Black and Blue VI: Dressed In Black escrita por Minerva Lestrange


Capítulo 1
I was imprisioned by dark [...]


Notas iniciais do capítulo

Ei!
Finalmente trago a última parte da coletania que, por ter ficado enorme, será dividida em dois capítulos. Essa parte tem inspiração na música Dressed in Black, que permeia não somente os pensamentos de Hermione, mas do próprio Draco, visto todos os acontecimentos aqui.
Só pra esclarecer, a fic é dividida em partes, onde na primeira se passa o tempo atual da história e na segunda uma lembrança, que é contada na linha do tempo da fic de acordo com a primeira, espero que não tenha ficado confuso.
Espero que gostem e me digam nos comentários o que acharam, por enquanto.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/777064/chapter/1

I had given up
I didn't know who to trust
So I designed a shell
Kept me from heaven and hell

Parte I

Wiltshire, Reino Unido

Seu peito carregava uma sensação de aperto desde que chegara ali. Não apenas por toda a situação que a levara de volta a Londres de forma repentina, mas por que a fazia relembrar e, especialmente, sentir. O tempo passara, mas nada mudara em relação a seu gosto por tempestades. Detestava tudo que vinha dos temporais, inclusive e principalmente as lembranças que sempre a levavam de volta àquela noite escura e ingrata.

Não doía tanto, no entanto. Era incômodo, angustiante e indignante. Os detalhes já não eram tão nítidos e, por isso, às vezes se perguntava o que vinha sendo projetado por sua mente, devido ao trauma, e o que realmente acontecera. As sensações não vinham com facilidade, mas o asco por Greyback ainda continuava intacto. Porém, lhe soava como um filme que tinha o poder de deixá-la enojada, desconfortável com determinada cena.

Por isso, encarando aquele local ainda estacada à porta, sentia-se mais grata do que qualquer outra coisa. O antigo closet de Draco, diferentemente de certa ocasião em que estivera ali logo antes de partirem para a Moscou, encontrava-se vazio e frio, embora conservasse o tapete fofo, os móveis e nichos, assim como o pufe em seu centro. Fora ali que ele a fizera encarar a si mesma depois da atrocidade de Greyback, fora ali o início de sua reconciliação consigo mesma.

Andou lentamente, o grande espelho que ia do chão ao teto disposto ao lado da porta que levava ao banheiro, seu reflexo agora muito diferente do que fora àquela época. Seus cabelos estavam mais longos e cacheados, chegando à cintura, sedosos como nunca fora, suas roupas não demonstravam tanta derrota quando àquele fatídico dia, suas feições encontravam-se neutras em contraste com os olhos inchados e vermelhos, dos quais se recordava nitidamente.

Não pela primeira vez, percebia como a decisão de ir para a Rússia fora acertada. Depois de tudo, realmente tornara-se uma nova mulher, menos temerosa e mais confiante novamente; sem render-se ao objetivo de Greyback, apesar de ter seus momentos de fraqueza. Havia dias em que tudo desmoronava, em que a vontade de chorar e o próprio choro eram iminentes, em que somente queria recolher-se a seu quarto e permanecer lá por tempo suficiente para que as recordações ruins a deixassem.

No entanto, eles passavam num amanhecer, numa dose de vodka ou vinho, na presença de Draco. Ele sempre esteve lá por ela, assim como Hermione decidira pela recíproca. Nos últimos anos, não somente tivera sua ajuda, como também precisara da dela para colocar sua própria vida nos eixos – a cabeça, os negócios, a casa. Havia prometido que estaria ao seu lado e o fizera da melhor forma possível, também considerando uma forma que não contrariasse Astoria.

Sua distraída reflexão fora interrompida pelo ruído próximo, contudo. Voltou-se à Draco, o qual fechara a porta lenta e pacientemente, como se tivesse medo de que produzisse qualquer ruído que pudesse quebrar o luto recente que habitava toda a Mansão Malfoy. Os olhos dele não a encararam, embora soubesse que estava ali, indo diretamente ao balcão onde as bebidas se encontravam. Não havia nada mais forte que conhaque, no entanto, o que o fez servir-se uma dose dupla, sem gelo e, provavelmente, sem sabor.

Observou a tudo em silêncio por um tempo. O homem ostentava feições exaustas e tinha certeza de que não somente pela estafa que fora aquele dia, como também por todos os meses anteriores. Ele sentou-se a uma poltrona próxima à larga janela de peitoral baixo, onde as cortinas balançavam pelo vento que prometia tempestade para a noite. Nada mais apropriado para toda a situação que os levara até ali, inicialmente.

Assim, com um suspiro e após certificar-se de que não o contrariaria com sua presença, pois Malfoy ainda era do tipo que apreciava a solidão e o silêncio, aproximou-se. Ele tinha a barba por fazer, como resolvera deixar alguns meses atrás. Não havia tempo para nada em sua rotina, afinal de contas, vivendo uma escala entre Londres e Moscou, cuidando de Astoria, da fábrica de poções de sua família e do filho. Dormir em paz era uma raridade, por isso as olheiras ostentadas logo abaixo dos olhos claríssimos e, naquele dia, muito opacos pelo cinza.

— Ela se foi. – Ele declarou roucamente, após um gole no conhaque. – Astoria está morta.

Ainda que não a encarasse, podia perceber como ele parecia entorpecido e aquilo não era o efeito do álcool. Por isso, calmamente retirou o copo da mão dele, não enfrentando o empecilho que achou que encontraria. Não declarou nada, deixando implícito que um Draco bêbado exatamente no dia do enterro de sua esposa não seria nada promissor. O conhecia alterado, sóbrio e de quase todas as formas possíveis, assim como já ouvira o bastante sobre Narcissa e a família Greengrass para ter certeza de que eles repudiariam tal comportamento.

Hermione apenas virou-se para colocar o copo longe dele, ignorando a repetição que parecia deixá-lo em um estado de catarse mórbida. Porém, nesse momento, Draco a segurou pelo pulso, impedindo-a de afastar-se. Levantou uma sobrancelha, esperando, no que ele a puxou para mais perto, até encontrar-se exatamente em paralelo com a poltrona em que estava acomodado. No entanto, relaxou levemente e tentou encará-lo com mais leveza.

— Conhaque não vai tornar mais fácil.

Em outros tempos, ele teria sugerido outro tipo de álcool, o sorriso irônico brincando em seus lábios, como se a vida fosse apenas o momento que dividiam e o drink que se tornara rotina em suas semanas conturbadas. Entretanto, fazia algum tempo que ele não sorria e, ali, não havia como discordar. 

— Seria errado... – Ele recomeçou, pensativo, como uma criança que tenta elaborar uma pergunta. – Me sentir aliviado?

Hermione levou a mão àquela que segurava seu pulso, fazendo com que a soltasse e entrelaçasse seus dedos. Comum, familiar, honesto. Sabia que Draco estava quebrado e, ainda que tivesse se preparado para isso, nada poderia adiantá-lo o que seria lidar com a morte precoce da mãe de seu filho. Astoria era mais jovem que ambos, mas, nos últimos tempos, aparentava um aspecto debilitado devido à saúde comprometida tão rapidamente. Magra e pálida, não era a mulher que antes se cuidava com todo o esmero para seu marido, principalmente em seus últimos meses.

— Ela estava cansada, Draco. – Pensou por um momento. – Astoria não queria lidar com isso por muito mais tempo. Mais do que você, acho que ela seria a pessoa mais aliviada aqui.

O viu anuir, os olhos voltando-se ao jardim lá fora que, apesar de escurecido pelo temporal, ostentava arbustos bem cuidados, um gramado extremamente verde e flores variadas, que podiam ser cultivadas com sucesso apenas na primavera em que se encontravam, além daquelas que somente vingavam pela magia presente por todo o local. Parecia uma ironia que o clima do país mudasse de forma tão drástica justamente naquele dia, pois a última semana fora de céu aberto, sol e céu azul, para a felicidade de Astoria.

— Fique comigo, Granger.

Por um momento, não entendeu exatamente o que ele queria dizer, seu coração acelerando-se algumas batidas e sua respiração estacando. Porém, no instante seguinte, ele cedera espaço para que se acomodasse na poltrona ao seu lado. Mordendo os lábios, decidira sentar-se no braço, cautelosa com a distância que deliberadamente instalaram três anos antes para fazer com que aquilo que tinham fosse adiante e tivesse qualquer chance de dar certo.

Levou uma das mãos à nuca alva, como ele costumava fazer com ela, muito raramente. A falta, talvez, fosse fator determinante para que apreciasse a carícia e com ele não deveria ser diferente. Os cabelos loiros eram macios, o que não era surpresa. Lembrava-se de como os apreciara na primeira vez em que se beijaram, também na segunda... E então não houve outra oportunidade. O viu fechar os olhos pelo afago, anuindo a cabeça em sua direção, a mão ainda na sua, seu coração ainda descompassado.  

— Eu ficarei.

And I had hit a low

Was all I let myself know

Yeah I had locked my heart

I was imprisoned by dark

Kudrinskiy Pereulok, Moscou

Anos antes

— Eu acho que devemos ir embora.

Hermione declarou, sua fala já arrastada pela bebida forte. Não era a tradicional vodka russa, mas um licor de amoras que possuía um teor alcoólico muito alto, apesar de ser doce demais para seu paladar. Encontravam-se em um bar pequeno, aconchegante e luxuoso próximo à Embaixada trouxa dos Estados Unidos. Todas as mesas eram pequenas e intimistas, com um pequeno arranjo floral com velas que perfumavam elegantemente o ambiente, enquanto que eles se acomodavam em poltronas de tecido que variavam do cinza, perpassavam pelo verde escuro, até chegar ao negro, e falavam baixo demais, assim como todas as pessoas ao redor.

O elegante bar, que mais servia como um happy-hour para os russos que trabalhavam nas redondezas, no entanto, não se encontrava cheio. Talvez pelo tempo frio do lado de fora, que prenunciava a tempestade iminente que viria mais tarde, talvez pelo preço que ostentava em seu cardápio. Malfoy dissera que fora uma indicação de alguém do Ministério, provavelmente antenado com os gostos acirradamente caros e refinados do homem, apesar de não ser um bar bruxo.

— Eu ainda não experimentei este. – O viu inclinar-se para o cardápio, escolhendo um novo drink. Não era fácil agradá-lo e, apesar de não ser a primeira vez que iam ao lugar, não havia se decidido sobre a bebida favorita, fazendo um sinal para que o garçom se aproximasse para pedir o que gostaria, emendando outra rodada do temido licor para Hermione. – Então, como é a vida na nova casa?

Encarou-o em sua tentativa de manter uma conversa séria a respeito de sua recente mudança, mas só pode rir levemente, julgando-o bêbado demais para tentar seguir por essa linha. Há um mês Astoria a expulsara de sua casa e não tinha planos de contar a seu marido sobre as asas arreganhadas da Sra. Malfoy. Não estava ali para causar qualquer tipo de atrito entre eles, embora considerasse Draco importante demais para sua sanidade. Por isso, apenas comunicou-o de sua saída, lidando sozinha com o que o homem levou como uma ofensa pessoal.

— Pareço ter ido morar sozinha pela primeira vez na minha vida. – Ela deu de ombros, circulando o ambiente com o olhar, de forma a não encará-lo. – Mas eu gosto do lugar e gosto de... Sentir-me responsável por mim mesma, pra variar.

— Independente de mim. – Voltou a olhá-lo, percebendo que Malfoy sequer piscava com os olhos fixos nela. Sentiu-se desconfortável, a respiração esquecida e a tensão rodeando-a como uma velha amiga sempre que ele fazia aquele tipo de coisa.

— Não posso viver uma vida que não é minha. – Não soube como encontrou sobriedade suficiente. – Astoria é sua família e, querendo ou não, eu estava... Invadindo a privacidade de vocês.

O garçom serviu a bebida que ele pedira, uma mistura de conhaque com algo ácido e doce que apenas Malfoy apreciaria. O silêncio os cobriu por algum tempo, a baixa música lenta levando até Hermione uma aura sonolenta que só poderia atingi-la em combinação com a quantidade de álcool em seu corpo. De qualquer forma, não gostaria de falar sobre como preferiria estar morando sobre o mesmo teto do analisador homem à sua frente, embora apreciasse que a presença de sua esposa não fosse mais uma nuvem negra, vigilante e julgadora sobre sua cabeça.

— Não gosto quando tenta mentir para mim.

Tentava, ainda assim. Por algum motivo, o loiro era ótimo em lê-la e sempre sabia quando Hermione tinha algo a dizer e que não estava, efetivamente, dizendo. Porém, ele nunca a forçara a qualquer confissão que não quisesse fazer, nunca a levara a um ponto em que a deixaria desconfortável naquele diálogo. Assim, Hermione suspirou, seus olhos na taça de licor arroxeado, o drink bonito sob as luzes baixas do bar.

— Apenas... Não posso depender completamente de você para manter minha sanidade. – Respirou fundo, emendando uma linha de raciocínio para o que era verdade sobre a decisão que fora obrigada a tomar. – No fim, as coisas realmente deveriam acontecer assim por que essa... Essa vontade, essa superação, essa sanidade... Tudo isso deve vir de mim. E não por que fez algo errado, mas por que é o correto.

— Por que... Sempre tem uma resposta coerente para tudo? – Os olhos moles de Malfoy lhe diziam que, no momento, apesar de parecer ainda indignado por sua partida quase repentina, não se importava tanto assim com a questão. No entanto, parecia insistente sobre, como todas as pessoas bêbadas ficam a respeito de coisas totalmente sem nexo. – Sei que está certa, apenas... Não gosto dessa distância.

Não sabia se ele diria algo do tipo não estando meio bêbado, pois não sabia em que ponto a bebida começava a afetá-lo. Hermione sempre fora honesta com ele sobre seus sentimentos, até mesmo em sua sobriedade e até mesmo quando a coisa mais difícil que empenhava era falar sobre seus sentimentos e todas as nuances de sensações que tinha a respeito de sua nova vida, com todos os estranhamentos e não aceitações sobre si mesma. Então, semicerrou os olhos levemente, afastando a taça de licor.

— Realmente, acho que devemos ir.

Ele concordou silenciosamente e ambos encaminharam-se para fora, após pagar a conta e estarem devidamente protegidos pelos grossos casacos. O vento praticamente uivava em seus ouvidos, o que os fez caminhar mais rapidamente em direção à praça que havia logo à frente do restaurante para que pudessem aparatar. Não podia ver as nuvens que os cobria, devido à noite escura e, então, pelo fato de as árvores de copas altas cobrirem seu caminho, diminuindo o efeito do vento, embora o frio praticamente perfurasse seus ossos.

— Nós nos vemos depois.

Malfoy pronunciou quando já se encontravam escondidos por um monumento à Revolução Russa, onde poderiam aparatar com segurança, sem que ninguém pudesse ver algo inapropriado e supostamente impossível. Ele tinha as mãos no bolso e a postura altiva de sempre, mas havia uma defensiva que não estava ali antes e poderia supor que uma sombra se instalara em seus olhos cinza, porque era assim que agia quando estava com raiva, decepcionado ou, simplesmente, frustrado.

— Draco. – Não podia vê-lo com exatidão, mas estendeu a mão enluvada para impedi-lo de ir, afinal agora seguiriam caminhos diferentes e não queria dizer somente para suas respectivas casas. – Não precisa haver uma distância, se não quiser.

— Eu sei.

No entanto, o que ele optou por fazer e dizer em seguida nada condiziam com o que vinham considerando até ali. Não foi impulsivo, não foi rápido e desesperado, apenas controlado e profundo. Os lábios dele recaíram sobre o dela calmamente, como se estivesse acostumado a beijá-la todos os dias, como se não fosse errado, como se Hermione não estivesse paralisada pela atitude. Não por seu trauma, mas pela surpresa.

Sentia a boca contra sua, as mãos frias em seu pescoço e o calor do corpo dele muito próximo, o perfume a envolvendo da mesma forma lenta com que ele a beijava. Ainda não parecia exatamente real quando resolveu ceder ao próprio impulso e à sua vontade. Seus corpos pareceram moldar-se quando as línguas se encontraram e os braços a rodearam pela cintura para aprofundar o contato – da mesma forma que acontecera quando ela o abraçara por tempo suficiente para o que o aroma masculino praticamente se fundisse a seu corpo na noite em que chegara a Moscou.

A respiração quente contra si, em contraste com o clima frio que os engolia, fazia com que se arrepiasse por completo. Tanto quanto ele quando se desfizera de uma de suas luvas, rapidamente, para que seus dedos pudessem realmente sentir a textura de seus cabelos, nuca e pescoço enquanto o beijava. Merlin, aquilo não poderia acabar tão facilmente. Todas aquelas sensações não poderiam sumir assim que se afastassem, não poderia ser privada daquilo de forma tão injusta – não depois de ter a chance de saber como era beijá-lo.

Porém, tão lentamente quanto se iniciara, acabara. Já não tinha a toca em sua cabeça, pois parecia um hobby que os dedos dele se enroscassem tão distraidamente em seus cachos. A respiração de ambos se encontrava ofegante, ao mesmo tempo em que resistiam a se afastar, pois, eles sabiam, as sensações iriam se esvair muito rapidamente. Por isso, as testas juntas, os lábios praticamente colados, a mão dele pressionando sua cintura e seus olhos fechados somente apreciando o formigamento do inesperado.

— Não gosto da distância. – Ele se manifestou em tom baixo, os dedos já percorrendo um caminho invisível em seu pescoço e mandíbula porque ele não parava de tocá-la, a voz arrastada pelo álcool. – Mas se não for por ela, continuarei querendo fazer isso todos os dias.

Hermione sentiu-se quebrando por dentro, ao mesmo tempo em que algumas gotas de chuva começavam a cair finamente sobre suas cabeças. Sua garganta apertou-se, refletindo-se nos braços que o rodearam para abraçá-lo novamente, os lábios em seu ouvido enquanto tentava alcançar a culpa por ter consciência de que haviam errado. Aquele era o passo em falso que temera dar desde que chegara ali e começara a notá-lo de verdade.

— Não gosto que não possamos acontecer.  

Não obteve qualquer resposta ao sussurro, pois não era necessário. Então, ele a soltou e Hermione afastou-se lentamente, sentindo o frio cada vez mais forte atingi-la agora que ele estava longe. Seus cabelos já se tornavam uma bagunça contra o vento e era um infortúnio que não pudesse vê-lo realmente devido a escuridão. Queria olhar em seus olhos, tentar saber o que se passava em sua mente, entender porque fizera aquilo, porque a dera todas aquelas sensações estando ciente de que era errado.

Entretanto, tudo que ele fez foi dar um passo para trás, as mãos escondidas nos bolsos e a cabeça baixa em um pedido silencioso de que aparatasse antes dele, pois, apesar da situação confusa em que se encontravam, não a deixaria sozinha naquele lugar ermo e escuro. Pigarreou, tentando ajeitar os cabelos, incrivelmente sem saber o que dizer ou como se despedir, pois tudo que elaborava parecia estúpido demais.

A temperatura quente e aconchegante de sua casa a atingiu fortemente assim que seus pés encontraram o chão da sala de estar, mas o efeito do álcool em seu corpo foi iminente, fazendo-a cambalear até cair sobre o sofá macio e espaçoso diante da lareira. Levou as mãos a cabeça, tentando fazer com que a tontura parasse, assim como a sensação de perda que tinha na boca do estômago, só então percebendo que deixara para trás uma das luvas e a própria toca, provavelmente caídas ao chão daquela maldita praça.

Grunhiu irritada, sem saber lidar com todas as desconhecidas sensações, com a frustração que se seguiu ou com o próprio Draco, quando o visse novamente. Pela primeira vez, algo que não estava nada ligado àquela noite com Greyback a atormentou durante seu sono e, também pela primeira vez, as lágrimas que a acompanharam ao acordar no dia seguinte e repassar toda a situação em sua mente, não eram sobre o asco que sentia por seu próprio corpo, mas sobre os sentimentos que deveria reprimir em nome de si, de Malfoy e, querendo ou não, Astoria.

You found me dressed in black

Hiding way up at the back

Life had broken my heart into pieces

You took my hand in yours

You started breaking down my walls

And you covered my heart in kisses

Parte II

Mar do Norte

De longe como estava, observava a pequena elevação que se elevava das águas escuras e revoltosas. A ilha onde ficava a Prisão de Azkaban não passava de um ponto negro e retangular, que ocupava a maior parte do espaço de terra e sobrevivia às ondas quebrando-se contra suas três laterais de tijolos escuros. Havia magia para manter a prisão intacta como era há muitos séculos, não restava dúvidas, mas ainda assim sentia a intimidação que o lugar lhe passava.

Nem mesmo nos tempos de pós-guerra fora ali. Conhecia a prisão por imagens e história, sempre fora leitora e conhecedora do que fosse necessário para não ser surpreendida na Guerra e, de qualquer forma, pesquisara sobre Azkaban desde a fuga “misteriosa” de Sirius Black quando ainda se encontrava no terceiro ano de Hogwarts. Porém, os tempos eram outros, assim como as pessoas que agora habitavam aquele lugar e os que a guardavam.

Os Dementadores foram mandados embora por Kingsley Shacklebolt quando este se tornara Ministro da Magia. Os guardas eram homens e mulheres do Ministério, dizia-se que não havia mais a loucura e a depressão ocasionada pelas criaturas das trevas. Porém, ainda era uma prisão com aspectos medievais, localizada longe de qualquer civilização que pudesse contar qualquer coisa que acontecesse ali. Os bruxos não se importavam com os prisioneiros de Azkaban, de qualquer forma.

O motivo que a levava ali a fizera hesitar e recuar por muitos dias, no entanto. Desde que colocara os pés na Inglaterra tinha a impressão de que algo a incomodava – e não somente toda a situação da morte de Astoria Malfoy, o que a fizera retornar, inicialmente. Lembrava-se constantemente que estava no local onde o lobisomem Greyback a machucara e marcara da pior forma possível, onde a traumatizara pelo resto de sua vida, condenada a viver com aquelas memórias até quando não pudesse mais sentir as sensações, lembrar-se da chuva caindo sobre sua pele nua, do cheiro daquela criatura contra ela.

Por isso, precisava de algo mais. Queria vê-lo, observar o local onde ele passaria o resto de sua vida por seus crimes de guerra, afinal não fora condenado pelo estupro de Hermione Granger. Ninguém além daqueles que importavam sabia sobre o ocorrido e tinha a intenção de que as coisas continuassem assim. Quatro anos depois, ainda não se sentia pronta para falar abertamente sobre como perdera a varinha para Fenrir Greyback e como ele covardemente a estuprara. Tinha a impressão de que seria julgada e sentia-se culpada, afinal deixara que ele fizesse isso a ela. Esperava-se algo do tipo vindo de alguém como o lobisomem, mas essencialmente as pessoas a culpariam por não tê-lo parado.

— Tem certeza de que está pronta para fazer isso?

A voz de Malfoy soou atrás de si e Hermione voltou-se para vê-lo. A figura em eternas vestes pretas destacava-se contra o gramado esverdeado da propriedade que pertencia ao Ministério. Não era mais do que uma casa pequena, com duas janelas ladeando uma porta estreita de madeira frágil, que parecia uma igreja solitária no alto daquele penhasco, onde as ondas do mar, quase cem metros abaixo, se quebravam com força. Servia de intermediação entre Azkaban e aqueles que queriam ou precisavam visitá-la. Era possível aparatar para a prisão do próprio ponto de apoio que era a casa ou tomar um barco no cais e encarar o mar de águas salgadas e indomáveis.

— Eu preciso. Quero encará-lo, quero sentir-me vingada por saber que ele continuará ali, para sempre, pela atrocidade que escolheu fazer comigo.

Afinal, até aquela fatídica noite, Greyback estava tomado como foragido. Não havia relatos de sua aparição em lugar algum, o lobisomem era uma sombra que se sabia estar por aí, mas era habilidoso demais em camuflar-se. Se aproximou, os cabelos presos em um coque que perdia a guerra contra o vento forte, fazendo sua pele arder pela velocidade e a temperatura quase sempre fria daquele lugar. Era como se a natureza soubesse que se tratava de um ponto hostil para o mundo bruxo, um lugar com o qual ninguém se importava e onde, por isso, poderia rebelar-se sem consequências.

Observou no rosto alvo a desaprovação, mas ele não a impediria, pois nunca o fazia quando decidia algo. Ele fora para Moscou, quando ela negara. Ele aceitara o seu ‘não’, da mesma forma que aceitara o ‘sim’ quando apareceu à sua porta no meio da noite. Era sobre ela e suas próprias escolhas, não sobre o que ele acreditava ser o correto ou não. Incrivelmente, isso a tornava mais confiante a cada dia que passava. Assim, Draco lhe estendeu a mão e sentiu-se imediatamente aquecer quando seus dedos se entrelaçaram para caminhar em direção ao ponto de apoio dali alguns metros. Apesar da confiança crescente nos últimos anos, sempre fora importante ter alguém que a segurasse.

No instante em que seus pés tocaram o chão de pedra de Azkaban, sentiu-se ser engolida pelo clima macabro que cercava o lugar. O tempo parecia mais escuro daquele ângulo e o mar à sua volta muito mais assustador, embora soubesse que a magia jamais deixaria que pudesse lhe representar qualquer ameaça. A ameaça, no entanto, estava em sua mente e, fisicamente, do lado de dentro daquelas antigas paredes. Seus dedos apertaram os do homem ao seu lado, os olhos dele quase tão temerosos quanto os seus castanhos.

Seguiram por corredores intermináveis, desfrutando da aura gelada e ouvindo, eventualmente, o grito ao longe dos prisioneiros ou do que quer que fosse. Apesar da falta de Dementadores, lhe parecia que ainda existiam resquícios da permanência dos mesmos ali por tantos anos. O local era escuro e o chão de pedra não guardava nenhum cuidado em sua feitura, sendo irregular e traiçoeiro, como nas escadas, onde pisou em falso e precisou segurar-se na parede ao lado.

Então, estacaram abruptamente quando o homem que os guiava também o fez, encarando o outro guarda uniformizado e de varinha prontamente em mãos. Trajavam uma boina azul escuro – o símbolo do Ministério ostentado na lateral – da mesma cor das roupas de tecido grosso, uma capa negra que chegava aos joelhos e era rigidamente fechada sobre o peito, e o coturno pesado na mesma tonalidade. Não era nada convidativo, assim como seus rostos. Era como se Hermione estivesse fazendo algo errado ao requisitar uma visita justamente a Greyback.

— Ele está na sala de interrogatórios ao fim do corredor. Não costumamos receber muitas visitas e não temos uma sala apropriada. – Informou o guarda que, primeiramente, os buscara. - No seu requerimento constava visita para uma pessoa.

— Draco veio apenas me acompanhar.

Assim, quando seus dedos se desentranharam percebeu como apertava a mão do outro. Trocou um olhar com o homem que, antes de chegarem ali, lhe dissera especificamente para sair antes que as coisas fugissem ao seu controle. Quatro anos depois, não se podia dizer que ela superara, sequer sabia quando aconteceria, mas tinha certo controle sobre suas reações a respeito daquele episódio.

O guarda deu espaço para que ela prosseguisse, os archotes nas paredes provocando sua sombra, insuficientes para deixar o local realmente iluminado, o corredor parecendo se tornar cada vez mais estreito. A porta que a separava de Fenrir Greyback era de ferro maciço e antigo, tão enferrujado que as dobradiças rangeram de forma estridente no quase silêncio em que se encontravam quando o feitiço do guarda a abriu.

Com um último e receoso olhar ao local onde Draco estava, adentrou a sala iluminada por dois archotes posicionados nas paredes laterais. Seria uma sala completamente vazia não fosse o homem de pé à frente da porta, mãos e pés acorrentados às barras de ferro presas firme e magicamente às paredes. Ele ainda tinha o corpo anormalmente grande para um homem, os braços musculosos sobressaindo-se pelo uniforme de Azkaban quase em trapos, os cabelos compridos, grossos e desgrenhados como sempre fora.

A porta fechou-se atrás de si, provocando-lhe um arrepio trêmulo, pois, agora que estava ali, não sabia realmente o que fazer. Até mesmo respirar tornara-se mais difícil naquele ambiente fechado, extremamente intimidador e quase claustrofóbico. Greyback estava ali, a menos de dois metros, e tudo que pensava em fazer era fugir, pois as lembranças vinham como uma avalanche. Mas não estava perdendo o controle, ponderou no instante em que a cabeça baixa da criatura levantou-se e os olhos de lobisomem se puseram sobre ela. Viu-se dando um passo para trás, a porta impedindo que se afastasse ainda mais, a parte lobo do ex-comensal percebendo sua insegurança.

— Sempre soube que um dia me procuraria. – A voz dele era rasgada e o tom cruel, assim como o pequeno sorriso que habitava o canto de seus lábios predadores. – Presumo que tenha sido uma noite inesquecível para você. Veio repetir?

Tudo que sentia era a vontade de vomitar cada vez mais latente enquanto a satisfação podia ser vista à distância nos olhos amarelados de Greyback. A sensação era horrível, pois, mesmo sabendo de seu crime, mesmo sabendo que a estuprara, era Hermione quem se sentia suja e culpada, Hermione quem sentia o asco por aquilo ter acontecido, Hermione quem sentiria a marca para sempre. Ao lobisomem, nada restava além do fato de saber tudo isso.

— Você é desprezível. A única coisa que eu sinto por você é nojo. – Conseguiu elaborar, sentindo o material da porta de ferro contra as palmas, na busca de qualquer equilíbrio, embora sua voz não passasse de um sussurro sem muita convicção.

— Pude sentir seu cheiro assim que pôs os pés nesse lugar. – Os olhos dele permaneciam ainda frios, predatórios, enquanto os percorria por todo seu corpo. – Você foi a melhor, Granger. A mais arredia, sim, mas ainda a melhor. Seu cheiro? Nunca houve nada tão selvagem e ao mesmo tempo tão doce. E tão, tão apertada...

— Eu vim para espezinhar sua derrota. – Interrompeu-o em seu monólogo, pois ele a estava testando e Hermione temia pender para a fraqueza que ele desejava. – Para ver, com meus próprios olhos, que você caiu, ainda que não pelo que me fez. E que irá ficar aqui, pela eternidade, porque foi fraco. Um covarde que só conseguia afirmar sua masculinidade pela força, que só conseguia poder quando a outra parte era subjugada. Fraco.

— E ainda assim quem pensa constantemente sobre isso é você, quem revive aquela noite é você. Assim como foi você a bruxa fraca que perdeu a varinha no meio de um duelo.

A voz de Greyback soou como um murmúrio provocador, o que fez com que sua raiva alcançasse outro nível, fazendo-a aproximar-se da criatura, trêmula, nervosa, ansiosa, o ruído do salto ecoando em seus ouvidos. Não queria conter-se, bem como não o fez. O tapa soou audível e a marca de seus dedos mostrou-se gravada na bochecha direita. Sua mão ardeu, seu nariz formigou, seus olhos lacrimejaram. Porém, não chorou. O estalo soou novamente, agora na outra face. O riso do lobisomem preencheu a sala, exatamente como naquela noite. Ele debochava de sua fraqueza humana, exatamente como naquela noite.

— Eu preferi a morte naquela noite. – Confessou, sentindo as unhas contra as palmas após fechar as mãos em punho, olhando-o com todo o asco que sentira por todos aqueles anos. – Qualquer coisa seria melhor do que aquele tipo de humilhação, qualquer coisa seria melhor do que ser invadida por você. Porque, agora, sempre que penso no pior que poderia me acontecer... O estupro, a anulação, a subjugação, estão no topo da lista. 

— Prefere o pau de Draco? – Respirava fortemente agora e precisara se afastar porque o cheiro que emanava dele era exatamente o mesmo daquela noite, que parecera ter ficado impregnado contra sua pele por muito tempo depois. O sorriso dele aumentou, provavelmente entendendo que a atingira como gostaria. – Conheço o cheiro dele também, desde quando era apenas um garoto. Eu sabia que era ele no momento em que fui atacado pelas costas, como também sei que ele está logo ali, como um cãozinho que aguarda a dona.

Antes que pudesse perceber seus dedos voaram em direção ao pescoço grosso do homem, apertando com a máxima força que conseguia, satisfeita por vê-lo perder o ar após um momento de incredulidade. Suas unhas fincaram-se na pele do pescoço, onde a barba cerrada se fazia presente. E, ainda que sentisse asco por estar tão próxima, por estar tocando-o novamente, tudo em que conseguia pensar era no quanto queria vê-lo sofrer. Sabia que não estaria nem minimamente próxima do que lhe fizera, mas também sabia que o lobisomem não esperava aquele tipo de atitude de Hermione Granger, a heroína de guerra que perdera um duelo de varinhas. Fraca, mas não tanto quanto ele esperava.

— Saiba... Que Draco é muito, muito, mais homem do que você. Que eu o deixaria me tocar, algo que nunca teria consentido a você, se tivesse me dado a chance de fazê-lo. Que eu transaria com ele porque escolheria isso, não porque fui forçada. – Falou em um sussurro estrangulado. – Você nunca me teria, Greyback, se não fosse à força.

— E ainda assim... – Ele tossiu e tentou respirar quando afastou os dedos, já com as pontas sujas do sangue do lobisomem, visto que suas unhas perfuraram a pele, tanta vontade impusera naquele ato. – Ao que parece, eu a tive antes dele.

Estalou a tapa novamente no rosto dele, mais forte, mais convicta, ouvindo o grito como se não fosse ela mesma a dá-lo enquanto tentava de todas as formas fazer com que o deboche e o riso cessassem, pois a lembrava demasiadamente daquela noite e do modo como se sentira sobre isso muito tempo depois. Era algo que nunca esqueceria, mesmo que os anos houvessem passado. Acordava perturbada no meio da noite, ouvindo aquele som, sentindo a vibração da satisfação de Greyback contra si.

Quando a porta se abriu de forma abrupta, o rosto do lobisomem acorrentado tinha algumas manchas avermelhas por não ter tido qualquer cuidado com as unhas, assim como sua mão estava suja pelo sangue dele. O guarda a empurrou para fora, fazendo com que praticamente caísse contra Draco, soluçando, percebendo que as lágrimas escorriam de seu rosto a tempo suficiente para encharcá-lo. Ofegante, suada e, percebera, ainda traumatizada, tinha certeza de que aquele pesadelo não teria fim tão cedo.

— Eu estou aqui, vai ficar tudo bem.

A voz de Draco a confortara brevemente, fazendo-a apertá-lo ainda mais contra si enquanto sentia a mão acariciando sua nuca, tentando fazê-la parar de tremer. Já encharcava o tecido de suas vestes, provavelmente o havia sujado de sangue também, mas não se importava. Gostava de saber que, mesmo desaprovando sua escolha, ele estaria ali por ela. Em meio a toda a tempestade que Greyback trouxera à sua vida, anos antes, ao menos encontrara um tipo de abrigo.

I thought life passed me by

Missed my tears, ignored my cries

Life had broken my heart, my spirit

And then you crossed my path

Biblioteca Nacional, São Petersburgo

Anos Antes

Sentia os olhos pesarem à medida que seus olhos acompanhavam as letras até o final da frase e voltavam, refazendo o mesmo caminho. Forçava-se a continuar de olhos abertos, no entanto, pois não dispunha de tempo suficiente para o luxo de um cochilo rápido no meio da tarde, ainda que fosse fim de semana. Nos últimos tempos, desde que decidira pesquisar sobre a Maldição dos Greengrass, aquele fora seu lugar.

Estava familiarizada com as prateleiras altas e escuras, o cheiro da madeira centenária misturado ao aroma dos livros, que sempre lhe foi nada mais do que aconchegante. Sentia-se realmente em casa naquele que era o ramo bruxo de uma das maiores bibliotecas da Rússia. Era necessário ser credenciado no Ministério Bruxo e seguir uma série de especificações para que tivesse acesso aos livros espalhados à sua frente e, após algum tempo de burocracias que só faziam frustrá-la, lá estava Hermione lendo tudo que podia a respeito da doença que acometia os membros da família de Astoria.

Durante sua adolescência, em uma de suas pesquisas em Hogwarts, quando ainda era jovem demais para focar apenas na guerra contra Voldemort, ouvira a respeito da Maldição dos Greengrass. Ninguém sabia muito sobre o assunto, apenas que alguns membros da família desenvolviam certa doença no sangue e morriam rapidamente em decorrência, principalmente, da falta de tratamento adequado.

Os bruxos mais antigos, ainda que mestres na área e geralmente medibruxos famosos, não tinham respostas para o “vírus” que se espalhava rapidamente pelo corpo. Contudo, a história da medibruxaria recente associara a Maldição dos Greengrass, ao que, no mundo trouxa, seria leucemia – o desenvolvimento de células não adequadas no sangue. Entretanto, provavelmente por serem bruxos, mas por motivo completamente desconhecido, a doença se tornava muito mais agressiva.

Não havia cura, fora a primeira conclusão a que chegara. Uma das formas da doença se manifestar era pela genética, o que no caso daquela família prevalecia mais do que qualquer outra maneira de ser “atingido” pela suposta maldição. Não era, no entanto, uma condição que afetava a todos. A própria irmã mais velha de Astoria, Daphne, vivia perfeitamente bem e já havia passado por vários exames para garantir que era realmente saudável – como Draco lhe dissera certa vez.

A medicina bruxa era avançada até esse ponto, mas ninguém nunca se interessara em procurar a cura para uma doença que acometia uma parcela tão ínfima da comunidade, ainda que fosse uma das mais ricas. Hermione se surpreendera, no início, que os próprios Greengrass não tivessem patrocinado qualquer pesquisa a respeito da “maldição”, mas Draco lhe dissera que eles só se importavam quando um ente próximo demonstrava os sinais, afinal não eram todas as gerações que desenvolviam a doença, apenas membros esporádicos, os quais serviam para definir um padrão de doença genética.

Astoria sentira os primeiros sintomas ainda na gravidez e, segundo Draco, sequer precisara contar ao medibruxo que cuidava dela e de Scorpius. Ela simplesmente sabia e não havia nada que pudesse mudar isso. Dessa forma, escolhera adiar o tratamento para não intoxicar o bebê com as poções que deveria usar para paliar todas as sensações que a doença levava ao seu corpo. Quando seu filho nascesse, provavelmente o estágio da “maldição” se encontraria avançado demais e não haveria muito que os especialistas pudessem empenhar para retardar o desenvolvimento daquilo que a levaria a morte iminente.

Seu objetivo ali, assim, era encontrar uma forma de fazê-la sofrer menos. Não era medibruxa, nem pesquisadora, muito menos se interessara pela área quando ainda estava em Hogwarts. Curara seus amigos à época da Grande Guerra somente porque essa era a única opção que tinham, mas não levava jeito para a coisa, como Harry e Ron bem frisavam às vezes. Seu negócio eram os livros e as palavras. Contudo, ver Astoria definhar sobre uma cama a cada dia, às vezes sentindo dores quase insuportáveis, precisando lidar com enjoos, como efeito da própria condição e das poções que tomava para tentar amenizar os sintomas da “maldição” era agonizante.

Não gostava dela, mas tinha empatia por sua situação e, principalmente, por Draco. Percebia que ele passava cada vez menos tempo em casa, que não conseguia ficar muito tempo no mesmo ambiente que a esposa, que tentava desesperadamente encontrar qualquer coisa que pudesse impedi-lo de ter que agir sobre isso, porque o estava corroendo aos poucos, tanto quanto ao clima da casa em Úlitsa Kosygina. Curandeiros especializados que o homem mandara buscar na Inglaterra passavam dia e noite lá, à vontade de Astoria. Não havia mais privacidade nem mesmo para ficar com Scorpius por mais que a casa fosse grande. Ele sentia-se sufocado pela situação atual, pela iminente perda de Astoria, pela criação de Scorpius que dependeria exclusivamente dele.

Suspirou, finalmente desistindo da leitura forçada, consciente de que não chegaria a lugar algum. Utilizava uma mesa espaçosa de madeira escura que possuía em seu centro um grande candelabro luxuoso e flutuante, onde várias velas haviam sido colocadas sobre apoios de cristais. As mesas ao redor, por sua vez, encontrar-se-iam na quase completa escuridão não fosse o lustre posicionado ao centro da biblioteca que já se encontrava à meia-luz. Sabia que deveria ir, mas não gostava de chegar e contar a Draco que não alcançara conclusão alguma. Ele não esperava nada, ele sequer perguntava sobre o que lia, mas havia imposto aquele peso a si mesma. Sentia que devia a ele e estava falhando.

“Vou precisar de você, como você precisou de mim”

Tirando-a de sua divagação, no entanto, passos ecoaram contra o chão de linóleo e precisou levantar os olhos para vê-lo contornar a mesa e arrastar a cadeira para acomodar-se ao seu lado. Uma sombra que se tornava habitual tomava conta de seu semblante e ele não sorria, apenas a encarava em completa resignação misturada à compreensão. Estar ali, pesquisando e agindo, é quem ela era. O espírito grifinório sempre fora parte de Hermione, de sua personalidade, de seu caráter. Era possível que Malfoy não esperasse nada diferente dela, mas era mais provável que preferisse que passasse seus fins de semana em Moscou, descansando. Aquela era uma causa perdida.

— Sabe que não irá adiantar, não é? – Hermione percorreu levemente com os dedos enluvados a antiga página amarelada, considerando o tom rouco e farto. – Ela está no fim.

— O fim poderia ser menos amargo. – Fechou o livro sobre a família Lúkinin, cuidadosamente, tocando-o com a varinha para que pudesse voltar ao seu devido lugar na prateleira adequada e tirou as luvas, calmamente. – Os historiadores contam, vagamente, sobre casos parecidos. Às vezes, tenho a impressão de que eles têm a solução, ao menos para aplacar a dor, mas não conseguiram desenvolver o pensamento corretamente. Mas às vezes também... Parece... Parece algo que estou imaginando porque quero muito encontrar.

Lado a lado como estavam, o ouviu suspirar e sentiu quando a testa encontrou seu ombro, ao mesmo tempo em que a mão dele cobria a sua, o dedo indicador desenhando caminhos invisíveis por ali. Era o máximo de contato que se permitiam nesses tempos, em respeito à Astoria e, obviamente, por medo de que qualquer outra coisa pudesse estragar aquilo. Ele se tornara importante a ela, ele era o equilíbrio que precisara para conseguir em frente, eles se entendiam mutuamente. Não havia necessidade de muitas palavras, exatamente como naquela biblioteca. O silêncio era um dos protagonistas dessa relação, tanto interna quanto externamente, pois eles sequer falavam sobre aquilo

— Ela não faria o mesmo por você. – Hermione soltou um riso amargo, imaginando-se encará-lo, juntar suas testas e apenas senti-lo tão próximo e íntimo como gostaria.

— Não faço o que faço esperando receber algo em troca. – Declarou em murmúrio. – Ainda mais sendo Astoria a outra pessoa.

Ele não a questionou sobre, pois passara a conhecê-la como ninguém e essa era, talvez, sua faceta mais forte: a empatia, muito mais presente do que nele próprio, que tempos antes a ajudara, contra todas as expectativas a respeito da personalidade que permitia que conhecessem. Entretanto, o sentiu tenso ao seu lado, passando a encarar mais incisivamente a sombra que habitava em seu olhar tempestuoso. Apesar de Draco encarar suas mãos juntas sobre a mesa, parecia ter o olhar distante após afastar-se de seus ombros.

— Está preocupada com Scorpius?

Mordiscou os lábios, hesitante. Havia lido material científico o suficiente para saber que as chances que o filho de Draco tinha de desenvolver a mesma doença de Astoria eram grandes, mas também havia exames preventivos que eles poderiam fazer de tempos em tempos, para certificar-se de que o bebê não sofreria tanto quanto a mãe naqueles últimos meses. Os Greengrass haviam sido descuidados, pois o que eles enxergavam como uma maldição não havia atingindo-os por três gerações, até manifestar-se em sua herdeira mais nova.

— Sim. Acho que devia levá-lo a um especialista. – Então, encarou-o decidida. – Mas também acredito que o sacrifício que Astoria fez por ele, deixando de iniciar o próprio tratamento para gestá-lo da forma mais saudável possível, será um fator definitivo ao exame final. Li que as poções que ela tomaria poderiam influenciar na forma como a... Maldição se manifestaria no corpo e que, dependendo de como esta reagiria, o bebê poderia ser afetado negativamente. É claro, são estudos científicos e há interpretações diferentes sobre tudo, mas... Tratando-se disso, é esperado que a doença tente se defender de formas agressivas, caso seja atacada.

Sempre que falava a respeito do que concluía em seus estudos, Draco parecia impressionado com a rapidez de sua mente em alcançar uma lógica, ainda que não tivesse formação alguma naquela área. Porém, o brilho em seus olhos parecia diferente e seu rosto tornou-se mais leve enquanto a observava, o que a deixou sem graça ao perceber como o clima mudara rapidamente. Estranhamente, era como se estivesse... Orgulhoso.

— Conhece algum especialista aqui? – Hermione pigarreou, desfazendo o contato de sua mão com a dele. – Não é como se estivéssemos com tempo o suficiente para ir até a Inglaterra, tendo que cuidar de tudo aqui. E os curandeiros em minha casa são apenas curandeiros, não pesquisadores.  

— Os bruxos russos não são conhecidos por sua habilidade na medibruxaria, mas existe esse estudioso, Raspútin Volkov, que já escreveu vários artigos a respeito e...

— Você pode me contar no caminho para casa. – Draco levantou-lhe uma sobrancelha quando Hermione somente o encarou, quase dividida em ficar e procurar mais a respeito de Raspútin, agora que o homem estava interessado. Porém, ele não lhe deixou muita escolha, ao colocar-se de pé e entregar-lhe o casaco que tinha pendurado na cadeira. – Já passa das onze e você também precisa de descanso, Granger.

Então, rearranjou suas anotações para guardá-las na bolsa de couro preto que sempre carregava consigo. Desde que começara a estudar sobre a suposta Maldição dos Greengrass, enchera um caderno com sua letra miúda e começava a preencher o segundo. Tudo lhe parecia relevante e era útil à sua forma de apreender, pois não deixava nada passar. Apagando as velas do candelabro com um aceno de varinha, amarrou o casaco na cintura e ajeitou a bolsa no ombro antes de segui-lo em direção à escadaria que os levaria à saída.

— Podemos comprar chocolate no caminho? É fim de semana e a sua crítica sobre meu estilo de vida não se aplica aqui. – Ela emendou, fazendo referência ao fato dele ter verificado sua casa há alguns dias e percebido que o doce era mais presente do que outros itens necessários, fazendo-a ir até o mercado para renovar seu estoque de comida.

— Não é um estilo de vida quando você tem mais chocolate do que comida de verdade na geladeira. – Ele meneou a cabeça, seus passos ecoando no chão de madeira. 

— Não tente me privar dos pequenos prazeres da vida, Malfoy. – Enganchou seu braço no dele quando saíram para a rua, já quase que completamente desprovida de movimento naquele horário, encolhendo-se contra o vento frio e sorrindo satisfeita quando ele tomou a direção da loja onde vendia seus chocolates preferidos. 

— Não tente me fazer sentir pena de você por regular seus chocolates, estou cuidando da sua saúde. – Ele escondeu as mãos no bolso, embora já houvesse confessado que gostava do frio da Rússia. – Esse pesquisador, Volkov, acha que ele pode se interessar em ver Scorpius?  

I was down for the count

I was down, I was out

And I had lost it all

Yes I was scared, I was torn

Parte III

Rio Ruza

Depois de dias na Inglaterra, era estranho ficar sozinha, mas surpreendentemente bom voltar para a própria casa. Já havia se acostumado à ideia de que a Rússia era seu lar e, principalmente, aquela casa próxima ao rio que na primavera mostrava-se charmoso e bonito, rodeado da mesma grama verde que fazia parte de seu jardim e de arbustos que simplesmente desapareciam da paisagem no inverno.

Era o seu lugar, ainda que no início relutasse quanto a isso. Astoria a mandara embora e demorara até perceber que realmente precisava de um canto só seu, pois a família de Draco era ela e seu futuro filho – ainda que repetisse isso para ele na tentativa de fazer com que se acostumasse à ideia. Da mesma forma, ele não poderia fazer mais do que já fazia por ela com ambos morando na mesma casa. Eram amigos, não colegas de quarto ou amantes, como provavelmente a Sra. Malfoy suspeitava.

Tinha a impressão de que seria muito pior se batesse de frente com ela, o que talvez fosse seu objetivo desde que verbalizara seu pedido. Além disso, ele fazia esse papel bem demais para deixar que qualquer empecilho colocado por Astoria a afastasse. Houve os momentos em que a relação entre eles fora modificada, mas não por motivos externos, motivos que diziam respeito exclusivamente a eles e seus desejos sopesados pelas prioridades da vida. Inevitavelmente, se estranharam e se afastaram por alguns dias, pra colocar as cabeças em seus lugares e deixar as vontades de lado.

Funcionara, tudo voltara a ser como antes e em momento algum se deixaram levar novamente, pois então Astoria estava doente e, para além do respeito com ela, existia certo receio sobre onde esse desejo os levaria. Hermione estaria confundindo gratidão com paixão? Malfoy queria ir além da liberdade de sua vida regrada ao encará-la como algo mais do que aquela que ajudou em um momento de necessidade ou que o estava ajudando de volta quando precisara? Havia gratidão da parte dele também, ou seja, nada poderia ser somente paixão quando se tratava dos dois exatamente naquela situação em que o destino os colocara?

Com tudo isso em mente, fechou os olhos com um suspiro e descansou a cabeça contra a cabeceira almofadada da cama, o chá quente entre os dedos e os pés cobertos por um edredom e meias de lã, pois os resfriava com frequência devido a mania de andar descalça. Deveria concentrar-se em seu trabalho, tendo um livro novo para traduzir com prazo curto para entrega, do que gastar tempo e energia pensando sobre a confusão sentimental que Draco levara a ela. Não sabia exatamente quando começara, ele somente se tornara importante em um nível inclassificável.

Com isso, resolveu apagar o abajur e tentar dormir para dedicar toda sua atenção ao trabalho no dia seguinte, pois colocar na equação que Astoria se fora não era uma opção àquela hora. Não queria saber o que viria a seguir, sem a mulher ali, sem o obstáculo que os impedira de dar o próximo passo anos antes. Fazia tempo demais e a própria Hermione fora relutante desde àquela época. A escuridão a envolveu e não demorou a que seus olhos pesassem de sono, talvez pelo chá calmante que tomara antes.

Porém, o ruído da campainha tocando a despertou em um susto, fazendo-a virar-se abruptamente contra a cama. Ainda esperou que o segundo toque soasse, para confirmar que não se tratava de uma peça pregada por seu cérebro ou não fosse engano, então jogou as cobertas para o lado e encaminhou-se para a sala, os pés descalços contra o piso de madeira e os olhos na sombra estancada na pequena varanda, do lado de fora da porta envidraçada, o ruído do choro de Scorpius cada vez mais presente e conhecido à medida que se aproximava. Quando abriu, deparou-se com o pequeno garoto no braço de Draco e as feições culpadas do homem.

— Ei, Scorpius, o que foi? – Estendeu os braços para pegá-lo, mas o garoto somente aconchegou-se mais contra o pai e continuou chorando, seu rostinho vermelho e inchado.

— Ele não para de chorar pedindo por Astoria. – Respondeu Draco, adentrando sua casa e colocando a mala do menino no sofá, provavelmente havia lhe dito que fariam um passeio. – Não sei o que fazer para acalmá-lo.

— Tudo bem, logo vai passar. Não é, Scorpius? – O garotinho de cabelos lisos e tão loiros quanto os de Draco somente a encarou desconfiadamente, sem lhe dar muita atenção. – Que tal eu preparar aquele mingau que você adora?

Ele não parou de chorar imediatamente, mas o ruído foi diminuído drasticamente enquanto Hermione preparava a comida que sua mãe contara que gostava quando criança. Não era muito doce e a acalmava de uma forma mais saudável do que uma simples e viciante chupeta, afinal Astoria havia sido reticente quanto à decisão de não utilizá-las. Realmente não tinha muito jeito com crianças, mas Scorpius era cativante e com o tempo aprende-se a lidar com elas.

Da mesma forma, o próprio Draco nunca tivera muito contato com bebês até ter seu próprio filho, o que agora, longe de casa e com a falta de Astoria, mostrava-se complicado. Ambos tinham a impressão de que sua mulher nascera para ser mãe, quão grande era o cuidado e todo o empenho que ela tinha com o pequeno Scorpius. Porém, a vida se encarregara de que seu tempo com ele fosse curto demais, o que considerava cruel para qualquer tipo de pessoa. Com o passar do tempo e o avanço da doença no seu corpo, Astoria podia ficar cada vez menos com o bebê, assim como não tinha forças para dar atenção a ele. Então, ela passara a sempre ficar emotiva demais sempre que o menino era levado a ela, até que passou a pedir para não vê-lo.

— Eu já disse que a mamãe não vai mais voltar. – Contou Draco em tom baixo, ainda receoso por tê-lo no colo. – Mas ele não está muito próximo de se conformar.

— O que fez para ele se acalmar na noite passada? 

— O levei para passear de trem. – Levantou uma sobrancelha a ele, como que se perguntando se o motivo do choro, em parte, não fosse para ganhar outro passeio de trem, afinal o garotinho já estava há dias sem ver a mãe. – Eu sei, não foi a melhor solução, mas funcionou.

— Temporariamente. – Encarou o menino, levando à sua boca a colherada de mingau já na temperatura correta devido a um feitiço útil. – A partir de agora será você e o papai, apenas os garotos em casa. Terá que acostumar, querido.

— Porque a mamãe não vai mais voltar? – Perguntou o pequeno em seu jeito enrolado de criança.

Ele não falava todas as sílabas, comia letras e confundia algumas, mas aprendera a se comunicar muito rápido e de uma forma que todos que estavam à sua volta pudessem compreender. Era muito inteligente e mais parecido com Draco do que poderia mensurar. Lembrava Astoria em trejeitos específicos e em como suas feições reagiam a algumas coisas, como a careta que fazia para algumas comidas e o jeito que a testa se franzia para o que não gostava e até mesmo no modo como o sorriso abria.

Às vezes o encarava e pensava na mulher instantaneamente, mas ele era essencialmente Malfoy. Tinha certeza de que isso o conectava ainda mais ao pai, pois Draco se mostrava orgulhoso sempre que podia, ainda que no início houvesse ficado desconfiado quanto a desempenhar esse papel. Talvez, como todos os pais de primeira viagem, quando a insegurança ainda bate à porta e é necessário se acostumar a esse novo status. Porém, logo o homem mostrou-se empolgado com o menino, buscando ainda mais responsabilidade, pois sabia que a doença de Astoria a levaria em breve. Ele crescera sendo um pai de verdade e tinha orgulho de ter acompanhado esse processo.

— A mamãe não vai mais voltar porque algo aconteceu a ela... E seus planos tiveram que ser mudados. – Encarou Draco, que claramente esperava que Hermione pudesse explicar aquilo de uma maneira diferente da dele. – Mas ela continua cuidando de você, mesmo que de longe, o que acha disso?

— Então, eu não vou mais sentir o cheirinho dela?

— Bom, isso pode ser resolvido, se você prometer que irá dormir todos os dias sem choro e sem voltinha de trem. – Colocou de lado a tigela e estendeu os braços para o menino que agora concordou com seus termos e aceitou seu colo. – Olha, hoje você até vai poder na cama da tia Hermione!

— Eu vou sentir o cheirinho da mamãe lá?

— Claro que sim.

Draco estranhou onde ela queria chegar, até que o colocou deitado em sua cama já bagunçada, fez o mesmo ao lado dele e sem que percebesse conjurou um lenço que pertencia às coisas de Astoria, pois sabia que seu armário ainda não havia sido esvaziado. Tão ocupado estava o loiro que certamente nem teria pensado nisso, principalmente porque parte das roupas da mulher havia sido levada de volta à Inglaterra quando ela retornara já debilitada.

Viu quando Scorpius pegou o lenço e ajeitou-se de lado abraçado ao tecido que deveria ter o cheiro que ele associava à sua mamãe. Ele não calçava sapatos, somente uma calça verde-água de flanela, meias que chegavam até os tornozelos e uma camiseta branca com motivos de dragões. Olhando-o dessa forma, com os olhinhos já fechados, agarrado à lembrança que tinha da mãe, o considerou tão frágil que tudo pensou foi em abraçá-lo e tentar suprir a falta de Astoria, mas provavelmente o despertaria de seu estado sonolento.

— Por mais que isso seja estranho, tenho a impressão de que seria melhor que ele desapegasse dela. – Comentou Draco, encostado contra a cabeceira almofadada da cama, ladeando o menino e encarando-o com preocupação. – Não do fato dela ser mãe dele, é claro, mas...

— Não é errado querer que ele pare de sofrer, Draco. – Passou as mãos pelos fios loiros do bebê, delicadamente. – Scorpius está angustiado, não é bom que continue assim. Logo ele irá se conformar que a família dele é você, ainda que não entenda de todo porque Astoria não está.    

— É claro que não quero que ele esqueça a mãe. – Sussurrou o homem, considerando o quão absurdo isso seria.

— Eventualmente, as lembranças que Scorpius tem dela vão se desfazer. Você vai ter que cuidar para que a honre. Uma fase de cada vez. – Murmurou, observando como as feições dele aparentavam cansaço, provavelmente por dormir o mínimo ou nada desde que voltaram da Inglaterra, visto as olheiras e o cabelo meio bagunçado. Então, alcançou seus dedos sobre a cabeça de Scorpius. – Deite-se também, você deve estar com sono.

Draco não a questionou, somente a encarou agradecido e acomodou-se em seus travesseiros enquanto Hermione puxava o edredom sobre todos eles. Ainda mantiveram-se se olhando em silêncio por alguns momentos, entretanto. Não sabia o que se passava na cabeça dele, embora a sua estivesse agitada demais com toda a situação, mas forçou-se a sorrir naturalmente e apagar o abajur a fim de que a cena não ficasse tão constrangedora. Suspirou, concentrando-se no pequeno carinho em Scorpius, acomodado entre ambos, até que seus dedos encontrassem os dele e ali permanecessem meio entrelaçados. Na escuridão, no silêncio, no conforto.

I took to the night

I'd given in to the fight

And I slipped further down

I felt like I had drowned

Wiltshire, Reino Unido

Semanas Antes

— Você pode subir para vê-la. 

Hermione voltou-se a uma Narcissa muito resignada, que acabara de descer as escadas sobre seus saltos e roupas muito elegantes. Havia acolhido o filho e a nora de volta à sua casa, no que seriam os últimos dias de Astoria. Porém, não contava que precisaria conviver mais com uma “sangue-ruim” do que sua tolerância atual, delicada e limitada permitia, embora não quisesse mais do que certa educação da parte da senhora que vira somente algumas vezes na vida e por motivos alheios à sua vontade. 

A mãe de Draco não gostava de Hermione, a suportava, pois o próprio já havia dado sinais de que a independência que atingira com a mudança para Moscou não seria lhe tirada tão facilmente após conviver com o regramento de sua família mesmo quando adulto. Para as duas mulheres, sua presença fazia parte dessa independência – ou talvez a motivara, supostamente sendo o vírus que levava o marido e filho para longe do que consideravam correto.

Não se importava minimamente com a opinião de ambas, fazia a sua parte para apoiar Draco quando ele precisava de seu apoio, nem mais nem menos, visto que a relação de ambos baseava-se completamente nessa união e na promessa tácita que fizeram quando se encontravam em momentos de necessidade. Hermione prometera que faria por ele o que o homem fizera por ela quando passara pelo maior trauma de sua vida ao descobrir sobre a doença de Astoria, afinal ele estava tão sozinho nisso quanto estivera um dia.

Sabia a sensação, conhecia o sentimento de impotência contra a situação como um todo e não era nada acolhedor, ainda que soubesse de outras pessoas que tivessem passado pelo mesmo, como quando uma curandeira insistira em levar à Úlitsa Kosygina uma mulher trouxa que havia sido, basicamente, curada da leucemia, ainda que precisasse se submeter a exames para garantir seu estado. A mulher, Eileen, conversara com Astoria e, principalmente, Draco, visto que a doença de sua esposa encontrava-se muito avançada. Ele não entrara em detalhes sobre o diálogo, mas pareceu mais conformado com o que viria.

Estando na Inglaterra, no entanto, Astoria apresentara uma leve melhora com as poções antes de definitivamente receber os tratamentos paliativos. Foi então que afastou Scorpius e entregou-se à “maldição” até que começasse a rejeitar até mesmo as poções mais genéricas, como aquelas para sono e fortificantes. Ela queria que acabasse. Não agüentava mais encontrar-se impotente em uma cama, incapaz de pegar o filho no colo, consciente do próprio quadro cruelmente pintado pelo destino.

— Aproxime-se, Granger, eu não posso nem tocá-la desse jeito.

A voz soou baixa e distante assim que Hermione adentrou o quarto e estacou observando o perfil da mulher que se encontrava deitada contra os travesseiros da grande cama de dosséis. O cômodo não deixava de ser luxuoso, parecido com o aposento do próprio Draco quando solteiro, mas predominava o cheiro das poções medicinais e produtos de limpeza. Era como se ao adentrar o quarto toda a aura da suposta Maldição de Astoria recaísse sobre ela também, o que fez com que hesitasse, além do fato de estar indecisa sobre o que a mulher poderia querer com ela ao mandar o recado pelo marido no dia anterior.

— Como você está?

— Não sei, não sinto mais nada. – Respondeu lentamente, tendo os olhos muito verdes perdidos em direção à grande porta que levava à sacada. – Continuam me dando poções para dor, meu corpo está... Anestesiado. A dor está aqui, mas eu não sinto nada físico. É... Angustiante, eu acho.

Astoria definhara cada dia mais naqueles três anos que passara doente. No início, ela ainda poderia fazer tudo que queria, com restrições alimentares e físicas, sem extravagâncias. Porém, a maldição fora a debilitando cada vez mais até que não conseguisse mais andar, não pudesse mais pegar Scorpius no colo, ir ao banheiro ou tomar banho sem auxílio. Sentia-se mais e mais resignada por encontrar-se ali e ter que observar a mulher que um dia se assemelhara a uma estátua intocável esculpida por Strazza mostrar-se pálida, magra, sem a pose, a maquiagem, as roupas, tudo que a fazia ser quem quisesse e gostasse.  

— Sinto muito, Astoria. – Engoliu em seco, tomando liberdade para se sentar de frente para ela na cama de casal. – Eu não queria que estivesse passando por nada disso, é tudo muito... Irônico.

— Sei que sente, você é a pessoa menos hipócrita que conheço. – A viu respirar fundo e voltar-se lentamente à sua direção. Estranhamente, o semblante, ainda que sofrido e cansado, encontrava-se leve, com um pequeno sorriso habitando seu rosto em um tipo de humor sádico do qual apenas ela desfrutava. – Draco me contou sobre sua pesquisa. Ainda estávamos em Moscou... Eu demorei a aceitar que você, de todas as pessoas, estivesse fazendo algo assim por mim. Mas, parando para analisar, é exatamente o tipo de coisa que só alguém como você faria. Porque você não é hipócrita.

— Eu sou um pouco. – Divagou pensativamente, considerando toda sua situação com Draco e Astoria após se mudarem para Moscou. – Você sabe que sou.

— Se você fosse, teria ficado com Draco há muito tempo. – Já não havia mais pequenos sorrisos, somente a feição de Astoria recordando-se. – Ele estava lá, somente esperando que dissesse sim... Mas você não disse, Granger. Em nenhum momento, concedeu que fossem à frente, como eu esperava. Acredite, houve um tempo em que estava bem com isso. Conformei-me por que... Eu via nos olhos dele a admiração, o orgulho que aprendeu a sentir por você, e então o desejo que se sobrepôs em seguida...

— Astoria...  

— Eu reconheci o desejo imediatamente. – A morena soltou um sorriso amargo. – E me forcei a ficar bem com isso... Apesar de tudo. Draco merece alguém que esteja ao lado dele, como você esteve. E o melhor: que não está marcada por maldição nenhuma.

— Está se despedindo de mim. – Reconheceu naquele momento, a garganta apertada, pois embora não se desse com a mulher, aquilo era decadente. – Me entregando Draco em uma bandeja de prata.

— Não estou me despedindo de você, pois não irei me despedir de ninguém. – Retrucou a Sra. Malfoy à sua frente o mais firmemente que poderia. – Somos duas mulheres que se entendem de uma forma estranha, não?

Divagou sobre a situação de ambas, desde o início, considerando toda a mágoa que Astoria sentira quando Hermione atrapalhara seus planos com Draco, quando passara a morar sob o mesmo teto dos recém-casados, levando insegurança à mulher e ao que sentia pelo marido. Era tudo justificável, ao mesmo tempo em que seu próprio rancor misturava-se à racionalidade que levava a consciência de tudo isso, mas que, ainda assim, não a afastara de Draco, pois fora egoísta quanto a isso.

No fim, de qualquer forma, não houvera qualquer desrespeito, ainda que houvesse mágoa recíproca, visto que, como Astoria pontuara, Hermione não dissera “sim”, embora houvesse presenciado tudo que a mulher contara a respeito do marido e o desejo reprimido que sentia por ela. Tanto quanto a esposa, via em seus olhos, em suas ações, em sua inércia, na forma como se aproximava e se afastava dela quando percebia que ultrapassavam uma linha invisível que impuseram a si mesmos. Duas vezes, duas hipocrisias, mas que Astoria não sabia a que estava se referindo – pois também fora sobre seus sentimentos o tempo todo – e não faria questão de explicar a ela naquele momento.

— O fim... Não lhe parece amargo? – Hermione perguntou após concordar com o fato de que nunca houve realmente uma briga entre elas.

— Mais agridoce do que qualquer outra coisa. – A mulher deixou de olhá-la novamente. – Essa não sou eu. Quanto a isso nunca me conformei.

— Por isso deixou de ver Scorpius. – Já fazia quase dois meses e o garotinho de apenas três anos sentia falta da mãe todos os dias. – Não queria que a lembrança que tivesse de você fosse justamente essa.

— Há métodos bruxos para acessar nossas mais obscuras lembranças, assim como lembranças que se perderam com o tempo. – Pensou Astoria. – Ele me veria assim, se resolvesse recorrer a tais métodos. E eu não quero que meu filho lembre-se dr uma mãe decadente. Continue a pesquisa por Scorpius, ainda que pensar que esteja fazendo por mim a deixe melhor.

Concordou com o pedido e levantou-se, incerta do que fazer em seguida. Astoria não a encarou, manteve-se em silêncio, sua face resignada e possivelmente anestesiada de tudo. Era angustiante conhecer sua angústia, tendo em vista sua pesquisa, e ainda assim não poder fazer nada a respeito. Mesmo com todo o rancor que ambas nutriam uma pela outra, sentia-se cada vez pior ao vê-la daquela maneira. Então, despediu-se – embora a mulher não quisesse nomear aquilo como uma despedida – e voltou-se à saída, seus passos ecoando quase que de forma fúnebre pelo quarto, pois tinha certeza que era a última vez que trocariam palavras.

— Granger? – Com a mão apertando fortemente a maçaneta, não se virou a ela, pois sabia que não a encararia de volta. - Ele teve uma amante enquanto não tinha nenhuma de nós.

You found me dressed in black

Hiding way up at the back

Life had broken my heart into pieces


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ei!
Um bom tempo depois, trago a vocês o final dessa coletânea de dramiones baseadas em músicas da Sia - tudo que ela toca is gold! Eu espero muito que tenham gostado dessa primeira parte, pois logo, logo teremos a próxima. Eu tive que separá-las, pois ficaria enorme e nem sei se o Nyah suportaria um capítulo assim. O fato é: essa já estava revisada e achei justo já deixá-los imaginar como será esse final!

Logo de cara já foquei em Astoria e no problema deixado em Helium. Sim, ela estava doente, como alguns suspeitaram, e morreu quando Scorpius teve três anos, por isso achei justo que a gente focasse em seu problema, no que isso acarretou às decisões de Hermione e Draco, e como eles evoluíram durante esse tempo - mais ou menos 4 anos após ela decidir ir para Moscou. Espero que me digam o que acharam dessa friend zone em que coloquei a ambos, pois meio que existe o sentimento - como ficou claro no primeiro beijo deles, sim foi o primeiro, o que aconteceu na outra parte foi depois disso - mas existe coisas demais acontecendo e entre eles, então é mais crível lidar com tudo antes do romance. Além disso, Hermione não se tornaria amante dele enquanto Astoria morria, certo?

Bom, nem só de romance vivemos e temos Hermione de volta ao Reino Unido and visitando Greyback. Tenho que dizer que é uma das minhas cenas favoritas, de todas as partes, e onde eu tive que pensar muito pra tentar retratar todas as sensações que Hermione poderia ter depois de tanto tempo. Eu espero que tenham gostado e venham me dizer, porque vem mais por aí!

Comentem, deem suas opiniões, tirem suas dúvidas, porque posso responder antes de postar a próxima parte - e até mais fácil pra mim! Àqueles que comentaram as outras fics da coletânia, obrigado, espero que ainda queiram saber o fim dessa história! Nos vemos no próximo capítulo ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Black and Blue VI: Dressed In Black" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.