algumas coisas sobre Narcisa escrita por Estrelas


Capítulo 1
01 — Narcisa, mel e lavanda


Notas iniciais do capítulo

boa leitura



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/778293/chapter/1

 

Narcisa é como chamo minha mãe.

Ela é uma mulher linda. Sempre que penso nela, não consigo não me admirar, mesmo que por meros segundos, da sua beleza estonteante: todo o porte e elegância quase que inata de Narcisa, evidenciavam uma mulher que teve — por mais breve que tenha sido. — um dado momento em sua juventude que fora uma linda modelo. Nada que a alavancasse na fama, mas que lhe garantiu pequenos títulos que seriam lembrados por seus contemporâneos. Com olhos amendoados de um azul muito claro, todo o seu rosto parecia ter sido pensado e talhado com cuidado simétrico de um escultor renascentista. Ela se aborrecia muito quando lhe perguntavam se em dado momento fez alguma coisa para afilar o nariz reto, ou se havia colocado algum ácido ou botox nos seus lábios que tinham aquele formato não muito cheio, mas perfeitamente desenhado e marcado com o formato de coração. Seu cabelo era sempre muito longo, um castanho claro meio acobreado que parecia mel. Sempre preso em uma longa trança feita com esmero. Ela passava horas na frente de um espelho ajeitando aquele belo cabelo.

Me lembro muito de seu cabelo, pois, muitas as vezes quando criança ela me pedia para ajudar-lhe a fazer aqueles penteados. Seus dedos doíam nas juntas, ela dizia. Ela ficava massageando seus longos e pálidos dedos, alisando vez ou outra a aliança de casamento. Quando me olhava, seus olhos azuis me despertavam um sentimento inconveniente de desconforto. Por muitas dessas ocasiões ela ficava me fitando o tempo inteiro, sem dizer ou expressar algum afeto enquanto eu penteava seus cabelos e tentava trança-los. Me acompanhava de um lado para o outro. Eu mal conseguia respirar.

Eu achava que ela não gostava de mim por eu não ter absolutamente nada dela.

Eu era baixinha, tinha predisposição a ganhar peso fácil e acumular gordura na barriga, nos braços e no rosto. Meu rosto, diferente do dela, era muito cheio e redondo. Eu era cheia de sardas perto do nariz, meu cabelo era volumoso e de um preto muito sem vida, portanto vivia com ele preso e muito arrepiado. Meus olhos eram de um castanho clarinho, fundos demais para ser bonito numa criança, e caídos além da conta. Ela dizia que eu tinha olhos de cachorro pidão, que nem o meu pai tinha. 

Quando ela abaixava os olhos, eu relaxava os meus ombros. Conseguia respirar com certa suavidade. Porém, quando ela voltava a me encarar, ela me olhava com uma reprovação tão evidente que aquele azul claro como gelo gritava “postura!”. Eu conseguia ouvir sua voz seca e rouca invadir a minha cabeça, lembrando de que eu nunca curvasse as costas como uma garota derrotada.

“Está torto.” Ela dizia quase todas as tardes.

Eu desfazia seu cabelo.

“Não puxe! Meu couro cabeludo dói.”

Eu puxava as mechas cor de mel como se fossem fios frágeis de vidro. Como se fossem me machucar de verdade se eu fosse muito indelicada.

“Eu estou com fome.”

Dizia eu, um pouco audaciosa. Já tinham passado pelo menos duas horas ali com seus cabelos.

“Você só pensa em comer. Vai ficar ainda mais gorda desse jeito.”

Então eu ficava quietinha. Ela acabava perdendo a paciência comigo segundos depois, e me mandava sair para comer.

Eu ia até a nossa cozinha, onde tudo era muito farto e muito variado. Ela mandava eu comer frutas, castanhas, de preferências as cítricas. Eu odiava laranjas, limas e tangerinas. Pegava então biscoitos que meu pai trazia para mim sem que ela soubesse, os de chocolate com recheio e me enchia deles lá mesmo. Escondia a embalagem na minha roupa, para jogar fora quando fosse para a escola e ela não visse. Bebia um copo de água, e pegava um pedaço de banana.

Lavava as mãos duas vezes, para que o cheiro do sabão ficasse forte e desse para sentir de longe. Voltava até ela, e, como sempre, ela já havia terminado de trançar o cabelo. Me sentindo uma filha inútil, perguntava se eu poderia fazer algo a mais por ela.

“O que é isso nos seus dentes?”

Ignorando-me, Narcisa se levantou e me pediu para sorrir. Eu o fiz, acanhada, culpada, assustada. Havia sido pega.

“Você está comendo biscoitos?”

Assenti. Culpada. Culpada. Culpada. Sua voz partia minha cabeça em duas partes; gorda, gorda, gorda. seu rosto vai ficar imenso.

Ela me olhou, com aquela reprovação que tencionava o ar e me fazia ter muito mais medo do que a iminência de levar uma surra. Apertou o meu rosto com seus dedos longos, pálidos e finos. Pareciam pernas de uma aranha segurando as minhas bochechas.

“Vou te colocar numa atividade física. Chega de ficar em casa só comendo.”

Escutei alguns telefonemas, sua voz seca de muito cigarro sendo extremamente simpática de uma forma que só era com estranhos, ao ponto dela parecer uma estranha quando agia assim. Ficava puxando o cabelo, mechas em volta do dedo enquanto se desdobravam conversas longas recheadas de risos, gargalhadas sonoras e despedidas cheias de calor humano. Quando colocava no gancho, acendia mais um cigarro.

Terminado de tragar o cigarro — ou dois, ou três, ou quatro. — a trança que tinha feito com esmero já estava folgando, prestes a se desfazer. Ela deslizava seus dedos nela, soltando o cabelo. E quando eu estava por perto vendo-a, sentia um cheiro de lavanda que vinha do cabelo cor de mel dela. Mel e lavanda eram uma das coisas agradáveis de Narcisa.

Em dois dias ela me levou numa escola de balé. Eu não queria usar tutus cor de rosa e aquele collant. No entanto, não me atrevi a reclamar sobre alguma coisa sobre isso. Não queria aquelas pernas de aranha apertando meu rosto mais uma vez, me dizendo que eu era feia demais para ser filha de Narcisa. Essa era uma das desagradáveis.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!