Tratava-se do mais deslumbrante dos vidros, o paraíso azulado no qual penetrava a mais pura das luzes. Olhou encantada, seu coração palpitava, os pés estavam nus e a cada passo todo o vidro tilintava como sinos.

Pisava, devagar, os vidros tão frágeis, ela de carne, de ossos duros, corpo robusto. Caminhava e a voz de outra criança sussurrava que seu peso quebraria o vidro.  

Seus pés ainda estavam sujos, a terra de sua infância, onde ali existia apenas a limpeza. E a firmeza da terra foi trocada pela fragilidade do vidro. Vidro frágil, vidro que ela tinha de contar os passos e prender a respiração. Ela respira, cada vez mais devagar, e implora que não se quebre a perfeição do vidro. "Tarde, tão tarde", ela percebe com horror.

Sob o vidro ela via o preto, a fera de dentes pontudos esperava por ela, sob as rachaduras, sob a beleza do vidro. Ouvia agora gritos; gritos que ela achou que fossem seus passos estremecendo o vidro. 

As lágrimas nasceram nos olhos, os pés sujos de terra se limparam no vidro, e ela não se lembrava de tê-los limpo. "Por que chorar pela sujeira? O vidro é tão bonito!". Ela soluçou e ergueu os olhos das sombras. Era deslumbrante, seus pés se tornaram leves e ela já não ouvia o som das rachaduras.

Deixou-se guiar pela voz do vento que ali não existia. Riu, lembrou do passado e das pessoas que ela deixou para trás. Sentiu pena, lamentou por ficarem na terra, outras por se deixarem na água.  

Pisou mais forte, abraçou as próprias carnes, o prazer de sentir os pés firmes no chão de vidro. 

O vidro quebrava e ela não via, via somente a beleza do mundo e o prazer de estar limpa. 

O vidro se quebrou, ela caiu, e o monstro a fez em pedaços. E seus pedaços encontraram os pedaços das pessoas que ela amava e das quais ela ria.

O buraco outra vez se cobriu de vidro e se tornou belo, pronto a receber a próxima criança.