Concreto, aço e luz escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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Espessos cabos de aço se misturavam e se contorciam enquanto grandiosas criaturas metálicas se descolavam no ar ignorando as leis da gravidade. Engrenagens e pistões se movimentavam intensamente, ao mesmo tempo em que o som grave e voraz das peças cortava a noite fria e letal. Frontalmente, tais criaturas não tinham face. O olho, talvez, nada mais era que um pequeno círculo do qual saía luz negra. Era a escuridão sendo jogada no ambiente noturno, trevas somadas a mais trevas. O grande antro da noite.

Quase invisíveis, pequenas silhuetas eram vistas a alguma distância. As criaturas, que iam de um lado para o outro, de vez em quando passavam próximas de tais elementos arquitetônicos. Eram antigos prédios abandonados que pareciam pequenas peças diante da imensidão daquele lugar esquecido por todos. Das suas janelas não jazia mais luz alguma. Na verdade, o vidro envelhecido e quase opaco tornava a escuridão ainda mais escura para quem estivesse ali dentro. Mas havia quem ainda morasse naquele inferno?

Sentado e encolhido, alguém abraçava suas próprias pernas enquanto jazia embaixo de uma antiga mesa de madeira empoeirada. Trêmulo, esse pequeno serzinho não sabia o que fazer. Estava ali há horas? Dias? Anos? Não saberia mais dizer. Talvez fosse uma típica excursão de férias pelos pontos mais angustiantes que poderia imaginar. Não saberia responder. Havia perdido a noção do tempo e, talvez, a própria noção de identidade. Era apenas um ser vivo num mundo de seres metálicos.

A verdade era tão trágica que, em determinando momento, o alguém torceu para encontrar uma aranha na mesinha empoeirada. Qualquer sinal de vida seria milagroso e encantador, mas não foi o caso. Não conseguiu enxergar nem mesmo teias do aracnídeo. Também não via nem ouvia insetos ou qualquer outros seres que fossem. Estava só. Sempre só. Ele, as máquinas e o escuro. E, mais uma vez, abraçou as pernas com força e se encolheu no próprio abandono.

Do lado de fora, mais criaturas gigantescas passaram ao lado do prédio. Tudo tremeu, não só o serzinho. Cercado de medo, sentiu uma ponta de curiosidade. Colocou as mãos sobre a mesa e, erguendo-se cautelosamente, pôs os olhos em direção da janela envelhecida. Vendo sombras entre mais sombras, entendeu que não entendia nada. Talvez fosse melhor só aceitar. Talvez. Mas não era o caso.

No mais alto céu sem sol ou lua, o alguém percebeu um piscar. Uma luz que existiu por uma fração de segundo antes de se extinguir, aparentemente. O que seria aquilo? Não se lembrava se já havia visto aquilo ou se já tentara descobrir do que se tratava. No entanto, o simples deslumbrar daquele belo contraste o deixou paralisado por um breve momento. Com os olhos fixos no céu, aguardava ansiosamente para o retorno daquele luzinha. Mas nada. O prédio tremeu novamente quando mais uma criatura feroz e metálica passou pelas proximidades. Caindo em desânimo, o alguém sentou-se mais uma vez. No entanto, não agarrou as próprias pernas. Ao invés disso, ele começou a pensar.

E se aquela luz representasse algo de valor? E se aquela luz fosse uma chance de escapatória? E se? O alguém odiava a incerteza, mas detestava ainda mais a escuridão a qual estava inserido. Deveria tentar buscar a luz, acreditou. Afinal de contas, o que de pior podia acontecer? Já estava no fundo do poço. Ser devorado por uma criatura metálica de mais de vinte metros não parecia ser tão pior do que uma vida condenada ao isolamento e a angústia. Iria tentar algo diferente.

Colocando suas mãos parcialmente humanas no chão, levantou-se vagarosamente enquanto buscava se desviar das janelas e de qualquer abertura que permitisse que aqueles odiáveis seres o vissem. Ainda que estivesse no escuro, pôde ver que tinha dois dedos feitos de aço, fato que o assustou. Mas não podia parar por isso. Caminhou em direção das escadas e desceu um, dois, três, quatro andares. Enquanto descia, sentiu tudo tremer por umas duas vezes, mas manteve-se firme em seu propósito. Finalmente no térreo, vislumbrou a porta que indicava a saída daquele prédio imundo.

Medo. Sentindo-se dominado, o alguém pensou em simplesmente recuar. Pensou, ainda que por um breve momento, em subir as escadas e se esconder debaixo da mesa mais uma vez. Talvez pudesse se acostumar com isso. Talvez fosse o simples estado natural das coisas. Ele só precisaria se conformar e, naturalmente, o metal, as engrenagens e os pistões seriam visões e sons que fariam parte de uma rotina como outra qualquer. É, confortar-se com o desconfortável talvez fosse o melhor. Talvez. Mas não era o caso.

Olhando para sua antiga vidinha miserável, o serzinho engrandeceu-se e avançou para o lado de fora do prédio que antes fora sua prisão. Como esperado, tudo estava escuro e os únicos sons audíveis eram do metal e dos motores violentos que se mexiam e ecoavam como ondas em um mar inquieto. Nada do som repetitivo dos grilos, mosquitos ou qualquer outro ser que indicasse a existência de vida. O alguém que tinha dedos metálicos decidiu seguir em frente, pois as criaturas terríveis pareciam distantes.

Correu por uns duzentos metros até sentir a aproximação daquelas feras infernais. Olhou para trás e vislumbrou a terrível luz negra voltada para sua direção. Cegou-se com as trevas e logo sentiu o chão tremer. As criaturas metálicas se aglomeraram e, cercando aquele ser de tamanho desprezível, pareciam zombar de sua impotência. E então, reduzindo cada vez mais o espaço que o alguém tinha, os seres gigantes começaram a girar e a se mexer a fim de provocar aquele som grave e brutal que tanto amavam.

O serzinho se encolheu no chão enquanto tentava tampar os ouvidos. O barulho era ensurdecedor, mas a visão que tinha era ainda pior. Cabos de aço se misturavam com engrenagens e outras peças metálicas, tudo isso enquanto a luz negra se espalhava para dentro de sua alma. Fechando os olhos, tudo que o alguém queria era ser cego e surdo, ao menos por um instante. No entanto, nem isso adiantaria: o chão tremia e, junto dele, todo o corpo do ser indefeso. Não aguentando, ele gritou.

— AJUDA!

Por que gritar? Não fazia sentido. O som das criaturas metálicas era muito intenso para que qualquer ser de boa índole pudesse ouvir. Aliás, ainda havia algo que contasse com uma índole que não fosse industrializada e projetada para causar terror? O alguém não saberia responder, mas não era de respostas que ele precisava. Era exatamente do que sua boca fez ecoar: ajuda.

Infelizmente, os seres de origem e destino metálico não pareciam se importar com isso. Contorciam-se e dançavam, tudo isso enquanto sentiam prazer em ver aquele serzinho indefeso no chão. Era tão engraçado. Tão pequeno e desprezível. Mas talvez eles estivessem errados. E estavam.

Ainda com os olhos fechados, o alguém não enxergava nada. No entanto, na escuridão de sua mente, pequenos clarões apareciam aqui e ali. Quase como vagalumes, piscavam, voavam e dançavam no ar, de maneira que vez ou outra sentia um certo incômodo nos olhos. Não estava acostumado com a luz. Afrouxando as pálpebras e afastando as mãos das orelhas, pôde ver e ouvir o inesperado: como se estivessem amedrontadas, as criaturas metálicas recuavam rapidamente e afastavam a vista de algo ou alguém. O serzinho logo descobriu que se tratavam de alguéns.

Incontáveis pessoas se faziam presentes diante de seus olhos. Traziam luzes consigo, luzes essas brancas e amarelas. Eram tão humanos quanto o alguém, ainda que contassem com partes do corpo metálicas. Alguns tinham as pernas modificadas, outros os olhos, enquanto uns poucos contavam com pés diferentes do comum. No entanto, todos estavam lá para ajudar.

Erguendo-se lentamente, o serzinho olhou para seus semelhantes e sentiu um confortável calor tomar conta de seu corpo. Um dos seus novos aliados se aproximou e, levemente, encostou em uma pequena peça metálica que jazia sobre a cabeça do alguém. E então, uma luz se acendeu, assim como a de todos os outros. O serzinho sentiu-se grande, puro e, ao mesmo tempo, capaz de romper a escuridão que tanto o rompeu por incontáveis horas, dias, anos.

Os humanos que portavam a luz olharam para cima e indicaram que estava na hora de deixar aquele palácio das trevas. O ser que agora transmitia luz os seguiu pelo ar. Enquanto voava com extrema liberdade e prazer, pôde ver à distância outras silhuetas de prédios perdidos e abandonados. Janelas de vidro envelhecido, quase opaco que simplesmente refletia as próprias trevas. Viu criaturas metálicas rompendo o espaço e fazendo qualquer sentimento de segurança tremer a quilômetros dali. E sabia que não podia abandonar outros como ele.

Tocando no ombro de um de seus amigos, apontou para o horizonte de sombras e dor. Ele agora tinha a luz e podia ajudar outros a encontrarem as suas próprias.

— Nós não podemos entrar nos prédios. Não é um direito nosso — um dos alguéns caridosos explicou. — Podemos esperar e ouvir. Quando eles saírem dos palácios de concreto e clamarem pela liberdade, aí sim poderemos ajudar. Você entende isso?

E, olhando para sua própria vida, o serzinho agora cheio de luz compreendeu. Estaria vigilante e, finalmente, livre.


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Notas finais do capítulo

Eu nunca escrevi algo assim. No entanto, o que torna esse texto especial para mim é o fato de ele ser a primeira ficção que escrevo desde que dei uma "pausa" na escrita por problemas pessoais. Eu ando me recuperando aos poucos e essa história fala um pouco desse processo.

Fiquei muito feliz em ter concluído esse pequeno trabalho e espero voltar logo logo com minhas histórias mais "típicas". Muito obrigado por ter lido até aqui, e sempre se lembre que tem muitas luzes por aí. Inclusive você mesmo tem a sua.

Até mais! =)



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