Os Contos de Mira escrita por Marcella Calife


Capítulo 2
Aquela Que Cuida Dos Doentes




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SÉCULO IX

“A Escola Médica Salernitana foi um marco para a cidade de Salerno. Além de aumentar o fluxo de pessoas para estudar ou buscar tratamento médico possibilitou um crescimento cultural importante. Sendo uma escola de caráter multicultural (grego, latino, hebraico e árabe) e por permitir ao acesso de mulheres demonstrou ser uma referência de interculturalidade e liberalismo, inusual para a época.” - Luciana Maria Masiero

Ouviu-se uma brusca batida na porta. Todos já estavam em seus aposentos; dormindo, provavelmente. Era tarde da noite e as atividades daquele dia provocaram um extremo cansaço em todos... bem, menos em um. Mikhael estava sentado em sua cadeira de madeira, lendo um dos livros que seu professor lhe passara mais cedo. Havia escutado as batidas incessantes na porta – por seu quarto se localizar ao lado –, mas decidira ignorar visto a hora e a grande tempestade. Poderia ser um saqueador, certo? Esta era justamente uma das regras da escola que objetivava a segurança de todos os residentes:

 “Nunca abra a porta quando for tarde da noite, tampouco se estiver sozinho. Não sabemos quais as índoles das almas que por aqui passam. — ordenou seu mestre, uma vez.”

Mas, e se não fosse?

E se fosse alguém que necessitava de ajuda? Poderia ser um viajante que viera de longe para Salerno apenas para buscar ajuda ou alguém da própria cidade que acabara de se infeccionar. Bom, havia casos e casos, e não seria a primeira vez que isso acontece.

Porém, seria a primeira vez que Mikhael atenderia.

Uma forte batida na porta o interrompeu de seus pensamentos e juntando um resquício de coragem resolvera atender. Rezava para que fosse a segunda opção e que não estivesse caindo em uma armadilha. Pegou um cobertor que colocou por cima dos ombros, se encaminhou até sua pequena cabeceira e abriu uma das gavetas: retirou uma faca de caça e capturou a lamparina que estava encima – que utilizava para iluminar o quarto e assim sua leitura.

Saiu do quarto e com passos presunçosos se deslocou até a grande porta principal; destrancando-a, lentamente espiou o lado de fora, sua faca cuidadosamente posicionada para que o possível estranho não avistasse.

Havia alguém de fato, mas que não fizera nenhum movimento estranho, ou melhor, de ataque. Pelo contrário, parecia estar tremendo pelo frio da tempestade, apesar de estar usando uma longa capa que o cobria até os pés. Mikhael tentara ver se era um homem ou uma mulher, mas o capuz impossibilitava.

— Posso ajudar? – perguntou.

— Sim, por favor... – uma voz feminina implorou, levantando a cabeça.

A luz que enredeava da lamparina iluminou seu rosto e o jovem estudante pôde captar o quão molhado se encontrava, significando que a capa não a ajudara tanto assim.

— Claro, entre. – disse, conseguindo respirar ao ver que não era nenhum saqueador. Afastou-se para que ela adentrasse o grande casarão, fechando a porta logo em seguida. A mulher, por outro lado, caminhava em passos lentos, parecendo que estava carregando algo. - Então, o que posso fazer pela senhora? 

A jovem mulher retirou um pano que acobertava seus braços, revelando uma criança que parecia estar dormindo. Seus cabelos ruivos eram curtos e suas vestes pareciam ser desgastadas pela quantidade de rasgos. Apesar de estar dormindo, Mikhael conseguiu identificar grandes bolsas ao redor dos olhos e seus lábios aparentavam estar ressecados. Precisava de água.

— Minha filha está morrendo. – os traços de seu rosto se curvaram como se fosse começar a chorar. – Eu fiz tudo que mandaram, mas cada dia que passa a situação só piora. Está vendo essas feridas? – indicava com a cabeça para as pernas da garota. Mikhael aproximou a lamparina para que pudesse enxergar melhor: eram feridas grotescas que chegavam até a carne viva. - Eu vim de muito longe, senhor. Por favor, eu não tenho mais a quem recorrer.

— Sim, sim. – ele se aproximou da mesa de madeira que ficava à frente da porta, abaixou a lamparina, pegou uma das jarras metálicas e um dos copos, depositando água e entregando para a mãe. Repetiu o mesmo processo ao pedir que a mãe acordasse a criança.

— Obrigada. – agradeceu. Mikhael observou que aos poucos ela começava a se acalmar. - O senhor pode curá-la?

— Eu? Sinto muito, mas duvido que posso fazer alguma coisa.– ele a observou abaixar o olhar como se não fosse a primeira vez que escutava aquilo. – Sou apenas um estudante. Porém, creio que Nádia possa ajudar... 

— Nádia?

— Sim, ela é uma das médicas e a única professora da escola. É a mais antiga e pelo meu julgamento a melhor. – tentou tranquiliza-la - Não diga aos outros homens que lhe disse isso. – brincou, tentando arrancar algum sorriso da jovem mãe, mas sem sucesso. - Me acompanhe, vamos até o quarto dela.

Depois de andarem por alguns corredores e subirem algumas escadas, os três chegaram ao que seria o quarto da médica. Para não assustá-la, Mikhael batera na porta, suavemente.

Após a terceira batida, ouve-se o som da porta sendo destrancada. Uma senhora põe a cabeça para fora, com as sobrancelhas arqueadas.

— Pois não?

— Desculpe-me acordá-la, professora, mas essa mãe e sua filha precisam de sua ajuda. – Mikhael olhava para baixo, como se estivesse com vergonha em ver a senhora tão tarde da noite.

— Deixe-me dar uma olhada, querida. – pediu para que a mãe se aproximasse.

Após a mãe mostrar a situação da filha, Nádia chega a um veredito.

— Eu conheço isso. Essa doença vem com o inverno. Tratei as mesmas feridas em um homem há três semanas. Está coçando, querida? – indagou para garotinha que apenas concordou. - Venha, entre, vamos cuidar disso. Obrigada, Mikhael!

O jovem rapaz assentiu e deixou as três mulheres sozinhas.

— Pode colocá-la na cama. – instruiu a mulher mais velha. - Vou prepara uma pasta para colocar em cima das feridas.

— Eu realmente não sei como te agradecer. – a mãe arfou. Suas esperanças estavam voltando.

— Não há necessidade, é o meu trabalho. – Nádia sorriu, se movimentando até o seu guarda-roupa, onde vasculhou por alguns segundos por entre suas roupas e retirou uma sacola. Dentro havia algumas plantas medicinais. Procurou mais um pouco e apanhou um pote e um pilão de madeira escura.

Despejando tudo em cima da cama, foi à gaveta de sua cômoda e retirou mais um recipiente com um dos cremes que fabricara há um tempo. A mistura dos ingredientes fecharia as feridas. Deixaria cicatrizes, mas pelo menos, com sorte, livraria a menina da morte.

— O que é isso na sua cabeça? – a menina perguntou. Era a primeira vez que Nádia a ouvira falar.

— Clarice! – a mãe a repreendeu.

— Está tudo bem. – a senhora sorriu. - Bem, isso aqui é um hijab. Sabe o motivo por qual uso isso?

A garota balançou a cabeça de um lado para o outro.

— Significa que ela é muçulmana. – a mãe lhe explicou.

— Muçulmana? – a garotinha não parava de fazer perguntas e Nádia não parecia se importar.

— Isso significa que pratico o islamismo... uma religião. Você sabia que um dos fundadores dessa escola médica era um árabe muçulmano? Junto a um grego, um latino e um hebraico. – disse, enquanto começava a preparar a mistura.

Clarice arregalou os olhos, arrancando pequenos risos das duas mulheres.

— Ele te ensinou algo?

— Oh, querida, eu não o conheci. Eu sou velha, mas não tanto. – Nádia piscou para a garota, arrancando uma pequena risada. Ela parecia estar ficando distraída da doença, ao ponto que falava com Nádia, por isso a mesma continuava. - Mas aprendi muito com meus ancestrais, sim. Principalmente, dos tratados médicos com ensinamentos como cremes feitos de especiarias, frutas ou ervas e técnicas cirúrgicas.

— Isso parece ser legal. – Clarice respondeu.

Nádia riu, ajudar os outros sempre era legal.

— O que é isso? – Clarice perguntou, franzindo o cenho ao avistar para a mistura que se tornava verde à medida que a senhora mexia com o pilão.

Cada vez que a garotinha falava, Nádia ficava abismada com sua curiosidade.

Isso é o que vai fazer você melhorar. – a mulher mais velha deu uma piscadela - Eu misturei algumas ervas que havia guardado antes do inverno chegar com um creme que fabriquei há alguns meses. Algumas semanas usando isso e logo estará correndo por aí.

Os olhos da garota se iluminaram.

— Promete?

A mulher mais velha se contraiu; sabia que a cura não era certa. Em nenhum dos casos – fosse uma enfermidade mais “leve” ou mais “perigosa” – se podia ter certeza que o doente sobreviveria.

— Eu vou dar o meu melhor, certo? E eu espero que você também. Deverá se alimentar bem e descansar bastante. Posso contar com vocês duas? – a mulher entreolhava entre a mãe e a filha.

 As duas assentiram.

— Muito bem.

Após a junção do creme com as ervas virarem uma loção pastosa, a senhora se aproximou, sentando-se na cama e começou a passar delicadamente pelas feridas, entretanto parou com o grito inesperado de Clarice.

— Isso arde, mamãe. – a garota choramingou.

— Eu sei, meu amor. Mas isso vai te fazer melhorar, certo? – a jovem mulher olhou para Nádia como se buscasse apoio e a mesma concordou.

— Tudo bem. – respondeu, afastando as lágrimas que ousaram cair.

— O que você gosta de fazer, Clarice? – a senhora continuou.

A garota pensou por alguns segundos e logo seus olhos brilharam como se tivesse encontrado uma resposta.

— Eu gosto de cuidar dos meus animais.

—Oh, sério? Quantos você tem?

— Três. São as cabras do meu pai.

— E como você cuida delas?

— Eu as vigio quando meu pai me pede, as alimento e cuido quando elas ficam doentes.

A mãe sorriu, enquanto passava as mãos pelos cabelos ruivos da garota.

— Oh, então acho que estou em frente a uma futura médica, certo?

A garota se espantou. Médica? Ela nunca havia pensado nisso. Talvez cuidasse de sua casa como sua mãe ou virasse monja, mas nunca havia lhe passado pela cabeça ser aquela que cuidava dos enfermos. Clarice já havia visto muitos doentes, principalmente na época que o inverno chegava; parecia que trazia todas as mazelas do mundo. Entretanto, por incrível que pareça não se amedrontava.

Médica. Aquela que cuida dos doentes.

Ela gostou da ideia.

— Você deixa, mamãe?

— É claro. Mas, precisa me prometer que irá melhorar.

A garota balançou a cabeça positivamente.

— Pronto. Terminei. – anunciou Nádia. – Quero que fique com o resto dessas ervas e desse creme. Passe em suas feridas durante cinco dias antes de dormir. – relatou para a mãe. - E quanto a você Clarice, preciso que descanse bastante, que sempre mantenha as feridas limpas para que não piore e que se alimente equilibradamente. Posso contar com você?

— Pode!

— Fico feliz, então.

A mãe a agradeceu, pegou a filha nos braços e quando se virou para irem embora foi interrompida pela senhora.

— Oh, espere! – exclamou como se estivessem esquecido algo. - Tome isto. – entregou nas pequenas mãos da criança um bracelete de prata com alguns pingentes em formato de lua. - Guarde com cuidado e quando ficar mais velha retorne para essa escola. Esse bracelete será sua passagem de reingresso. Primeiramente, será uma estudante da arte da cura assim como Mikhael, se realmente for boa nisso ficará e exercerá cuidando dos enfermos, assim como eu.

— A senhora está falando sério?

— Por que não estaria? Estou ficando velha e preciso de uma aprendiz que fique em meu lugar. Volte e lhe ensinarei tudo que sei.

A garota se soltou dos braços da mãe e foi até Nádia, a abraçando. Murmurou um agradecimento lhe dando um beijo na bochecha e voltou para a mãe, se despedindo da pessoa que acabara de salvar sua vida.


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Notas finais do capítulo

REFERÊNCIA: MASIERO, Luciana Maria. Escola Médica Salernitana, procedimentos cirúrgicos e Trotula de Ruggiero: um trabalho de campo em Salerno (Itália). TRIM: 2016, p. 27-44.



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