Agulhas, Panos e Linhas escrita por wateru


Capítulo 8
Predição




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            Semanas depois, Lúcia estava recomposta. Gradativamente, perdeu o interesse em investigar as verdadeiras intenções de seu pai biológico, agora morto. Narizinho aprendeu a preencher as lacunas de sua mente com outras ocupações, dentre elas a de colecionar.

 

            Ganhara, há pouco, uma canastrinha que sua avó mantinha guardada. Fora a própria caixa, seu item mais valioso era a lembrança do próprio demônio: o relógio de bolso que ela havia recolhido de seu pai antes de queimá-lo. Não pela beleza ou valor monetário.

 

            Cinco dias antes, Lúcia descobriu que nada do que aconteceu se isolou no tempo. Ela, ao jogar Emília no fogo, não sabia que todos aqueles sentimentos, lembranças, memórias – e poderes – seriam transportados para ela. Agora, feliz ou infelizmente, ela possuía todas as memórias de sua mãe. E agora sabia de tudo.

 

            Peculiarmente, Narizinho só manifestava tal habilidade quando observava o tique-taque do relógio. Enquanto ela se perdia entre algarismos romanos e ponteiros, as lembranças desejadas vinham à tona. E foi assim que ela atou as pontas soltas daquela trama.

 

            Emília não contou tudo. Disse a Lúcia apenas o que achou necessário – como sua mãe faria. Emília, involuntariamente, alimentava um certo amor por sua dona. Preocupava-se com ela. Cada fibra de seu corpo [i]mignon[/i], afinal, fora embebida pelo amor mais puro e verdadeiro: o materno. E esse amor ela podia sentir agora, plenamente, como talvez nenhuma outra filha teria a chance de sentir. O sentimento sem medidas ou precauções, a dose pura e densa do amor quase divino. Por sorte de Lúcia, a realidade veio junto com o sentimento de conforto. Pela enésima vez, sua mãe a estaria ajudando mesmo depois de morta.

 

            Sua mãe fora, realmente, uma vítima. Fora pega de surpresa, sofrera as violências mais atrozes, engravidara... Do próprio irmão. O caso de Narizinho não foi o primeiro incesto na família. Nem o segundo.

 

            Fernão era um garoto como os da sua idade. Gostava de correr pela rua com outros rapazes, flertar com as moças que passavam. Tudo até seu pai morrer. Aos dezesseis anos, ele se viu na obrigação de tornar-se o homem da casa, buscar emprego, trazer o sustento para a família. Fernão foi obrigado a largar os estudos para cuidar de suas duas irmãs e de sua mãe. Esta, especialmente, mostrou-se carente de tudo: amor, companhia, atenção... Prazer. A mãe de Fernão passou a procurá-lo para esquecer-se temporariamente do luto de seu marido. Ele, induzido pela submissão à mãe e pela inocência de uma época despretensiosa, confundiu os sentimentos e assentiu. Da primeira vez que aconteceu, totalmente instruído pela mãe, o rapaz chegou a imaginar que aquilo seria o mais correto a ser feito.

 

            A verdade, no entanto, bateu à porta como um carteiro à meia-noite: ninguém quer abrir a porta, mesmo sabendo que pode ser algo importante. A mãe, engravidando do filho, não encontrou outra saída senão engordar absurdamente para disfarçar a barriga. Isso, no entanto, gerou complicações no parto, que a impediram de ver sua filha nascer.

 

            Fernão, chocado com a morte da mãe, sentiu-se culpado pelo acontecido. Contou tudo a suas irmãs mais novas, que aceitaram cuidar do novo bebê como se fosse o último rebento do pai, antes de morrer tísico (N/A: com tuberculose).

 

            O rapaz esperou apenas que a garotinha crescesse um pouco para enviá-la a um internato de freiras. Ele achava que, sem o contato com o sexo masculino, aquela maldição não prosseguiria. Mas ele não imaginou que, ao completar a maior idade, ela escolheria fugir do colégio. Mudou-se de cidade, envolveu-se com um rapaz e se apaixonou por ele. Fernão descobriu onde ela estava e, decidido, resolveu acabar com tudo por ali mesmo. Pensou em se matar depois que o serviço estivesse feito, mas não ocorreu como ele planejara. Sua irmã engravidou e deu à luz uma menina: sua filha-sobrinha-neta.

           

            Fernão não conseguia entender: por que sua mãe havia morrido, mas sua irmã não? Aquilo era errado, estava fora de seus planos. Não esperaria tanto tempo para poder testar outros métodos. Mas, de certa forma, se sentia bem fazendo aquilo com as mulheres de sua família.

 

            Por puro sadismo, Fernão aplicou o mesmo castigo em Lúcia. Ficava feliz, ao menos, em ver que poderia ser o homem da família por alguns momentos. Sua mãe, sua irmã, sua sobrinha... Sua mulher, sua filha, sua neta. Fernão estava orgulhoso por criar uma família inteira com as próprias forças. Sentia-se forte, potente, viril. Mas era ciente da brevidade de sua vida, cujo fim se aproximava com a idade, e desejou interromper o ciclo com Lúcia. Ali sim, estava prestes a terminar com tudo. Saciaria sua vontade com Lúcia, queimaria seu corpo e o de seus pais no fogo das próprias roupas e, depois, se mataria. Para que todos pudessem se encontrar no inferno. Mas, mais uma vez, nada saiu como planejado.


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