State Of Love And Trust escrita por LadyCygnus


Capítulo 3
Matushka Rossiya


Notas iniciais do capítulo

Estar de volta à terra natal nem sempre é algo maravilhoso, especialmente quando você percebe que a maioria das suas lembranças são carregadas de tristeza e que sua mente (e seu coração) já não estão mais tão vinculados àquele lugar.



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Era óbvio que ele dormiria mais do que havia planejado e sairia do hotel mais tarde do que gostaria - Hyoga gostava de dormir, era um fato conhecido por todos. Onde encostava, dormia - e isso rendia várias brincadeiras, especialmente vindas de Seiya. Pensou no amigo; como estariam ele e a irmã? Seika tinha uma noção que era a irmã de Seiya, mas havia um lapso de tempo perdido entre eles e uma certa distância que estavam tentando resolver para conhecerem-se melhor. Fez uma nota mental para que, quando chegasse em Kohoeutek, escrevesse para Seiya para saber como o amigo estava. 

Ao olhar para o lado e reparar no relógio, despertou de vez - já passava das 9 da manhã e tinha que correr para seguir para o vilarejo, que ficava ao norte de onde ele se encontrava e o percurso levaria algum tempo, contando com a viagem de marshrutka e a caminhada. Apressou-se em tomar um banho, vestir-se adequadamente - dessa vez, um casaco mais pesado seria necessário - e, antes de sair de vez do hotel, mandar uma última mensagem para Shun. Sabia que o namorado já estava acordado - apesar da distância, Yakutsk e Tokyo encontravam-se no mesmo fuso horário - e enquanto esperava uma resposta, tomava um chá e ajeitava suas coisas. Shun deveria estar treinando, não responderia àquela hora. Os lábios se contorceram de maneira resignada - já havia se acostumado com a praticidade da tecnologia da vida normal e estar de volta ao vilarejo significava que teria restrições impostas pela localização e clima. Por mais que ele quisesse reclamar, sabia que não tinha o direito de fazê-lo - essa era a vida que tinham que seguir e tinham que ajeitá-las ao redor dessa situação.

 

Já na recepção, pagando pela estadia, observou que a senhora que ali estava tinha um bloco de anotações e pensou em como poderia escrever para Shun - lembrou-se da caixa postal que Camus possuía, sabia que ela ainda estava ativa e esta era uma das maneiras que poderia ter contato com o mundo exterior. Precisava seguir para o centro comercial antes de ir para o vilarejo - havia compras que precisava fazer, não demoraria muito tempo - e, por lá, a primeira coisa que faria seria ir à uma das minúsculas agências de correios e enviar uma carta para Shun - e rezar para que nenhuma nevasca não interrompesse o serviço aéreo que levaria as postagens para outro lugar que não fosse a Yakutia.

 

No centro comercial de Yakutsk, Hyoga andava pelo Kruzhalo (mercado) observando o que poderia comprar na feira a céu aberto. Peixes congelados ou secos, carnes de rena ou de cavalo salgadas, casacos e botas feitas de pelos dos animais - para quem é de fora, obviamente carne de renas, cavalos e os casacos de pele podem parecer crueldade com os animais, mas são os recursos que as pessoas têm para manterem-se aquecidas no rigoroso inverno da região. Comprou lascas de peixes, purê de batata instantâneo, chás, grãos, cogumelos e morangos - conseguiria manter-se por alguns dias até precisar voltar à Yakutsk comprar mais algumas coisas. Antes de ir em direção ao lugar onde iniciaria sua jornada para Kohoutek, olhou mais uma vez em direção à pequena agência postal - como prometido, a primeira coisa que fez ao chegar ao centro velho foi a de enviar uma carta a Shun. No envelope havia um cartão postal com a imagem de um fóssil de mamute, no verso, escrevera algo em russo cursivo “Conto os dias para te ver de novo. :)”, além de uma pequena folha com um recado.

 

Achei que meu celular fosse pegar por aqui, ledo engano. Precisarei vir algumas vezes para Yakutsk, tentarei resolver essa situação. Existe uma caixa postal que está no nome do Camus, não consegui acessá-la, mas agora há uma em meu nome. Me escreva, por favor.

Alexei.

 

PS.: tente decifrar o que está escrito no cartão postal.



O primeiro ônibus que o levaria ao norte de Yakutsk já estava parado, andou tranquilamente e entrou no mesmo, pagando a tarifa e sentando-se ao fundo. Ainda esperou por alguns minutos até o motorista do ônibus deduzir que mais da metade dos assentos já haviam sido ocupados e que ele poderia sair em viagem. Algumas pessoas o olhavam com desconfiança - apesar da fisionomia ser de alguém nascido na região, a mochila, a caixa da armadura (mesmo coberta, as dimensões pareciam incomodar os outros) e as sacolas com as compras chamariam a atenção - mas sabia que muitas daquelas pessoas provavelmente se conheciam de vista, já que algumas conversavam entre si e ele era só alguém considerado um forasteiro. Tentou não pensar no incidente ocorrido na noite anterior - a verdade era que teria muito tempo para pensar sobre aquilo e não queria estragar a volta à Kohoutek pensando nisso.

 

Durante o trajeto até Zhatay - onde o ônibus pararia -, fechou os olhos e tentou descansar. Era bem difícil conseguir dormir já que o ônibus desviava dos buracos na estrada. Pensou em como seria mais fácil se o rio Lena já estivesse completamente congelado e os carros pudessem transitar por ali. Quando abriu os olhos, percebeu que uma garotinha o observava; ela não deveria ter mais de cinco anos e grandes olhos castanho claros prestavam atenção em Hyoga. Sorrindo, ela esticou o corpo no banco e levou a mão direita aos cabelos de Hyoga. 

 

“Olga! Ne meshay muzhchine!” (não perturbe o homem!)

 

“No babushka, yego volosy krasivyye...” (mas vovó, o cabelo dele é lindo!)

 

“Olga...”

 

“Ne volnuysya, ona menya ne bespokoit.”(não se preocupe, ela não está me perturbando) - Hyoga respondeu, olhando para a senhora que parecia estar cansada.

 

A senhora assentiu com a cabeça, dizendo algo para a garota num misto de russo e dialeto evenk; pelo o que Hyoga conseguiu entender era algo sobre ela não falar com estranhos. O loiro sorriu para a garota, lembrando-se dos conselhos que a mãe lhe dava quando ele era criança. Após algum tempo, ela virou-se para trás, ainda observando os cabelos dele e, depois de algum tempo, observando os cabelos dos outros homens no ônibus - todos eles com cortes que lembravam cortes militares, cabelos curtos e era óbvio que o cabelo dele chamaria a atenção. Em outra situação, aquele olhar curioso vindo de qualquer outra pessoa o deixaria irritado, mas havia algo no olhar da garota que não o incomodava - talvez fosse a inocência dela, o fato dela não ver nada de errado com os cabelos longos que, na noite passada, quase lhe renderam uma briga.  As duas desceram do ônibus antes que o mesmo chegasse ao destino final, Zhatay. Hyoga viu a garota acenando para ele e ele acenou de volta, sorrindo.

 

Quando o ônibus chegou em Zhatay, Hyoga andou por algum tempo até onde uma  marshrutka encontrava-se parada; deu sorte de conseguir embarcar - mas não sentou-se, preferindo ficar de pé e vigiando suas coisas. As pessoas o olhavam com mais desconfiança ainda e ele tentava justificar pelo simples fato de conhecer a região e saber que por ser uma região rural, as pessoas eram ainda mais avessas às pessoas de fora. 

 

Durante o caminho, não conseguia parar de pensar em Camus. Lembrou-se de quando começaram a fazer o trajeto para fazer compras com o mestre e como Camus chamava a atenção, embora sempre discreto e cordial. Havia coisas que ele não entendia por ser uma criança àquela época. Isaak e ele sempre conversavam sobre isso; não entendiam como as pessoas podiam tratar Camus da maneira que o tratavam - como poderiam falar do rosto dele, era óbvio que ele era um homem e os cabelos longos eram uma opção dele, assim como as unhas - o que havia de errado? - ; o mestre era sempre cordial com todos, embora houvesse a frieza típica dele… Os habitantes de Kohoutek o respeitavam, mas houve algumas vezes que tanto ele quanto Isaak ouviram comentários estranhos sobre o Cavaleiro de Aquário - especialmente durante as visitas de Milo -  e só comentavam entre eles, nunca com o mestre - se aquilo os chateava, era óbvio que chatearia o mestre também.

 

As palavras e as atitudes voltavam à mente de Hyoga e ele pode entender o que Camus passava, pode entender melhor o que Camus lhe disse sobre o mundo ser bem diferente daquele idealizado pelos garotos após conhecerem os ideais dos Cavaleiros de Athena.

 

“Apesar de tudo, mesmo dentro da sociedade dos guerreiros de Athena, existem conceitos e atitudes tão mundanas quanto as que presenciamos aqui fora. Existe a cobiça pelo poder, a inveja, a ganância, o desprezo por vidas alheias, o ódio… eu sei que é bem contraditório, mas é por isso que eu sempre digo que as emoções de vocês não devem estar presentes em um campo de batalha.”

 

Foram poucas as vezes em que Camus, Isaak e ele tiveram alguma conversa com algum teor maduro, onde o mestre expôs algumas das visões e até mesmo se mostrou vulnerável em algumas ocasiões. Os dois adolescentes apreciavam esses momentos, entendiam que Camus crescera junto deles - sabiam que ele era um adolescente quando fora designado mestre - e que ele genuinamente gostava dos dois garotos. Hyoga lembrou-se de quando Isaak faleceu - ou melhor, fora levado pelas correntezas quando tentou salvá-lo - e como o baque atingiu Camus. Quando o francês o encontrou na beira do buraco aberto no gelo, Hyoga estava prestes a sucumbir pela hipotermia; algumas imagens desconexas ainda vinham à sua mente: lembrava-se do desespero de Camus, os chacoalhões para que ele acordasse, de imagens turvas por causa de fumaça, de barulhos de tambores e de palavras em evenk. Quando despertou, a udagan ainda estava ao seu lado, assim como o ruivo - mais pálido que o normal.

 

“Isaak, cadê ele? Ele me tirou do rio, mas a correnteza...” - O russo tentava levantar-se, mas fora contido por uma mulher mais velha. Reconheceu a voz da mesma vinda dos cânticos que ouvia enquanto desacordado.

 

“Ne govori. Pokoit’sya.” (Não fale. Descanse.) - A voz da shaman reverberava em seu corpo, de maneira igualmente autoritária e gentil.

 

“Me desculpe, Camus… me desculpe...”

 

Nunca esqueceu o olhar de Camus àquele dia: um misto de alívio, reprovação e enorme tristeza tomavam os olhos castanho-avermelhados do mestre. Nos dias seguintes após aquela tragédia, Hyoga tentava arranjar um momento para conversar com Camus, mas as negativas do francês em ter aquela conversa pioravam a situação do russo: Isaak estava morto por culpa dele - mais um na lista de Hyoga, mais alguém que ele nutria algum tipo de sentimento estava morto - e a única pessoa com quem Hyoga teria de conviver por mais algum tempo o ressentia. Os treinos eram silenciosos - não havia mais quem quebrasse o silêncio com piadas ou questionamentos -, a tensão entre mestre e pupilo parecia crescer mais e mais; ambos olhavam o buraco aberto na superfície congelada com um pesar enorme. Somente no décimo segundo dia após o incidente é que Camus resolveu falar alguma coisa. No meio de uma noite relativamente morna - era primavera, embora o ar gélido sempre estivesse presente -, Camus abriu a porta do quarto que Hyoga e Isaak dividiam, entrando e sentando-se na cama que antes fora do finlandês. O loiro, sentado em sua cama e observando o mundo fora da janela, parecia não ter percebido a presença do mais velho até que o mesmo começasse a falar.

 

“Eu sei que você sente muito, Alexei… eu não posso imaginar o tamanho da sua dor ao ver sua mãe voltando para aquele navio, mas eu não consigo entender essa sua obsessão em salvá-la quando não há uma razão para tal. Sinto em dizer, mas ela está morta há anos, nada que você faça a trará de volta.” - O russo não esboçava nenhuma reação, mas Camus sabia que ele o ouvia atentamente. “A morte dela não é sua culpa, já a do Isaak… não é totalmente sua culpa, eu também deveria estar por perto, eu deveria ter evitado isso quando percebi… ”

 

“Eu sei que pedir perdão ou desculpas não vai apagar ou diminuir a minha culpa pela morte dele, Camus… mas nunca quis que isso acontecesse, preferia que tivesse sido eu.”

 

A voz do mais novo, rouca pelo desuso, demonstrava todo o pesar que ele carregava dentro de si. Não era a primeira vez que o francês ouvia o pupilo desejar que fosse ele levado pela correnteza e tal afirmação fazia com que as sirenes em sua cabeça tocassem, com medo de que o russo fizesse algo enquanto consumido pelo remorso e luto. Tomado pelo medo e pela raiva momentânea, Camus rapidamente levantou-se da cama de Isaak, atravessando o quarto e parando em frente ao russo. Sem pensar, a mão esquerda desceu com força no rosto de Hyoga; o barulho do tapa assustando os dois.

 

O tapa levado, até o presente dia, foi mais dolorido que qualquer golpe que levara dos oponentes durante as batalhas em que lutou - nunca percebera até aquele momento o quanto o egoísmo da necessidade de ter a mãe por perto não só afetava a ele, mas também as pessoas ao redor dele. Pode ver que Camus não era como a parede de permafrost que estava por toda a Yakutia, que ele era tão vulnerável quanto qualquer humano.

 

As recordações nublavam a mente do russo, fazendo com que ele se esquecesse onde estava, por um momento. Levou a mão ao rosto, sentindo a pequena cicatriz do ferimento que Isaak lhe causara - a pele havia sido cortada, algo que lhe rendera a marca na região da sobrancelha e o golpe de Isaak em seu olho causou somente um arranhão na córnea -, se recompondo após alguns segundos. Sabia que faltava pouco para chegar em Tulagino e a ansiedade aumentava mais, queria simplesmente sair dali e andar o resto do caminho a pé.

 

—---

 

Honestamente, Hyoga não conseguia precisar quanto tempo havia se passado desde que descera da marshrutka e começou a caminhar; a angústia de lembrar-se do passado o tomava aos poucos, fazendo-o se arrepender de ter aceitado a missão dada por Saori. Havia tanto dentro dele que precisava ser confrontado, exorcizado e estar isolado de tudo, num lugar que lhe trazia mais memórias amargas do que felizes não o ajudaria. Apesar das pessoas do vilarejo serem solidárias e familiares com a história dele, Hyoga sentia que existiam partes dele que ele não conseguiria mostrar para eles; os conflitos, dúvidas e amarguras eram sentimentos compartilhados com outras pessoas que o entendiam de uma maneira diferente - as pessoas do vilarejo, acostumadas com a ideia de que os cavaleiros de gelo de Athena eram heróis, o viam como tal e ele não se via daquela maneira; não se via com aqueles olhos. Ele não estava no mesmo patamar de Camus e haviam outras pessoas que deveriam ser os heróis para aquelas pessoas. 

 

Após caminhar muito, a área que era a do gerador da vila finalmente aparecia no horizonte; mais alguns minutos de caminhada e ele finalmente chegou em Kohoutek. Algumas coisas haviam mudado desde que ele saiu de lá pela última vez, antes da batalha contra Hades - a estação onde o gerador estava tinha um novo equipamento, havia mais linhas de transmissão e um novo espaço ao lado da garagem comunitária (os carros das pessoas que ali residiam ficavam em garagens aquecidas, caso contrário não funcionariam por causa do frio intenso). Já escurecia, embora não fosse nem seis horas da tarde e algumas pessoas faziam suas tarefas: alguns estavam levando lenha para suas casas (os geradores do vilarejo poderiam falhar à noite e o espírito soviético de estar sempre preparado ainda estava bem presente por lá), outros voltavam das áreas de criações - renas e cavalos eram criados ali; o vilarejo fora fundado por nativos e colonizadores e, aos poucos, foi recebendo mais gente, principalmente pessoas que saiam dos gulags e que não voltariam para as áreas mais povoadas por medo da perseguição ou por simplesmente terem se acostumado à vida nas regiões geladas. As crianças não corriam e brincavam - não se encontravam no vilarejo, estavam em colégios internos e Hyoga sabia que Yakov também estava com as outras crianças no colégio - era mais fácil para os pais, já que o vilarejo era pequeno e não havia uma escola ali, sem contar que a tradição era a de mandar as crianças para esses colégios onde aprenderiam não só sobre a cultura do país e mas também sobre as culturas dos povos nômades que ainda habitavam a região. Algumas das pessoas que o viram chegar, correram para cumprimentá-lo, outras acenavam de longe, sempre sorrindo.

 

“Dobro pozhalovat’ obratno, Alyosha!” (Bem vindo de volta!)

 

Ilya largou a lenha em qualquer lugar e correu na direção de Hyoga. O senhor, além de avô de Yakov, era também a autoridade máxima do vilarejo - algo quase como um prefeito - e tinha um carinho muito grande por Hyoga, Camus e Isaak. Lembrava-se do trágico naufrágio onde Natassia perdera a vida e do garoto - isso antes das autoridades aparecerem e levarem o menino; não soube mais dele por algum tempo até que ele voltou para a região para o treinamento. Ilya costumava dizer que Isaak e Hyoga apareceram na vida de Camus não porque o ruivo faria deles exímios guerreiros, mas sim que seriam uma família, de uma maneira ou de outra. A família de Ilya sempre fora responsável por acolher os cavaleiros de Athena na região das geleiras eternas e o velho tinha orgulho dessa responsabilidade. Quando o loiro viu o senhor vindo em sua direção, colocou as coisas no asfalto gelado e abriu os braços, indo em direção dele e o abraçando. 

 

“Spasibo, dedushka!”

Hyoga não conhecera seus avós, mas Ilya era um homem a quem o cavaleiro de Cisne considerava como um avô - e não somente ele, mas Isaak e até mesmo Camus chamavam o velho Ilya de ‘dedushka’. E o loiro deixava-se ser chamado pelo apelido que só sua mãe o chamava, Alyosha. No começo, era estranho ouvir outra pessoa chamá-lo por aquele nome - assim como ‘Alexei’ era estranho saindo da boca de outras pessoas e era por isso que somente os mais próximos sabiam sobre a existência de um primeiro nome -, mas o loiro acostumou-se a isso. Havia um sentimento verdadeiro no abraço de Ilya, como se o mais velho realmente tivesse sentido a falta do mais novo. O líder do vilarejo cuidava de todas as pessoas ali presentes, lutava para que todos tivessem uma vida digna e com acesso às coisas que necessitassem, fossem estas remédios, saúde, educação ou qualquer outra coisa. 

 

Após separarem-se do abraço, Ilya fez menção para Hyoga o seguir até sua casa e, no caminho, contava sobre o novo gerador e as linhas de energia - ”Precisávamos de um novo gerador, aquele antigo já estava falhando muitas vezes! Ah, não se esqueça de levar um pouco de lenha, caso ele pare de funcionar! O próximo passo é uma antena de telefonia, já fizemos o pedido em Yakutsk, em alguns meses não precisaremos mais de telefones via satélite!”. Ilya estava empolgado com alguns apetrechos modernos e que facilitariam a vida dos habitantes do vilarejo.

 

“Mas me diga, Alyosha: está feliz em estar de volta à Matushka Rossiya?”

 

“Sim, dedushka! Estou feliz por estar de volta!” - o russo sentiu-se mal por mentir ao senhor que considerava ser o seu avô, mas não conseguiria dizer a verdade sobre como realmente se sentia; tinha medo de magoar o senhor.

 

“Bem, bem! Sente-se, Alyosha! Vou preparar um chá para nós e entregar algumas coisas que chegaram para você! Camus nos avisou que você viria pra cá, então já abrimos a casa e arrumamos algumas coisa, o carro...”

 

“Camus avisou?”

“Sim… há uns cinco dias recebi um comunicado do Santuário, havia uma encomenda em Yakutsk para você. Vá à sala, no canto da mesa há uma caixa para você. Mishka enviou... ”

 

“Ilyushenka, você só está chamando Camus de Mishka porque ele não está por perto...” - o russo gargalhava, algo que assustou o outro homem, que resmungava algo pelo susto tomado. - “Se ele estivesse por perto, te fuzilaria com o olhar!”

 

“Michel Gabriel Camus é muito francês, Alyosha!”

 

“Mas ele é francês, dedushka!”

 

“Não quando está em terras siberianas! Aliás, nem francês quase ele fala mais! Veio pra cá ainda pequeno, me lembro dele chegando aqui em Kohoutek, assustado e sem entender nada...”

“Camus, assustado? Dedushka, por favor. Pare com a vodka enquanto é tempo!”

 

Ilya jogou a primeira coisa que viu - uma luva térmica em forma de galo - na direção de Hyoga, que ria ainda mais. O velho sorriu para si mesmo ao se virar para onde o samovar estava; a chaleira no topo possuía chá preto quente e o anfitrião só precisava das xícaras. Ilya, com sua idade e sabedoria acumulada, sabia que Hyoga sempre teria uma ligação profunda com aquele lugar, mas não era idiota ao ponto de acreditar que o cavaleiro de Cisne estava realmente feliz em voltar àquele lugar: podia sentir o peso que o loiro carregava em suas costas e coração, mas não tocaria no assunto a não ser que o mais novo o fizesse.

 

“Abra a geladeira e pegue um vidro de geléia, por favor. Yulinka fez semana passada, está muito boa!”

 

Continuaram conversando por algum tempo, enquanto bebericavam o chá e comiam alguns biscoitos. Ilya contava sobre o progresso de Yakov no colégio interno e Hyoga comentava em alguns pontos - o chá estava delicioso, a geléia de morangos adocicando o líquido quente o fez pensar no japonês que amava morangos - a lembrança trouxe um sorriso aos lábios do russo, fazendo-o corar.

 

“Alyosha?”

 

“Mne ‘zhal, Ilyushenka! Estava lembrando de algumas coisas que um dia eu te conto… hoje estou muito cansado.” - Sorriu. “Ivan está por aqui?”

 

“Sim, sim...” - Ilya saiu da cozinha, caminhando calmamente pela casa. Hyoga colocava as xícaras na pia, guardando a geléia na geladeira e a lata de biscoitos no armário. Ouviu o mais velho resmungar algumas coisas, um barulho vindo do quarto de Yakov. Pôs-se a lavar as xícaras e colheres e quando terminava, sentiu algo enroscar-se em suas pernas.

 

“Ivan, kiska!”

 

Ivan, o gato que Camus cuidava há alguns anos e que era querido por metade do vilarejo (a outra metade apenas tolerava o gato), pareceu reconhecê-lo - não fazia tanto tempo que Hyoga havia saído de Kohoutek - e deixou-se ser pego no colo, miando para o loiro. Os pelos antes completamente pretos já tinha uma coloração mais clara, mas o gato continuava amável e fofo. Ilya sorriu ao ver os dois juntos.

 

“Eu sei que você precisa ir, mas saiba que ele foi bem cuidado durante sua ausência.”

 

“Spasibo, Ilya!”

 

“Alyosha, por favor, venha conversar comigo quando precisar de qualquer coisa. Yakov me pediu para que eu visitasse o Lena e deixasse flores perto da geleira, mas você sabe como eu me sinto indo até lá...”

 

“Dedushka, você sabe que não precisa ir até lá… Yakov me via mergulhando por lá e sabia que aquilo era importante pra mim àquela época. Eu… eu posso até mergulhar àquela profundidade, tenho o poder suficiente para isso, mas eu sei que isso não é a vida que ela queria para mim.”

 

O loiro acariciou o gato e o beijou antes de colocá-lo no chão; Ivan miou mais uma vez antes de colocar-se à frente de Ilya. A realização de ter o poder e a força suficiente para descer até a fossa onde sua mãe estava foi um momento de amadurecimento - lembrou-se da conversa que teve com Shun há alguns meses e de como despejou todas as inseguranças sobre não visitar mais o túmulo da mãe. O japonês, sempre tão calmo e sábio, deixou que o outro chorasse tudo o que tinha para chorar para então oferecer conselhos ao então amigo.

 

—---

 

“Hyoga, eu não posso ser a pessoa que vai te dizer o que você deve ou não fazer, essa decisão tem que vir de você. Eu sei que você tem esse laço com a sua mãe, especialmente porque você viu tudo o que aconteceu… Você me contou coisas que você não contaria pra mais ninguém e eu sei que nem o Camus sabia disso… você carrega algo dentro de você, uma culpa que não é sua, Hyoga. Você é sim forte, mas eu acho que sua mãe não quer ver você vivendo uma vida de penitências pela morte dela, pela morte do Isaak e pela morte do Camus.

Dói, despedidas machucam e carregar essa culpa que não é sua só vai te fazer sofrer… eu não gosto de vê-lo sofrendo, Alexei.” - a presença quente de Shun o envolvia e parecia apaziguar o constante sentimento de culpa do russo. - “Qual é a memória mais feliz que você tem de sua mãe?”

“Estar em uma casa com ela… me lembro que ela havia feito blinis e que cantarolava algo que eu acho que era alguma das músicas d’O Quebra-Nozes… ela dançava e os cabelos dela se soltaram, pareciam dançar junto. Ela me pegou no colo e me rodopiava.”

Shun sorriu, observando Hyoga sorrir e limpar as lágrimas com as mãos. Uma gargalhada veio logo em seguida.

 

“Ela rodopiou tanto que nós dois caímos no chão. Eu me lembro da risada dela, especialmente quando eu me levantei e pendia para os lados, ainda tonto. Eu deveria ter uns cinco anos e me lembro que ela ria bastante da situação, mas ela também dizia que o som da gargalhada de felicidade que eu soltava era o melhor som que ela já havia escutado.”

 

“Eu acredito nela.” - Ao dizer isso, Shun empurrou Hyoga com o ombro, sorrindo logo em seguida. Os dois chegaram a conversar mais vezes sobre a decisão de Hyoga de não mergulhar mais ao navio e o russo sentia-se cada vez mais leve em relação a isso.

 

—---

 

“Ilya, você se importa em me dar um pouco da ração do Ivan? Tenho certeza que...”

 

“Alyosha, Alyosha… pode pegar sim, você sabe que sim! Quer ajuda com tudo isso?”

“Pode ficar sossegado, consigo levar tudo! Aposto que o Ivan vai adorar ficar dentro da caixa até eu chegar em casa!”

 

Hyoga sabia que deveria ter aceitado a ajuda de Ilya, mas de um jeito de colocar tudo de uma maneira que conseguisse carregar - o problema era Ivan, que não queria ficar dentro da caixa de papelão e sim arranhar a capa que cobria a caixa da armadura de Hyoga. Voltou à casa de Ilya e pediu pela caixa de transporte do gato e acabou saindo de lá com um sled e puxando seus pertences no mesmo. Após caminhar até a área afastada onde a casa que passara tantos anos ficava, suspirou ao ver a mesma. Não tentou nem procurar pela chave que possuía, já foi no esconderijo da chave reserva - embaixo de uma tábua solta no piso da varanda de madeira - e respirou fundo ao finalmente abrir a porta da casa, abrindo os olhos e olhando o interior escuro. Havia luz, ele sabia disso, mas foi colocando os pertences dentro da sala, deixando a caixa de transporte de Ivan por último e levantando a grade da mesma, para que o gato pudesse perambular pela casa. Fechou a porta e acendeu a luz, rumando para a cozinha e guardando as compras que fizera e os presentes de Ilya - “Yulinka fez muita geléia e muitos biscoitos, Alyosha! Por favor, não me deixe morrer de diabetes!”. 

 

Olhou ao redor, vendo Ivan subir na poltrona de Camus e arranhar a colcha que ali ficava - sabia que o gato estava reconhecendo o ambiente, já fazia algum tempo que ele não entrava. Enquanto o gato se acostumava novamente à casa, Hyoga abriu uma torneira e constatou que havia água; deixou a água correr algum tempo e saiu na varanda para recolher a lenha ali armazenada, colocando alguns pedaços na lareira e começando o processo para acender a lareira. Quando percebeu que a fumaça subia pela tubulação e que não havia nada entupido, colocou a lenha e esperou até que o fogo pegasse na mesma. Ivan ainda estava na poltrona de Camus, os pertences de Hyoga do outro lado da sala. O loiro não conseguia tirar os olhos da caixa parda que estava junto de suas coisas - a letra não era a de Camus, mas Ilya afirmara que o Cavaleiro de Aquário havia lhe informado sobre a chegada do pupilo dentro de alguns dias. Enquanto considerava se prepararia ou não o samovar para tomar chá durante a noite, Hyoga dirigiu-se ao outro lado da sala, finalmente parando em frente à caixa e procurando algo para abri-la - foi até a cozinha e buscou uma faca para abrir as camadas de fita adesiva que envolviam e lacravam a caixa.

 

Controlou a ansiedade ao cortar a fita adesiva, mas quando finalmente abriu a caixa, as folhas dobradas por cima de livros - bem, ele assumia que seriam livros - e um envelope pardo com o selo do Santuário chamaram sua atenção. Pegou as folhas dobradas, demorando um tempo para reconhecer a letra de Camus - havia algo que demonstrava um esforço do mesmo em manter a letra legível; Hyoga conhecia muito bem o mestre e sabia que ele sempre fora zeloso com a própria letra (e fazia de tudo para que o próprio Hyoga e Isaak também tivessem letras legíveis) - e começou a ler. 

 

O conteúdo da carta era uma mistura de revelações pessoais, expiações por pecados - não existentes, na opinião de Hyoga - e uma explicação para todos aqueles livros.

 

Livros não, diários. A missão de Hyoga na Sibéria estava naqueles diários.



—---

“Mne ‘zhal” = Me desculpe.

“Alyosha” é o diminutivo de Alexei, em russo, assim como “Ilyushenka” é o diminutivo de Ilya.

“Dedushka” = vovô.

“Spasibo” = obrigado.

“Kiska” = gatinho, gato.

“Marshrutka” é um tipo de van que faz um serviço tipo lotação na Rússia. Os motoristas costumam ser bem rudes - poderiam assistir Choque de Cultura e esfriar a cabeça, hahahahaha!

“Matushka Rossiya” é como os russos chamam a Rússia; Mãe Rússia.

Samovar = como vou explicar um samovar? Hahahahha. Bem, um samovar é um item histórico, patrimônio russo (assim por dizer)! É uma “chaleira” que aquece a água para que os russos tomem chá - daí a chaleira em cima do samovar, onde o chá mais concentrado fica. Tinha um na casa da minha avó - e não, não somos de família russa! 

“Evenk” é um dos inúmeros povos nativos que habitam a Yakutia.

“Udagan” é uma shamã.



 




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Notas finais do capítulo

Espero que estejam gostando. Me desculpem pela demora em postar esse novo capítulo, mas a vida acaba interferindo e o tempo - e a inspiração - parecem fugir. ♥



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