mãe, já fazia planos de deixar a capital e voltar com as filhas para sua terra natal, uma cidadezinha esquecida entre as chapadas e serras no sul do estado onde a própria mãe da mulher morava. Aquilo havia causado diversas brigas dentro de casa, uma vez que a irmã mais nova de Edith, Carmen, era totalmente contra a ideia de deixar sua vida inteira e se mudar para o interior, mesmo que as circunstâncias fossem extremas. Até mesmo ela, Edith, estava também profundamente indecisa: sabia que deveria obedecer à mãe, mas ao mesmo tempo concordava com a irmã; claro que se fosse extremamente necessário ela iria, mas somente neste caso.

Além disso, havia outro fator problemático: o pai de Edith. O casamento de Valquíria e Conrado havia acabado dois anos antes da pior maneira possível: ele a havia deixado por uma amiga do casal, Eva, e conseguira guarda compartilhada das duas meninas, dando-lhe o direito de vê-las nos fins de semana. Aquilo seria um problema muito grande caso a mulher decidisse sair da cidade, pois as chances de Conrado deixar que Valquíria fosse embora da capital com suas filhas eram muito pequenas.

O sinal tocou, anunciando o fim do último tempo, e Edith se pôs de pé, vacilante. Ela bocejou e se espreguiçou longamente antes de colocar a mochila nas costas e seguir Matteo e Mai para fora da sala, a cabeça ainda zunindo com os pensamentos pessimistas.

— Nunca mais eu faço isso — prometeu Mai ao se abaixar para beber a água com gosto metálico do bebedouro. — Não estou sentindo minhas pernas de tanto cansaço, achei que ia desmaiar na sala.

— Não foi tão ruim — disse Edith, embora sua linguagem corporal sugerisse que ela não se sentava há quatro dias. — Pelo menos conseguimos dormir no Tobias e não nos atrasamos; quero ver como eu iria explicar à minha mãe se levasse advertência.

Para conseguirem comparecer ao show, as duas tiveram de omitir parte da verdade para seus pais. Mai dissera que iria dormir na casa de Edith e Edith dissera que estaria na casa de Mai; como era apenas por uma noite, Valquíria permitira sem mais perguntas. Entretanto, as duas apenas arrumaram uma mochila com a farda da escola e alguns pertences e rezaram para que algum de seus colegas tivesse piedade - e condições - para abrigá-las após o evento. Sua salvação veio na forma de um rapaz alto e moreno do terceiro ano chamado Tobias Linetti, amigo de Edith e conhecido de Mai, que permitiu que elas e mais meia dúzia de alunos irresponsáveis o suficiente para virar a noite de domingo dormissem em seu apartamento, visto que seus pais estavam viajando. Na manhã seguinte, todos seguiram em cortejo até o colégio localizado no centro da cidade, muito perto da casa de Tobias, e fizeram seu melhor para ficarem acordados durante a manhã de aulas.

— Vocês precisam tomar jeito — disse Matteo, balançando a cabeça negativamente. — O mundo perigoso como está e as duas querendo passar a noite fora, pelo amor de Deus.

— Ah, já foi Mat — respondeu Edith, fazendo pouco caso para não cair novamente na espiral de tristeza. — O que não mata, engorda.

— Bem que eu percebi que você ficou meio rechonchuda — devolveu o rapaz na lata. Edith fingiu-se de ofendida e logo avistou sua irmã entre os alunos do nono ano caminhando em sua direção.

Carmen era uma menina alta com cara de poucos amigos. Tinha cabelos lisos e negros como os do pai e olhos grandes que estreitava toda vez que algo lhe parecia suspeito. Desde o divórcio, a menina havia adotado uma postura “rebelde” que incluía respostas curtas, atitudes rudes e fones de ouvido sempre no volume máximo. Além disso, se distanciara ao máximo de Valquíria e Edith, portanto seu relacionamento era baseado em morarem na mesma casa e pronto.

A menina se aproximou de Edith e seus amigos, cumprimentando-os curtamente e então colocou os fones brancos, escondendo-os por dentro da blusa. Elas duas iriam de carona com a mãe de Mai até sua parada de ônibus, enquanto Matteo seguiria para o metrô com alguns de seus amigos de outras turmas.

— Até mais — despediu-se ele ao ouvir um dos rapazes chamando seu nome. — Não esqueçam da prova de física amanhã.

— Ah, porra! — exclamou Edith levando uma mão à testa; ela sabia que estava esquecendo de algo. — Faltei quase todas as aulas.

— A minha mãe está esperando lá na frente — chamou Mai, soando também derrotada. — Vamos.

As três garotas caminharam até a saída da frente da escola, onde Nomi Nakagawa havia parado seu carro prateado e agora ouvia desaforos de outros motoristas apressados que tentavam ziguezaguear pelas ruas apertadas do centro da cidade. Mesmo assim, a mulher foi gentil o suficiente para deixar Edith e Carmen uma parada antes da que elas geralmente iam para que pegassem o ônibus mais vago. No caminho, para criar conversa, perguntou incessantemente sobre como fora a noite da filha na casa de sua amiga, e Edith só pôde agradecer a Deus que Carmen tinha os fones de ouvido no volume máximo, alheia à conversa, ou era quase certo que expusesse a mentira da irmã mais velha.

As duas chegaram em casa quase duas da tarde sob um sol escaldante, graças ao engarrafamento quilométrico que pegaram no trajeto. Esperaram enquanto os portões do condomínio se abriam preguiçosamente e logo estavam caminhando pelo estacionamento até os elevadores. Enquanto subiam até o décimo quinto andar, Edith olhou o próprio reflexo no espelho: notou algumas manchas de sol em sua pele escura e mexeu nas trancinhas em seu cabelo, penteado que ela conservava há quase um ano. Fitou as olheiras que começavam a se formar ao redor de seus olhos verdes, única semelhança que tinha com o pai, e então suspirou, virando-se para sua irmã.

— Carmen — chamou. Como não obteve resposta, puxou um dos fones da menina, recebendo em troca um olhar de desdém. — Não pode ficar brigada com a mãe. Você sabe disso, não é?

A garota mais nova rolou os olhos longamente.

— Todo dia a mesma coisa — reclamou. — Eu não vou sair daqui. O que custa vocês entenderem isso? Vão as duas e me deixem com meu pai.

Edith comprimiu os lábios, engolindo as palavras de baixo calão que teria usando com sua irmã. Era sabido pela garota e por sua mãe que Carmen preferia ter ido morar com Conrado após a separação, embora ela nunca o houvesse dito de fato; isso era parte do motivo pelo qual ela havia deixado seu relacionamento com Valquíria e Edith se deteriorar. Em vez de xingar a caçula, no entanto, a mais velha preferiu manter-se em silêncio até que as duas chegaram a seu andar.

O apartamento no qual moravam era o terceiro naquele piso. Da porta da frente, se via diretamente uma parede cor de vinho com uma janela de vidro imensa; através dela, era possível observar boa parte da cidade e um pedaço do mar. À direita, havia um corredor que dava para os quartos e banheiro, e à esquerda, uma cozinha separada da sala de estar por um balcão de mármore negro. Era ali que Valquíria estava quando as meninas entraram na casa: sentada à mesa e almoçando sozinha, os olhos escuros ocasionalmente pousando na TV ligada.

A mãe de Edith, Carmen e Ariel era uma mulher de quase quarenta anos que se casara muito nova. Ela e Conrado namoraram durante todo o ensino médio e após seu fim, e quando descobriram que teriam uma filha, se decidiram pelo matrimônio - mesmo que ambos tivessem em torno de vinte e dois anos, somente. A cerimônia foi celebrada em junho de 1992, e em março de ‘93, Edith nasceu; três anos mais tarde, já morando na capital, tiveram Carmen, em novembro de ‘96. Viveram felizes até 2006, mais ou menos, quando as brigas começaram; o divórcio, no entanto, só ocorreu em 2008, depois do casal ter passado dois anos empurrando o relacionamento com a barriga. Conrado, porém, já tinha um compromisso de cerca de seis meses com Eva, sua atual esposa, antes de finalmente terminar o casamento; aquela era a parte que mais enfurecia Edith. Valquíria era uma mulher bonita e inteligente que mesmo com duas filhas conseguira se formar em Engenharia Civil, ramo no qual continuava, e a maneira como seu ex-marido lhe tratara não havia sido nem um pouco justa. Claro que agora Valquíria pouco demonstrava ligar para o ocorrido, mas a primogênita ainda se ressentia imensamente do pai.

— Oi, Dite — cumprimentou a mãe, observando o corredor por onde Carmen entrara sem dizer uma palavra. — Como foi na Mai?

— Foi legal — respondeu Edith. — Mas não dormi muito — ela acrescentou a meia verdade.

— Sim, sim — Valquíria assentiu. — O almoço está no fogão.

Enquanto a menina caminhava em direção ao armário para pegar um prato e se servir, ouviu a mãe suspirar e levantar-se.

— Eu estou muito preocupada — disse. Ultimamente, tudo que a mulher dizia começava com essa frase. — O seu tio voltou de São Paulo faz dois dias porque evacuaram a cidade onde ele estava. Tenho medo de fazerem o mesmo aqui e por algum motivo a gente não conseguir se encontrar…

— Não pense nisso — pediu Edith, olhando a mãe com preocupação.

— É só isso que tenho na cabeça, Dite — confessou Valquíria, a voz tremendo levemente; das três moradoras da casa, a matriarca certamente era a que mais se preocupava com o Vírus. — Não consigo ver uma maneira de tudo dar certo do jeito que as coisas estão indo.

— Um dia de cada vez, mãe — a jovem disse firmemente. — Não precisamos pensar nisso agora. E afinal de contas, qual o pior que pode acontecer?


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Notas finais do capítulo

Comentem! E caso haja algum erro, por favor me avisem. Beijos e até o próximo capítulo!



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