Havia um lugar na memória onde os sonhos ainda tinham cor, um lugar onde a infância era fresca e os medos pequenos. Quando podia, ela preferia navegar naquelas memórias, onde era uma princesa dourada, graciosa, alegre, e bonita, ou ao menos todos diziam o quanto ela era bonita. Naquele tempo, quando tudo era possível, Myrcella sonhou estar exatamente ali, entre as paredes de Winterfell, mas em seus sonhos ela era a senhora, a orgulhosa esposa daquele rapaz tão bonito e gentil que a acompanhara no banquete. Que menininha boba, que menina sortuda por poder ser boba, como ela gostaria de voltar a ser aquela menina.
Quando a guerra acabou e ninguém soube o que fazer com ela, Myrcella foi enviada para o Norte, e logo se viu agradecida por isso. Não haveria herdeiros bonitos para ela, sedas sulistas, ou mesuras, mas lady Sansa era gentil, e Myrcella estava confortável. Ela nunca mais seria uma princesa, e até mesmo o direito de ser bonita fora tirado dela, mas tudo podia ser pior, e se não encontrasse forças para ser grata por suas atuais circunstâncias ela enlouqueceria.
A cicatriz quase nunca a incomodava, ela se habituara a usar um véu parecido com o de uma septã que emoldurava seu rosto e mostrava pouco daqueles traços graciosos que antes tinham sido tão promissores. Aquele, no entanto, era um dos raros dias em que a marca em sua bochecha coçava de maneira terrível. Myrcella cerrava os lábios e apertava os olhos, enquanto fazia o possível para ignorar o incômodo. Uma dama não se coçava pelos corredores, e uma protegida na situação dela tinha que aprender a não incomodar o meistre mais do que o necessário.
Suas tarefas deviam ser sua distração, e ela encontrava prazer ao cumprir seu dever. Todas as manhãs quando se levantava e deixava seus aposentos, Myrcella ficava contente em ter uma função, e ainda melhor era poder passar o dia do lado de alguém que não se importava com a horrível cicatriz espiando pelo seu véu, com sua família, ou com as previsões das coisas abomináveis que ela faria no futuro. Ela podia passar o dia em paz, sem se preocupar em agradar, ou em camuflar seus sentimentos. Era um mundo sem mentiras, um mundo o que só existia ao lado de Bran.
Myrcella empurrava a cadeira com rodas pelo bosque sagrado. Estando diante da Árvore Coração ela terminou de conduzir aquele rapaz estranho e foi se sentar em uma das protuberantes raízes ao lado de onde parara com a cadeira.
Bran podia passar horas fitando o nada, e por isso Myrcella trazia consigo um livrinho de poesia que a distraísse até que ele pedisse para voltar ao castelo. Ser a acompanhante do jovem Stark era a melhor tarefa que lady Sansa podia ter lhe dado. O meistre tinha assuntos dos quais cuidar, Bran precisava de auxílio e Myrcella de uma função.
— Myrcella?
Ela o ouviu chamando, mas como mal tinha aberto o seu livro Myrcella não podia acreditar que ele já quisesse partir, mas que ele quisesse conversar parecia ainda mais estranho.
O olhando por um instante, Myrcella o viu tirando as mãos de entre as peles que aqueciam seu colo. Bran segurava um frasquinho fosco.