Agulhas, Panos e Linhas escrita por wateru


Capítulo 4
Perseguição




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            Lúcia levantou-se da cama, de repente. Ela arfava descompassadamente, e estava toda molhada de suor. O dia estava claro, e a luz entrava pela janela, preenchendo todo o espaçoso quarto. Nem sinal do homem, suas roupas intactas, seu corpo não dava sinais de que havia sido violentado.

 

            – Mais um sonho... – ela disse. Em várias semanas, esta foi a primeira vez que Narizinho usou a palavra “sonho” para se referir às imagens que via durante a noite. Ela mesma se perguntava o que estaria acontecendo com ela. Narizinho passou vários minutos sentada em sua cama, em pleno estado de graça, com uma alegria radiante, que nem mesmo uma garota comum poderia emanar. Ela procurava aquela dor, aquele sofrimento ao qual se acostumara... Em vão. Nem mesmo disso ela conseguiu sentir ódio. Ela estava, simplesmente, feliz. E estava achando isso maravilhoso. Deve ser o céu, pensava. É assim que a Bíblia descreve o sentimento de quem vai para o céu.

 

Narizinho estava convicta de que havia morrido, e agora estava no Paraíso. Só estranhava o fato de ainda estar em seu quarto. Mas isso também não alterou seu humor. Procurou sua boneca, para simbolicamente agradecer à sua mãe. Mas não a encontrou. Ela não estava no lugar onde havia sido deixada. Bonecas não devem ir para o céu. Mas será que estou mesmo no céu? Ou será isso um sonho?

 

Narizinho se beliscou. Curiosamente, não sentiu nada. Ela achou engraçado, e se beliscou mais fortemente ainda. Nada. Nem um pingo de dor. No entanto, a região branca de sua pele ficou vermelha rapidamente. E, em vez de se preocupar, ela apenas achava divertido. Logo procurou outras ferramentas para brincar. Bateu propositalmente o dedão no pé da cama. Sem dor. Abriu a segunda gaveta do criado mudo, achou uma tesoura pequena e foi na direção de seu braço, já machucado pelo beliscão.

 

– Não faça isso! – gritou uma voz feminina, doce, mas com uma expressividade forte. A voz de sua mãe.

 

Narizinho não conseguia sentir medo. Afastou a tesoura do braço, mas não receou em olhar para trás. Mas não era sua mãe quem havia falado. Era uma boneca, que estava em pé, gesticulando à sua frente. Emília.

 

– Desde quando você fala? – indagou Narizinho, curiosa. A expressão séria da boneca não se alterou. – E ainda com a voz da minha mãe!

 

– Tem algumas coisas que eu preciso explicar. – Emília confessou.

 

– Espero que sejam as respostas para as perguntas que eu quero fazer. – Lúcia devolveu, empolgada.

 

– São sim. Agora sente-se na cama.

 

– Mas estou tão bem em pé! Quero saltitar, pular... Há muito tempo eu não me sentia tão feliz assim!

 

– Vamos ser racionais?

 

Vamos ser racionais. Essa era uma frase que Lúcia ouvia de sua mãe, toda vez que estava emburrada, triste ou com raiva de alguma coisa. Essa simples frase de sua mãe fazia com que ela esquecesse todas as alterações de humor e refletisse logicamente no assunto. Foi o que ela fez. Sem ressentimentos ou tristezas, apenas se sentou e raciocinou. Não, isso não é um sonho. Essa frase me faria sair de qualquer transe. E eu ainda estou nesse quarto, com uma boneca viva na minha frente.

 

– Como você sabe conhece essa frase? – Narizinho iniciou.

 

– Isso é uma das coisas que tenho pra falar. Como você sabe, Narizinho, eu fui feita pela sua mãe...

 

– Para me proteger – a menina completou.

 

– Pois bem. Mas não é só no sentido figurado. Digamos que... Sua mãe sabia que algo iria acontecer a eles. E a você.

 

– E por isso ela criou você?

 

– Sim. Ela tinha um dom especial, e isso a fez sentir que algo ruim estava por vir. Cada boneca que ela dava a você, Narizinho, carregava um pouco dessa magia. Mas você sempre recusava todos os presentes dela. Foi por isso que ela me criou. Ela depositou todo o poder que tinha nas agulhas usadas para me confeccionar. E, à medida que ia me costurando, essa força foi sendo transferida para a linha que unia os retalhos. Eu me tornei um recipiente.


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