I'm no ghost escrita por honeychurch


Capítulo 1
i'm no ghost




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Havia um lugar na memória onde os sonhos ainda tinham cor, um lugar onde a infância era fresca e os medos pequenos. Quando podia, ela preferia navegar naquelas memórias, onde era uma princesa dourada, graciosa, alegre, e bonita, ou ao menos todos diziam o quanto ela era bonita. Naquele tempo, quando tudo era possível, Myrcella sonhou estar exatamente ali, entre as paredes de Winterfell, mas em seus sonhos ela era a senhora, a orgulhosa esposa daquele rapaz tão bonito e gentil que a acompanhara no banquete. Que menininha boba, que menina sortuda por poder ser boba, como ela gostaria de voltar a ser aquela menina.

Quando a guerra acabou e ninguém soube o que fazer com ela, Myrcella foi enviada para o Norte, e logo se viu agradecida por isso. Não haveria herdeiros bonitos para ela, sedas sulistas, ou mesuras, mas lady Sansa era gentil, e Myrcella estava confortável. Ela nunca mais seria uma princesa, e até mesmo o direito de ser bonita fora tirado dela, mas tudo podia ser pior, e se não encontrasse forças para ser grata por suas atuais circunstâncias ela enlouqueceria.

A cicatriz quase nunca a incomodava, ela se habituara a usar um véu parecido com o de uma septã que emoldurava seu rosto e mostrava pouco daqueles traços graciosos que antes tinham sido tão promissores. Aquele, no entanto, era um dos raros dias em que a marca em sua bochecha coçava de maneira terrível. Myrcella cerrava os lábios e apertava os olhos, enquanto fazia o possível para ignorar o incômodo. Uma dama não se coçava pelos corredores, e uma protegida na situação dela tinha que aprender a não incomodar o meistre mais do que o necessário.

Suas tarefas deviam ser sua distração, e ela encontrava prazer ao cumprir seu dever. Todas as manhãs quando se levantava e deixava seus aposentos, Myrcella ficava contente em ter uma função, e ainda melhor era poder passar o dia do lado de alguém que não se importava com a horrível cicatriz espiando pelo seu véu, com sua família, ou com as previsões das coisas abomináveis que ela faria no futuro. Ela podia passar o dia em paz, sem se preocupar em agradar, ou em camuflar seus sentimentos. Era um mundo sem mentiras, um mundo o que só existia ao lado de Bran.

Myrcella empurrava a cadeira com rodas pelo bosque sagrado. Estando diante da Árvore Coração ela terminou de conduzir aquele rapaz estranho e foi se sentar em uma das protuberantes raízes ao lado de onde parara com a cadeira.

Bran podia passar horas fitando o nada, e por isso Myrcella trazia consigo um livrinho de poesia que a distraísse até que ele pedisse para voltar ao castelo. Ser a acompanhante do jovem Stark era a melhor tarefa que lady Sansa podia ter lhe dado. O meistre tinha assuntos dos quais cuidar, Bran precisava de auxílio e Myrcella de uma função.

— Myrcella?   

Ela o ouviu chamando, mas como mal tinha aberto o seu livro Myrcella não podia acreditar que ele já quisesse partir, mas que ele quisesse conversar parecia ainda mais estranho.

O olhando por um instante, Myrcella o viu tirando as mãos de entre as peles que aqueciam seu colo. Bran segurava um frasquinho fosco.   

 — Isso fará bem para o seu rosto.

Ele sabia, é claro que ele sabia.

— Não posso ter segredos com você.

Foi um gracejo, e ela o fez com um sorriso, mas se os lábios dele se moveram Myrcella não notou.

— Realmente sabe de tudo o que eu já senti? Até mesmo de quando eu era jovem demais para entender meus próprios sentimentos? Talvez você não…

— Você era apaixonada pelo meu irmão Robb. Passou o início da guerra acreditando que tudo se resolveria se se casassem. Depois, mesmo feliz em Dorne, você chorou quando ele morreu.

Sem segredos, sem mentiras Myrcella pensou enquanto mordia os lábios. Aquele rapaz que sabia de tudo e nunca desejava nada, aquele rapaz conhecia exatamente que tipo de pensamento espreitava na mente dela enquanto estavam juntos.

— Mas eu sorri quando soube que você tinha acordado depois da queda.

Não havia nada que pudesse surpreendê-lo, e com um aceno de cabeça Bran a deixou saber que ele estivera consciente de sua simpatia o tempo todo.

— Milorde sabe de tudo o que foi, mas será que também sabe sobre o que poderia ter sido? Você um cavaleiro, e eu uma princesa. Poderíamos ter sido como os heróis das canções.

— Concordo com você. É preciso que sejamos gratos por nossas circunstâncias, caso contrário ficaríamos loucos. Cavaleiros e princesas... essas fantasias são fantasmas, e só estão aqui para assombrar a realidade.

Myrcella deixou o livro cair quando se levantou, mas ela tinha algo a dizer, e não o queria fazer sentada.

— Eu não sou nenhum fantasma, e você também não. Eu fui uma princesa uma vez, e presente algum pode mudar isso. E você… você foi um menino que sonhava em se tornar um cavaleiro. Nada do que é hoje pode apagar esse menino.

Ela deu mais um passo na direção da cadeira.

— Eu gostaria… eu… — Myrcella precisou de uma pausa para encarar os próprios pés. Nunca era daquele jeito nas canções, e ela nunca pensou que seria daquele jeito com ela, mas se eles não eram fantasmas, muito menos eram heróis de uma canção. — Eu gostaria de beijar você, e gostaria que quisesse me beijar.

No fundo do coração a antiga princesa estava convencida de que ele sabia daquele sentimento, tal como ele sabia de todos, mas isso não evitava que ela fosse invadida por uma devastadora onda de constrangimento.

Bran não lhe deu resposta alguma além de um de seus sorrisos fracos, e já que tinha começado Myrcella achou que devia continuar.

Ela se inclinou na direção dele, esperando ser impedida, e esperando poder ir até o fim. Quando estava perto o suficiente ela se conteve. A respiração de ambos se misturou em uma fina nuvem de vapor pálido no ar gélido de Winterfell. Então, em um rompante de coragem, ela colocou um fim naquela distância e uniu os lábios nos dele.

O medo e o nervosismo eram tamanhos que Myrcella não conseguiu averiguar a sensação com clareza, tudo que ela  sabia era que estava aliviada por finalmente ter feito. Ele era um garoto tão bonito, e era tão bom estar com ele. Ela faria bom uso de algum carinho, e não seria bom se fosse Bran dando esse carinho?

Myrcella se afastou, e piscou os olhos antes de abri-los, apenas para encontrar o rapaz a encarando tão apático quanto sempre. Ela tentou procurar por algo, alguma faísca que dissesse que ele foi capaz de sentir qualquer coisa, mas não havia nada para ser encontrado.

Se ao menos houvesse um meio de tirar o garoto alegre que ele tinha sido. Ela faria qualquer coisa, se houvesse algo que pudesse ser feito.

Talvez eu esteja errada, talvez ele seja pouco mais que um fantasma agora Myrcella pensou enquanto recolhia o orgulho e voltava para sua raiz e seu livro Mas eu não sou.

— É verdade — Ele disse para a surpresa dela — E eu sinto muito. Você merecia que ao menos uma vez as coisas fossem mais fáceis.


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