Espadas, Chamas e Chifres escrita por Risadinha


Capítulo 13
Adormecidos


Notas iniciais do capítulo

Hello hellou!
Cap novinho, um pitico grande, mas muita coisa acontece, então...
Boa Leitura!



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O corredor se prolongava até onde era possível ver.

Elesis forçou a vista, tentando enxergar através da escuridão, mas nada podia ser visto, nem mesmo escutado. Ela estava de pé em um local que não sabia como tinha chegado. Também não sabia para onde iria.

O corredor estreito se ocupava de celas abertas e vazias. O instinto da espadachim apontava que estava sozinha, porém, ela sentia algo no local, uma presença. Estava em algum lugar, aguardando por ela.

Elesis deu um passo. O peso de uma mão caiu no seu ombro.

Ela berrou ao levantar. Foi levada a despertar pelo puxão no braço.

— Ei!

Gerard segurava uma agulha e a linha estava presa na ferida do braço de Elesis. Os três cortes feitos pelo ataque do dragão eram costurados pelo mesmo, que usava um óculos para fazer a delicada tarefa.

— Elesis, sente-se. Eu preciso terminar isso.

Olhou em volta. Estava em uma cozinha que não parecia familiar, sentada a uma mesa coberta de curativos e gazes sujas de sangue.

— O quê? Onde... onde tô?!

Elesis se agitou, puxando o braço preso a linha.

— Elesis, você vai arrebentar os pontos assim!

— Me solta! Eu não preciso da sua ajuda!

Ela puxou o braço e a linha se rompeu. Tudo parecia um sonho, mas a dor dos pontos rompidos se mostravam bem reais como o incomodo no centro do rosto. Encostou na ponta do nariz, percebendo um curativo cobrindo a região. Ousou tocar e uma dor adormecida foi despertada.

— Elesis, por favor — Gerard gesticulava para a cadeira.

— Cala a boca, para de falar! Você não é o Gerard!

Gerard se levantou e Elesis recuou.

— Sente-se e vamos conversar.

— Não, eu não vou—

Elesis pegou a cadeira e a ergueu. Gerard voltou a se sentar, mãos preparadas para se defender.

— O Gerard está morto! Eu vi! — Ela mirou a cadeira para ser jogada. — Eu vi aquele idiota morrer na minha frente! Não existe nenhuma possibilidade, mesmo que pequena, de ele ficar vivo. Então eu pergunto: quem é você?!

Uma certeza sólida que se moldou ao decorrer dos anos. Elesis sempre visitava a memória do acontecimento, todos os detalhes preservados mesmo após tanto tempo. O frio, a voz baixa de Gerard e seu corpo sem mais batimento. Ela tinha visto com os próprios olhos a vida escapar dele e isso era uma coisa que não era esquecível.

— Eu posso explicar.

— Gerard está morto!

— Eu estou aqui!

— Não, você está morto! Você... — ela se interrompeu, recuperando o ar. Segurou com mais força a cadeira, agoniada pela falta de palavras. — Se o Gerard estivesse vivo, eu saberia. Ele teria me contado. Ele...

As mãos de Gerard caíram junto com seu olhar. Não era a reação que Elesis queria ver. Nada de lamentação. Nada de culpa. Ela preferia receber um soco no lugar do silêncio com milhares de desculpas do ruivo.

Elesis estava prestes a abaixar a cadeira, mas agiu contra seu instinto. Avançou e desceu o móvel contra Gerard.

— Já deu!

O peso foi arrancado das mãos da espadachim. Confusa, olhou surpresa para Astaroth se distanciando com a cadeira. Ele a devolveu ao chão, apontando para Gerard.

— Eu disse que ela não escutaria. Ganhei a aposta, tá me devendo.

O alvo do ódio foi dividido. Elesis seguiu Astaroth com o olhar.

— Ela só precisa de tempo para absorver tudo — disse Gerard. — Explicaremos tudo que você quiser, Elesis. Mas primeiro seu braço.

Elesis o agarrou pelo pescoço. Não tinha muita força, porém teve um pouco para fechar os dedos e não soltar mais. Gerard apenas segurou seus pulsos, sem lutar ou fazer muito esforço contra ela.

Era apenas ódio. O que Elesis demonstrava nada mais era que uma ação irracional. Ela própria não compreendia o que fazia, por que fechava suas mãos com forças que ela não tinha mais. Era uma ação tão fútil.

— Eu te odeio.

Escapou. Elesis apertou com mais força, reprimindo as demais emoções.

— Eu te odeio, eu te odeio, eu te odeio!

O rosto de Gerard estava vermelho e a única preocupação de Astaroth era de mexer a sopa que fazia no fogão.

— Sinto... muito...

— Não, eu não quero desculpas! Eu só quero que você morra!

O aperto em seus pulsos diminuiu.

— Você deveria ter continuado morto!

Ele não revidou, ele não lutou contra. Elesis esperou, mas nada veio. O olhar de Gerard se distanciava e começava parecer longe demais para alcança-lo novamente.

Então o soltou. As dores voltaram, junto à queimação dos cortes costurados. Pelo movimento bruto, Elesis rompeu alguns pontos e uma linha de sangue escorreu por sua palma.

Ela fechou o punho, impedindo que pingasse.

— Você era para estar morto.

Gerard esfregou o pescoço. Se ele tivesse ficado morto, como acreditou por todos esses anos, ela não estaria passando por essa situação.

Não estaria despertando emoções adormecidas. Simplesmente não sabia o que fazer com elas, além de berrar e atacar a razão. A única coisa que podia fazer era segurar-se no lugar enquanto encarava o ruivo. Com o que podia, ela se manteve firme, mordendo o lábio inferior para não derramar lágrimas.

Com uma inspirada profunda, Elesis voltou para a cadeira e colocou seu braço sobre a mesa.

— Termine então.

Gerard se recuperou e pegou a agulha. A risada de Astaroth preencheu o silêncio deixado.

— Quanta ingratidão da sua parte, Elesis.

— Não fale como se eu não tivesse com raiva de você também, Astaroth.

Astaroth se apoiou na mesa. O sorriso convencido de sempre ganhava mais energia caótica pela barba falha.

— Minha falsa morte te incomodou?

— Não a mim.

Foi um pequeno vacilo no sorriso de Astaroth, mas que foi notado por Elesis. Ele sabia a quem ela se referia. Essa breve queda de postura mostrava o quanto isso significava para o mesmo.

— Pronto.

Gerard deu um nó e cortou a linha. Elesis olhou o próprio braço com três cortes costurados. A queimação havia aumentado como o inchaço. Se ela ao menos tivesse Arme por perto para poder cura-la. Magia, era disso que ela precisava, não cuidados de um homem, cuja melhor habilidade era tirar vidas.

— Vá tomar um banho, Elesis — sugeriu Astaroth, voltando para o fogão. — Você cheira a podridão.

***

Uma casca preta descolava de Elesis e descia pelo ralo. Era uma mistura do próprio sangue, já escuro, e sujeira. Ao passar a mão pelo cabelo, uma camada grossa saiu por seus fios escuros. De pouquinho em pouquinho, entre um sabão e outro, a espadachim voltou a ser ruiva e sua pele exposta, dando vista a menor cicatriz que tinha.

Elesis desligou o chuveiro, então permaneceu no lugar. Permitiu que o calor do vapor a sua volta afastasse o frio que ganhava lugar no banheiro. Quando percebeu, seus lábios tremiam e a dor de seu nariz fraturado pulsava.

Levou mais tempo que preciso para sair do banheiro, vestir uma roupa nova, peças masculinas e grandes, então voltar para a cozinha e se sentar à mesa. Gerard a serviu uma tigela da sopa. Elesis comeu sem discussão, tão faminta e fraca por ficar mais de um dia sem se alimentar. Ela repetiu três vezes, mas não pediu por um quarto prato por possuir outra fome para ser saciada.

— Então... como?

A pergunta foi jogada no ar para os dois sentados em volta dela. Gerard se apoiou na mesa, sem conseguir esconder o nervosismo.

— Não foi muito difícil. Primeiro foi o Astaroth. Ele tomava esse liquido que faz seu corpo entrar num estado de hibernação, então ele deu um tiro na própria cabeça e pareceu de verdade que tinha morrido.

— Bem... — Astaroth se pronunciou. — Era uma bala de cura. Ela se ativa dentro do corpo. O mais complicado foi ter te tirado do Conselho, isso sim.

Gerard concordou com um sorriso cansado.

— Eu tomei do mesmo liquido e deixei Cazeaje levar meu corpo para o Conselho. Depois Astaroth veio me resgatar.

— Como Cazeaje não percebeu? — Elesis cruzou os braços.

— Ela estava muito ocupada se gabando de ter conseguido me matar e ter te prendido. Foi uma jogada arriscada a minha, mas deu certo.

 Elesis não lembrava muito do que aconteceu após sua prisão e morte de Gerard. Por ter conseguido as chamas azuis e estado à beira de enlouquecer, era quase impossível manter a consciência intacta para notar tudo que acontecia a sua volta. Ter saído viva já era uma grande vitória.

Despercebidamente, ela passou a mão no nariz. Um curativo novo havia sido feito. Porém continuava a doer, o que lembrou no mesmo instante e reagiu com um abafado rugido.

Elesis se recompôs, fingindo que nada aconteceu.

— Ok... e por quê? Por que fizeram isso? Você — ela olhou para Gerard —, eu sei o motivo. Você — foi a vez de Astaroth —, não faço ideia. Ter deixado o colégio para o Grandiel tomar conta sozinho, nunca ter dado uma satisfação para a Lothos...

— Ei — Astaroth olhou incomodado.

— E nunca ter se despedido do Lass.

Um nervo acertado. Elesis pegou a colher da mesa e começou a comer sua quarta tigela de sopa.

— Astaroth tinha feito um ataque contra Cazeaje — explicou Gerard. — Foi um ataque suicida, não tinha como sair vivo depois disso.

— Mas por que do ataque?

— Pra desestabiliza-la.

— Isso não faz sentido nenhum.

— Não é pra fazer, até porque, já aconteceu e não importa mais.

Elesis largou a colher na tigela.

— Claro que importa! E ele sabe disso.

Astaroth se levantou, mas não se afastou da mesa. Encarava os próprios pés com os lábios pressionados. Fazia anos que Elesis não o via, porém reconhecia uma expressão não conveniente do mesmo. Não sabia se ele sempre teve essa reação à pressão de uma pergunta pessoal ou se tornou um novo hábito durante o tempo fora.

Para Elesis, o homem a sua frente tinha fragmentos do velho Astaroth que conheceu, alguns fragmentos novos, mas apesar de tudo, continuava a reconhece-lo; como Gerard.

— Eu fiz isso pelo Gerard.

Elesis observou a reação do ruivo. Não houve.

— Eu não poderia deixa-lo fazer isso sozinho, por isso eu fui junto. Satisfeita? Ou quer uma resposta mais dramática?

— Não, pode guardar a resposta dramática para o Lass.

Ela voltou a sopa, ao que restou. Duas colheres e nada mais restava. Mãos vazias, Elesis esfregou o rosto; novamente, esqueceu do nariz sensível.

— Falando nele — em um tom baixo, tentando puxar outro assunto sutilmente, Gerard falou. — Onde que ele tá? Vimos alguns sinais das chamas, mas não o encontramos.

O chão estava gelado. Elesis desencostou os pés descalços do piso, encolhendo-se na cadeira.

— Eu tentei impedir, mas...

Bastou o silêncio para ambos entenderem o que tinha possivelmente acontecido.

— Foi um garoto, acho que ele é asmodiano, sei lá. Eles levaram o Lass vivo e ele ainda está vivo, tenho certeza. — Elesis balançou a cabeça, confirmando. — Ele tá vivo, eu sinto isso.

Em algum lugar da cidade, distante ou perto, Elesis sentia o calor das chamas. Estavam fracas, pequenas, próximas de se apagarem pelo menor vento. Uma onda de desespero a atravessava sempre que o pensamento vinha em mente. Tão impotente. Machucava estar sentada à mesa de jantar com suas pernas cansadas e nariz latejante. Lass precisava dela e sua única preocupação era conseguir mais uma tigela de sopa.

— Sabe o que essas pessoas querem com o Lass? — perguntou Gerard. — Extrair as chamas não é tão simples assim.

— Provavelmente as chamas. Não importa, a gente precisa encontrar ele logo.

Ela se levantou, perguntando-se por que tinha feito isso. Seu corpo se preparou para entrar em combate sem a capacidade para tal. Elesis voltou para a cadeira.

— Descanse, Elesis — sugeriu Gerard. — Você perdeu bastante sangue, precisa se recuperar.

Voltou a ficar de pé novamente. Agora tinha um motivo para se levantar.

— Use o quarto de casal. Amanhã a gente resolve sobre o caso do Lass.

Sem discordar, Elesis se dirigiu à escada. Apoiou o pé no primeiro degrau, mas se virou.

— Eu ainda não resolvi com vocês. Principalmente você, Gerard.

Ele assentiu, olhos cabisbaixos.

— Eu só não te mato agora...

Elesis fechou os punhos. O aperto em seu peito a impedia de continuar, porém, também a motivava sentir mais ódio. Desejava enfiar a mão na cara de Gerard, rasgar sua feição atual.

Muitas vontades que se contradiziam. Elesis inspirou fundo e subiu a escada, sem dar oportunidade para si própria fazer algo que se arrependesse, ou se orgulhasse.

Ela entrou no quarto e caiu de bruços na cama de casal. Seu corpo, uma forma sólida, derreteu-se sobre as cobertas. As dores se misturaram até restar uma única sensação sufocante. A superfície estava distante demais para alcança-la, e Elesis não tinha mais forças para nadar.

Como seu último suspiro de vida, ela empurrou o corpo, encaixou sua cabeça entre os travesseiros e deixou a escuridão tomar sua consciência.

***

Ela tentou gritar, sentindo gosto de lama em seguida. Sua cabeça foi pressionada com mais força contra o chão, o peso sobre a nuca impedindo de se levantar. Usou as mãos para se empurrar, desprender-se da pegada desconhecida, mas era quase impossível em seu estado atual.

Elesis continuou a lutar até a mão em sua nuca escorregar. Ela girou e conseguiu acertar um soco. Mas foi segurada pelo pescoço, empurrada novamente contra a lama. A luta continuou com tentativas que se tornavam fúteis ao decorrer delas.

Um grito, ela tentou soltar mais uma vez. Um chiado foi o que saiu.

— Elesis!

Ela se debateu, gastando as últimas energias.

— Ei, pare! Sou—

O grito finalmente foi solto. A umidade da lama desapareceu, trocada pela maciez das cobertas. Elesis se forçou a piscar e parar de se debater; não exatamente nessa ordem. Quando notou Gerard de pé ao lado da cama, afastando as mãos abertas, ela começou a entender o que estava acontecendo.

— Você... — Gerard abaixou as mãos. — Você estava gritando.

Elesis piscou, sentindo um peso escorrer de seus olhos. A vista se tornou mais limpa, assim percebendo três linhas vermelhas na bochecha de Gerard.

— Você tá bem agora?

Foi preciso se sentar para pensar em uma resposta. Elesis ainda sentia o aperto em seu pescoço, o que parecia mais parte da imaginação própria.

— Elesis?

— Eu tô.

Foi forçada a olhar diretamente para ele e assentir. Gerard retribuiu com um sorriso tímido.

— Certo, se precisar de algo... eu... — ele partia, apontando para porta. — Eu tô lá embaixo se precisar de algo.

Outra vez, Elesis teve que entrar em contato visual e confirmar. Era a única confirmação que Gerard necessitava. Então ele se foi.

Elesis não sabia mais o que estava fazendo. De forma geral. Ela olhou para as próprias mãos, perdida sobre o que fazer com elas. Havia sangue nas pontas dos seus dedos e ela estava completamente certa de que não pertencia a si. Era óbvio de quem era.

Elesis fechou os olhos.

Se tinha um pesadelo que ela queria acordar, era esse.

***

E Elesis acordou.

A luz da manhã atravessava a cortina lilás que balançava pela fraca brisa. Presa entre o momento de acordar e dormir, ela pensou ser mais um começo de dia normal. Antes mesmo de perceber a situação, o rugido distante serviu de lembrete.

Suspirou.

Levantando-se, o que demorou mais que o necessário devido as dores, ela teve outro lembrete pelos passos do andar de baixo. Eram baixos, mas Elesis escutava inconscientemente, mais por um sentido instintivo do que apenas uma boa audição.

Ela deixou o quarto, desceu a escada e, antes que chegasse de vez na cozinha, viu Gerard sentado na mesa. Os três cortes na bochecha continuavam presente. Elesis fechou os punhos.

— Está com a cabeça mais fria?

Não conseguiu evitar o olhar nervoso para Astaroth. Ele sorriu e tomou um gole da caneca de café.

— Vocês poderiam me explicar como terminei com o nariz assim? — perguntou Elesis ao se juntar a mesa.

— Quando você desmaiou, você caiu de cara no chão — respondeu Gerard.

Isso explicava porque sua cara doía tanto além do nariz. Elesis não tinha se olhado no espelho desde que tomou um banho. Não pretendia também.

Astaroth botou a caneca de lado.

— Agora que você acordou, vamos para o que importa. Onde o Lass pode estar?

— Eu não sei. Não sei nem quem são as pessoas que o levaram!

— A gente precisa encontrar o Lass logo. Passaram-se quantos dias desde então? Um? Dois? — Pausou, olhando para as próprias mãos. — Se tiverem o método certo de tirarem as chamas azuis, provavelmente já conseguiram.

Elesis engoliu o pedaço de pão a seco. A comida desceu rasgando.

— Mas — destacou Astaroth — não vimos ninguém com as chamas até o momento, então eu posso estar errado. O que não tira a chance de conseguirem as chamas.

Isso explicava a fraca conexão com as chamas. Se fosse um dia normal, Elesis teria rastreado Lass, apesar da distância.

— Quantos são?

Gerard mexia em sua caneca quando fez a pergunta.

— No mínimo, dois. Não sei se tem mais, não que eu tenha visto.

Gerard suspirou pelo nariz, o que Elesis conseguiu perceber do gesto tão sutil do mesmo.

— Ah, e também...  — ela lembrou. — Eu não o vi, mas me disseram que o Duel estava lutando contra as chamas azuis. Ele deve estar do lado deles também.

Gerard parou de mexer na caneca, levando seus olhos extremamente arregalados para ela. Astaroth compartilhava da mesma expressão, ambos suando frio.

— Você disse Duel? O Duel? O asmodiano Duel?!

Receosa, assentiu. O ruivo se levantou com sua caneca, sem sair do lugar com a expressão de pânico.

— Ah não, não, não... — murmurou, enfim se movendo.

— Isso é péssimo — comentou Astaroth.

— Por que? — Elesis perguntou com uma inocência genuína. — Ele é forte, mas vocês dois juntos são mais.

— Não, Elesis—

— Gerard pode vencê-lo sozinho! Não é, Gerard?

Gerard estava encostado na pia, de costas para eles. Elesis repetiu a pergunta, mas o silêncio permaneceu. A resposta também não podia ser encontrada pela expressão de Astaroth.

— Gerard, você é forte. Você pode vencer! A quantidade de poderes que você tem serve pra vencer o Duel.

Nenhuma resposta vinda dele.

— Elesis, não é tão simples assim. Gerard não tem mais condição para manter uma luta contra um adversário tão grande como o Duel.

Ela soltou uma risada. Por quê? Perguntou-se o mesmo ao se censurar.

— Gerard é forte.

— Não mais.

Não era uma resposta, mas conseguiu calar a espadachim. O clima com um ar de aceitação, Gerard se virou e terminou de tomar seu café.

— O mais importante é saber onde o Lass possa estar — Astaroth puxou o clima anterior. — Então planejamos algo.

Elesis esfregou o braço enfaixado. O desconforto dos pontos apenas crescia toda vez que lembrava, o que piorava com a vontade de coçar. Ela teve que afastar a mão.

— Eu acho que posso rastrear o Lass.

— Como? — perguntou Astaroth.

— Eu e o Lass temos uma certa conexão. Ficou fraca depois que ele foi sequestrado, mas acho que consigo encontra-lo.

Os dois a olharam em conflito. Isso fez Gerard perguntar:

— Conexão?

— Longa história. Não tenho certeza que conseguirei, mas posso tentar.

A dúvida permaneceu nas feições de Gerard e Astaroth. Elesis manteve o silêncio, usando como desculpa a comida que enfiava na boca ferozmente. De certa forma, ela estava um poço de nervosismo. A conexão com Lass era quase inexistente e isso podia se aplicar a sua vida.

Elesis precisava encontra-lo, custe o que custasse.

***

Lire não sabia o que esperar quando entrou no Conselho. Havia muitas pessoas por ali, todas agitadas e apressadas para chegarem a algum lugar. Foi graças a Arme que pôde encontrar um caminho para fora do caos.

O último andar do Conselho era o único lugar de paz. Ninguém por ali, um vazio que crescia pelos corredores.

— Você está bem, Arme? — ela perguntou pela terceira vez.

A maga deu um sorrisinho forçado contra o rosto cansado.

— Não se preocupe comigo, estou inteira, isso que importa. Estou mais preocupada com os outros e...

Ela não completou, recuperando o fôlego. Contudo, continuou a andar apressadamente.

— A Elesis está bem. Ela passou no colégio.

Arme parou. A notícia não tinha chegado nela ainda, pelo visto.

— A Elesis tá...

A elfa assentiu, quase sorrindo junto com o alívio de Arme.

— Mas... como?! Eu a vi—

— Não importa agora, ela também não me explicou muito. Quero saber por que você pediu para eu vir aqui.

Arme voltou a andar. Lire a seguiu com um suspiro. Quanto mais precisava andar?

— É melhor você ver com os próprios olhos.

A vaga resposta despertou um desconforto  . Até questionaria, mas sua atenção logo foi voltada para raízes de planta. Ocupavam tanto o chão quanto o teto e paredes. Ao decorrer do corredor, mais raízes surgiam.

Todas vindo de uma porta dupla no fim do andar. O que havia de morte nos andares abaixo, nesse era cheio de vida.

— O que é tudo isso?

Arme segurou a maçaneta.

— Achei que reconhecesse.

Antes de poder perguntar, a porta foi aberta. Lire entrou no espaçoso salão. A vegetação tomava conta de todo o ambiente, subindo pelas paredes e contornando a cúpula de vidro. A luz do dia atravessava e iluminava a piscina no centro de tudo.

Lire se aproximou mais. Sem o que dizer.

Na piscina, raízes entravam na água. Flores de diversos tipos boiavam. No centro de tudo, um corpo deitado, imóvel.

— Quem é?

Por mais curiosa que tivesse, não teve forças para se aproximar da beirada.

— Ronan.

Lire se assustou. A resposta que esperou vir de Arme veio de outro lugar; de uma outra voz. Sem temer, ela se virou, então percebendo outra pessoa naquele salão com elas.

Ryan abriu os braços, já sabendo da seguinte reação de Lire. Ele a recebeu com um abraço caloroso, rindo quando a mesma segurou seu rosto, desacreditada.

— Como que você chegou aqui? E quando?!

— Eu estava chegando na cidade quando tudo aconteceu, então vim pra cá. — Ele olhou para Arme. — Cheguei no momento certo, não é?

Lire começou a entender o que acontecia naquele salão. As raízes, todas ligadas à piscina que Ronan repousava. Ela se prendeu naquela questão por mais alguns segundos antes de voltar para Ryan.

Ryan que agora estava um pouco diferente da última vez que viu. O cabelo arrepiado continuava de pé, mas a lateral da cabeça raspada. Os dentes que sempre eram sinônimo de sorriso perfeito tinha um quebrado, faltando um pedaço. Diferente, mas ela ainda o amava tanto.

— Você poderia ter me avisado antes — disse Lire.

— Eu estava ocupado mantendo aquele cara ali vivo.

Enfim, a elfa voltou para o que acontecia. Ela se afastou de Ryan, apenas um pouco para se aproximar da borda da piscina. Viu dali as raízes conectadas ao corpo de Ronan, presas aos braços e rosto.

— O que aconteceu com ele?

— Pelo que a Holy contou — dizia Arme —, um garoto disparou contra ele. Assim, do nada. O disparo acertou a cabeça.

Lire apertou as mãos contra o peito. Sua aflição diminuiu com o perto de seus ombros. Ryan não se afastou dela.

— E como ele ficou vivo?

Arme cruzou os braços, encolhida.

— Eu não sei bem. Quando cheguei, alguns magos estavam curando, mas ele só continuou vivo por algum tipo de vontade própria. Ninguém na condição que ele se encontrava teria ficado vivo. — Ela se encolheu mais, quase sumindo entre os ombros. — Eu fiz o possível para o Ronan continuar respirando.

— Ele ainda está — falou Ryan. — As plantas estão ajudando na recuperação.

Lire conseguia sentir a magia passando pelas raízes, como cabos de energia. Este salão era um lugar rico de mana, um pouco perigoso até por ser tão chamativo.

— Mas ele vai acordar?

Olhou para Arme. Não tinha uma resposta. Olhou para Ryan. Também não.

— Na verdade — a maga falou —, eu achei que você pudesse nos dizer. Normalmente Holy faria esse trabalho, mas ela está tão fraca.

— Eu? Meus sentidos não são tão aguçados quanto aos da Holy.

— Apenas tente. Por favor.

Não tinha como negar. Lire tirou os sapatos e segurou sua saia ao entrar na piscina. Não era apenas o ar do salão que estava gelado, a água congelante dificultou seus primeiros passos. Segurou firme a saia, embora estivesse submersa até a cintura, e seguiu até o corpo de Ronan.

Ao chegar perto, ela teve a surpresa de ver melhor o estado do rapaz. A roupa do torneio ainda estava nele, escondida pelas raízes que cobriam seu corpo e entrelaçavam os braços expostos. Este era um estado muito chamativo para um líder de Conselho estar, porém a atenção de Lire se prendeu a outro detalhe.

O longo cabelo de Ronan estava solto, boiando a sua volta. A bela cor azul que sempre o acompanhava e marcava seus fios não estava mais presente. Lire quase o confundiu com Lass pelo cabelo branco. Ausente de qualquer cor, totalmente pálido como sua pele.

— O que — ela tentou formar uma frase, presa no choque do momento. — O que aconteceu com o cabelo dele?

— É um pouco complicado de explicar — disse Ryan. — Esse é um processo de regeneração pelas plantas e arranca muito da pessoa. É uma troca. Há sempre alguns efeitos colaterais.

— A cor do cabelo é o de menos — falou Arme. — O importante é ficar vivo.

Não é como se Ronan fosse se importar com isso enquanto estivesse respirando. Lire deu a volta por seu corpo, passou sobre algumas raízes e empurrou as flores do seu caminho. Ela se colocou atrás de Ronan, levando as mãos às laterais do seu rosto.

De olhos fechados, Lire se concentrou em sentir a energia do rapaz. O ambiente composto pela natureza ajudou o processo de reconhecimento. Apenas levaram alguns minutos até abrir os olhos novamente.

— Ele está se recuperando bem.

A postura de Arme se endireitou. A elfa abriu um sorriso positivo.

— Ele vai ficar bem, Arme.

— Eu sei, é que... — Ela passou a mão pelo cabelo, segurando uma mecha entre os dedos. — Eu só precisava de uma confirmação.

A energia de Ronan circulava por todo o corpo, agitada principalmente na cabeça. A mente do jovem Erudon era inundada por uma tempestade crescente. Lire se perguntava o que acontecia no pequeno mundo dentro de si enquanto possuía uma expressão tão pacífica.

Ela passou a mão pela face de Ronan, evitando tirar a franja que cobria um dos seus olhos. Havia um vácuo naquela área, por onde vazava parte da sua energia.

***

— Cuidado.

— Eu tô tomando cuidado e para de me segurar!

Elesis puxou o braço de Gerard e continuou as subir o telhado da casa. Ela chegou no topo, vendo o estado da cidade a sua volta. O céu lilás suavizava a destruição de casas e prédios, mas era através do silêncio do dia que fazia Elesis ter noção da situação. As poucas pessoas que restaram na cidade ou lutavam para sobreviver ou estavam escondidas e logo morreriam sem um recurso como comida e água.

Ela estalou as mãos e dedos, distanciando-se dos pensamentos.

— Certo — exclamou Astaroth. — Faça seu truque.

Inspirou fundo e prendeu o ar nos pulmões. Elesis esticou os braços para os lados. Mesmo com o silêncio da cidade, ela não conseguiu se concentrar, o que forçou além da conta e quase perdeu a consciência. A respiração foi solta e ela segurada por Gerard.

Elesis se soltou dele.

— Eu tô bem.

— Você tem certeza dessa sua conexão? — perguntou Astaroth de braços cruzados. — Vocês, jovens, adoram se sentirem especiais e acharem que são únicos.

— Não é bobagem! Eu falei sério sobre isso. Só estou um pouco fraca.

— Precisa de mana? — perguntou Gerard.

Elesis quase negou imediatamente, mas era disso que precisava, por isso olhou para o ruivo e assentiu timidamente. Ele levou a mão até suas costas.

— Tente de novo.

Elesis inspirou fundo mais uma vez. O pressionar da palma contra suas costas a tornou leve, livre das dores de seu corpo, e fez seus sentidos se estender por toda a cidade. O silêncio pesou. O que pareceram minutos, enfim um som surgiu.

A fraca batida de coração retumbou ao longe. Elesis soltou a respiração e abriu os olhos.

— Ele tá no castelo.

— Castelo real? — Astaroth questionou de sobrancelhas arqueadas.

— Não é muito longe daqui — ela apontou. — Dá pra ver daqui.

Eles ficaram em silêncio. Pelas feições apreensivas, era possível entender o que passavam por suas mentes.

— Quem seja, esse cara é um puta de um excêntrico — riu Astaroth. — Invadir o castelo? Com certeza ele é seguro da própria força.

— Dio disse que ele é muito forte — comentou Elesis. — Não me disse o nome, acho que ele não tem certeza ainda de quem é.

Forte, foi a única coisa que o asmodiano contou; a única informação que importava. No estado que estava, Elesis não tinha condição de enfrenta-lo, nem mesmo quando estivesse totalmente recuperada. Não tinha o visto ainda, porém conseguia sentir essa energia impactante atingi-la através de Lass.

Elesis fechou os punhos mais uma vez. De repente, a mais pura sensação de dor despertou em seu antebraço direito. Primeiro ela caiu, depois berrou. Foi graças ao reflexo de Gerard que ela não escorregou pelas telhas.

— Elesis?!

— Meu... braço — disse entre os dentes.

A dor pulsava intensamente. Elesis rugiu enquanto lágrimas descontroladas escorriam por seu rosto suado.

— O que ela tem? — perguntou Astaroth.

— E-eu não sei! Será por causa da conexão?

A espadachim deu mais um grito. Segurou seu antebraço, apertando como uma forma de impedir a dor.

Ela cresceu. No interior de seu membro era possível sentir o osso deslocado, despertando mais dor contra a carne. Os dedos se moveram, tateando o chão gelado, buscando escaparem da sensação que eram obrigados a terem. Não tinha como fugir.

Então mais uma pisada caiu sobre o local.

O grito de Lass saiu rouco.

— Hã, o que você tava dizendo mesmo? Por favor, repita.

Lass puxou o braço ferido contra o peito, encolhendo-se no chão.

— Vamos, diga.

Estava muito frio. O calor restante em seu corpo se apagava como as chamas. Elas iam embora sem se despedirem.

— Pino, já chega.

— Ele tá se achando muito, Nellus. Alguém tem que colocar esse palhaço no lugar dele.

— Você já conseguiu tudo?

Lass teve que observa-lo. A espada que Pino segurava brilhava. Os selos pela lâmina reluziam uma luz azul, com exceção de um. Esse era o motivo para a decepção de Pino.

— Mais uma sessão deve ser o bastante.

— Então faça amanhã, senão você vai mata-lo assim.

Lass se sentiu bem pela piedade de Nellus, o que lhe fez se sentir patético por depender da boa vontade do mesmo. Se pudesse, ele ficava com raiva. Se pudesse, ele teria levantado e atacado com tudo para cima do asmodiano.

Apenas se Lass pudesse.

Pino se afastou e isso trouxe um sentimento de alívio. Foi quase imediato o sumiço dessa sensação com a aproximação de Nellus.

— Tudo bem?

Lass pensou no que responder, porém ficou em silêncio; mais por uma questão de cansaço do que por outra coisa.

Nellus aceitou isso como um sim.

— Ótimo.

Mais uma sensação de alívio com seu afastamento.

— Duel, por acaso você viu a Anni por aí?

Estava tão fraco e distante de tudo a sua volta que não havia notado Duel no mesmo cômodo que ele. Lass forçou o rosto para o lado. O asmodiano estava de pé, encostado na parede com os braços cruzados.

Duel manteve o olhar para baixo.

— Desculpa, não a vi.

— Tudo bem. Se a ver, peça para ela ficar aqui no castelo e deixar a vasculha com você.

Nellus deixou o salão junto de Pino. Lass ficou sozinho com Duel. O longo silêncio logo se quebrou com o encontro de seus olhares. Duel tentou desviar, mas parecia preso na imagem destruída de Lass.

Nunca foram amigos, a relação que tinham era de professor e aluno. Nada mais que isso. Mas o pouco que tiveram bastou para criar um pesado clima. Duel tentava não transmitir a culpa, porém ela transbordava por seu rosto fechado.

Isso fez Lass perguntar através de uma voz rouca e baixa.

— Por quê?

Duel virou o rosto. Era uma pergunta que ele devia fazer muito.

Por isso desapareceu. Lass não tinha expectativa de ter uma resposta, mas não esperava ser deixado para trás. Sozinho.

***

O braço de Elesis tinha parado de dor. Por alguma razão, a qual ela desconfiava ser a conexão com as chamas, apenas a sensação dolorosa foi despertada, logo apagada da existência. Pela intensidade, achou que seu braço tivesse quebrado, o que era impossível enquanto puxava a cadeira para se sentar e nada sentia.

— Você está bem?

Gerard não parava de repetir a pergunta com seus olhos de cachorro triste. Elesis bufou, sem se dar o trabalho de responder.

— Se ele tá no Conselho — dizia Astaroth ao terminar de pôr a mesa de jantar —, com certeza está cercado. Acha que o Duel vai estar lá?

A questão desviou a preocupação de Gerard. Sério, ele parecia com o verdadeiro Gerard que Elesis conhecia.

— Seria um desperdício usar Duel como guarda, ele é muito melhor no campo ofensivo. Talvez ele esteja vagando pela cidade.

— Teremos que considerar a presença dele no castelo.

Gerard se preparou para opor, propor algum plano alternativo, mas ele desistiu no último instante.

— Só vamos evitar combate ao máximo possível.

Astaroth assentiu. Então, juntos, olharam para Elesis.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— O quê?

— Para que a gente consiga resgatar o Lass vivo, teremos que evitar brigas — disse Astaroth. — Entende o que a gente tá dizendo? O foco é tirar o Lass de lá e fugir.

Elesis passou a mão pelo braço enfaixado. Ainda estava doendo, como lembrete de seu limite como humana. Se ela pudesse, ela teria ido imediatamente para o castelo. Se ela pudesse, Lass estaria em seus braços, seguro daqueles que ameaçavam sua vida.

Apenas se Elesis pudesse.

Mas ela não podia, por isso se obrigava a ficar na mesma mesa de Gerard e Astaroth.

— Eu sei.

Voltou seu olhar para Gerard. Os três arranhões continuavam marcados na sua bochecha. Elesis comprimiu os lábios.

— Não farei nada impulsivo.

— Que bom ouvir isso — falou Astaroth. — Mesmo que a gente entre em combate, teremos que ser breves. Você está bem para lutar?

Elesis girou o braço enfaixado. A dor não a atrapalhava tanto para se mover, principalmente com uma motivação.

— Posso lutar.

— Não falei com você.

Astaroth olhava para Gerard. Elesis aguardou por uma resposta, sem saber a razão do distanciamento que o ruivo se colocava diante a pergunta. Ele girou o braço como ela, porém se retraiu com o movimento.

A expressão amargurada, Gerard assentiu.

— Eu consigo.

Astaroth segurou o silêncio.

— Certo, amanhã a gente salva o Lass. Caminho sem volta.

***

Sob o guarda-chuva, Elesis lembrava das palavras de Lire. Na verdade, havia se lembrado à noite toda e não conseguiu dormir desde então, tanto pelas palavras da amiga quanto pelo plano de resgate de Lass. Ao sair da cama, seu corpo estava mais pesado que o habitual.

Ela achou que essa sensação passaria depois que saísse de casa, mas, aparentemente, tinha piorado. As mãos trêmulas se fecharam com força em volta do cabo do guarda-chuva. Era um bom lembrete para voltar à missão.

Elesis olhou sobre o ombro, vendo Gerard, também sob um guarda-chuva, sentado no topo do telhado. Ele era um poço de calma e demonstrava pelos consecutivos bocejos.

— Astaroth tá demorando — comentou o ruivo.

Ela voltou para frente. A cidade estava silenciosa, apesar dos poucos dragões que sobrevoavam. Eles não viam a ela ou Gerard. Tudo graças à ideia de Astaroth de pôr selos nos guarda-chuvas e fazê-los invisíveis; não literalmente, apenas escondia suas presenças e manas. Era uma excelente estratégia para poupar energia e força.

Não é como se Elesis tivesse muito fôlego sobrando.

Ela balançou a cabeça. As palavras de Lire voltavam, portanto, criou um assunto para fugir de sua mente.

— Por que você voltou?

Elesis sentiu o olhar de Gerard cair sobre ela.

— Não foi uma decisão minha, foi do Astaroth. Ele... Ele não parava de falar do Lass, como queria vê-lo. Era bastante arriscado para gente voltar, mas como ele conseguiu usar o torneio como desculpa. — Ele parou de falar, porém Elesis também não falou. Gerard emendou o restante com uma risada fraca. — Não foi uma ideia idiota, vendo agora como tá a cidade. Tiveram sorte de estarmos aqui.

Elesis se virou, mostrando sua face irritada.

— Vocês não deveriam ter voltado. Estão mortos, então continuem assim!

Gerard sorriu; o que parecia mais uma tentativa.

— É bem difícil, Elesis. Ficar morto.

Gerard se escondia na sombra do guarda-chuva. Encolheu as pernas, quase as abraçando.

Parecia uma criança.

— Como... — Elesis trincou o maxilar. — Como consegue dormir a noite? Depois de tudo... como?

Ele não a respondeu.

— Toda a noite, eu sonho com a morte do Arthur — ela estremeceu no nome. Engoliu seco. — Toda a noite, eu volto para aquela floresta e me vejo segurando uma espada contra ele. Todas as noites. Eu fecho os olhos e escuto a voz dele.

Ela estava para desmoronar, mas se segurou no último segundo. Passou a mão furiosamente nos olhos já vermelhos, deixando-os com a cor mais intensa.

— Então me responde, como você consegue dormir depois de ter matado tanta gente inocente? Depois de ter matado meu...

Era impossível. Elesis sentiu que se dissesse o nome em voz alta, cairia. Mas não é como se o silêncio fosse menos doloroso.

Para Gerard, para sua cabeça abaixada, era algo tão pessoal quanto para a espadachim. Ele levantou o rosto, mas continuou a olhar para baixo.

— Se você quer uma resposta de como lidar com seus pecados, apenas posso te dizer algo: eu não sou essa pessoa. É uma coisa que me pergunto todos os dias e ainda não tenho a resposta. Mas o peso diminui com o tempo? — Ele a olhou, sincero. — Nem um pouquinho. Tem dias que será pior que os outros, mas o importante é saber lidar com isso. É saber seguir em frente.

Gerard ficou de pé, movendo o cabo do guarda chuva para o outro ombro.

— E você não procura por redenção? — perguntou Elesis.

— Não é como se você fosse me perdoar por isso, ruivinha — ele riu, então parou abruptamente. — E não é uma coisa que estou buscando. Perdão, sabe? Tudo isso que eu sinto, essa dor e pesadelos, é bom pra mim. Me mantem... humano.

Elesis olhava para um abismo e sentia algo de estranho quanto mais o observava. Ela desviou os olhos, com medo de se perder.

O som estrondoso ao longe trouxe um certo alívio. Gerard se juntou a ela na beira do telhado.

Longe, mas nem tanto, uma explosão de energia se dissipava. Os dragões voaram diretamente para essa direção.

— Astaroth demorou — comentou Gerard. — Vamos, não podemos perder tempo.

Elesis não debateu. O guarda chuva foi jogado para fora do telhado, então ela começou a correr.

***

— Lass?

Doeu para abrir as pálpebras com os olhos secos. A luz do dia foi como um chute na têmpora, forçando-o a virar o rosto para o lado.

— Está inteiro?

Nellus estava de pé perto da sua cabeça. Não tinha mais ninguém no salão além deles. Porém, Lass se deu ao trabalho de olhar em volta para ter certeza disso.

— O que quer?

— Tenho uma proposta para fazer a você.

— Hã?

Nellus se agachou. Tão próximo, tão desconfortável.

— Você não pertence aqui e acho que já tenha percebido isso.

Falar cansava muito, portanto, Lass apenas expressou confusão.

— Você é um híbrido, mas mesmo tendo uma parte humana, os humanos não te consideram como um.

Toda dor se localizava no braço quebrado, no entanto, ouvir uma verdade nunca dita atingiu com força. O peso sobre seu peito esmagava suas costelas. Sufocante, assim Lass sempre se sentiu. Quando tinha algum líder do Conselho presente, essa sensação apenas piorava. Pesava, perfurando os pulmões.

Nellus enxergava isso.

— Eu entendo.

Lass arregalou os olhos.

— Você e eu, somos iguais.

O ar de tristeza no rosto do seu inimigo ganhou sentido. Lass abriu a boca, forçando a voz rouca. Quando saiu o “eu”, o restante foi abafado pelo som do vidro explodindo, seguido pelo forte vento que machucou seus olhos.

Ao enxergar novamente, Nellus não estava mais ao seu lado. Outra pessoa se mantinha de pé diante seus olhos, ofegante enquanto devolvia a espada à bainha.

Lass perdeu o ritmo da respiração quando a reconheceu.

Elesis mudou a feição furiosa para uma imediata preocupação ao se ajoelhar.

— Lass! Tudo bem?! Consegue me entender?!

O ninja estava acabado. Elesis o segurou pelo rosto, dividindo seu calor com ele. Parecia com tanto frio sem roupa, embora sua pele queimasse.

Lentamente, ele sorriu e fechou os olhos.

— Elesis, eu disse — a voz veio de trás —: não saía na frente!

Gerard parou ao lado dela, surpreso ao ver o estado de Lass.

— Ele tá vivo?

— Tá, mas tá queimando de febre. A gente precisa tirar ele daqui, agora!

O castelo era um lugar de energia ameaçadora. Gerard sabia que tinha alguém por perto, por isso encarou o buraco na parede feito por Elesis. Antes de alcança-la, conseguiu ver a espadachim acertar alguém com um chute que o jogou longe.

— Gerard, você pode carrega-lo?

Elesis estava para se afastar de Lass quando desembainhou o sabre e defendeu o ataque de Pino. Ela se moveu com uma feroz velocidade. As lâminas bateram duas vezes antes da espadachim expandir as chamas roxas.

Pino saltou para trás, rindo.

— Sabia que viriam por esse pedaço de bosta.

Coberta pelas chamas, Elesis avançou. Gerard tentou a segurar, mas a espadachim já trocava cortes com o rapaz.

Elesis se movia puramente por raiva. A cada ataque, um rugido era solto. Nenhum corte o atingia, nenhuma faísca das chamas roxas o encostava. Pino brincava e provou ao passar a adaga por sua costela.

Ela berrou e caiu de joelhos. O próximo corte se aproximava, impedido a tempo. O corpo de Pino voou contra a parede, que bateu e caiu como a espadachim.

— Vamos — disse Gerard com Lass sobre o ombro. — Sem luta, esqueceu?

Elesis segurou a costela úmida de sangue.

— É uma surpresa vê-lo.

Elesis e Gerard não sabiam quem era o rapaz saindo do buraco da parede. A espadachim tinha enfiado o pé nele sem se importar de conhece-lo. Pela intensidade de seu olhar sobre eles, tiveram noção de quem poderia ser.

— Você é o responsável por tudo isso? — perguntou Gerard, firme.

Ele sorriu.

— Sim, eu sou, Gerard. É um prazer conhecer você pessoalmente — ele pôs a mão no peito. — Sou Nellus.

Elesis nunca tinha ouvido o nome em toda vida; pelo visto, nem mesmo Gerard.

O ruivo ergueu uma sobrancelha.

— Você é algum fã meu?

— Não fã, mas já ouvi muito sobre você.

— Então deve ter ouvido sobre as pessoas que matei e torturei, certo?

Aquele era o Gerard do passado. Elesis sentiu um desconforto vendo a seriedade do ruivo. Por todos esses anos, nunca presenciou o estado atual ou algo parecido.

Elesis se moveu com o avançar de Pino. Antes que a alcançasse, ele foi puxado violentamente contra o chão. Gerard não movia um músculo, mas a espadachim sabia que aquela era uma magia sua. Um poder que tinha sido usado contra ela, uma vez.

— Se quiser um combate, ficarei muito honrado de lutar com você — falou Nellus. — Se não for um incomodo.

— Não, eu tô bem! Eu vou deixar a luta pra depois.

Gerard saiu na frente.

— Vamos, Elesis.

A espadachim tropeçou ao correr atrás dele. Passou por Pino, ainda lutando para não ser puxado inteiramente ao chão. Era inútil, ela pensou, sem sentir qualquer remorso.

Quando Gerard deixou o salão, a pressão sobre Pino sumiu. Ele desmoronou no chão, ofegante.

— Deixe-os ir, Pino. Anni resolverá.

Por mais que tivessem o caminho livre, Elesis e Gerard não pensaram duas vezes antes de pularem a janela do segundo andar. Elesis teve dificuldade na aterrisagem, quase desabando por tamanha dor sentida na costela. Pelo que parecia, o corte tinha sido fundo o bastante para ter atingido o osso.

Mas ela continuou a correr. Atrás de Gerard, observou seu amado ser carregado por ele. Lass estava tão pálido e um pouco mais magro. A raiva ardente em seu peito foi trocada por preocupação, pela culpa de ter deixado isso acontecer com ele.

Não demorou muito para Elesis sentir a aproximação de outra ameaça. Ao virar, foi recebida por um chute na barriga. Ela caiu para trás, mas se recuperou rapidamente. Tempo certo para revidar da figura encapuzada.

— Cai fora!

O berro de Elesis arranhou sua garganta. Ela jogou uma onda de chamas vermelhas que inundou a rua por completo. Um ataque que quase a esgotou de mana. Imprudente, reconheceu isso com o cansaço, mas era necessário.

Com o abaixar das chamas, reconheceu também seu erro.

A figura encapuzada tinha os dois braços erguidos, os antebraços unidos diante o rosto como um escudo. A pele exposta, uma pele negra, possuía escamas grossas. Escamas que suportavam calor.

— Elesis, deixa comigo — disse Gerard. — Você é mais rápida, leve o Lass.

Elesis não teve tempo de negar, Lass foi solto nos seus braços. Gerard tomou sua frente, desembainhando a espada. Não era sua clássica espada, mas era uma arma com lâmina e isso bastava para ele.

Por Lass, Elesis obedeceu.

A espadachim correu para longe e a figura encapuzada avançou. Gerard parou no seu caminho com um corte rápido. A espada seguiu pela horizontal, em direção à cabeça.

A lâmina passou pelo capuz, então pela cabeça... e continuou a atravessar sem realmente atingir. Os olhos de Gerard arregalaram. Ao terminar de passar pela cabeça, ele fez um movimento bruto para o lado, rápido demais para cortar de vez o capuz.

Ele pisou no chão, um pilar de gelo subiu contra a barriga da figura. Ela caiu para trás, rolou pelo chão e voltou a ficar de pé.

Gerard abaixou a espada.

O capuz rasgado caiu de lado. A jovem por baixo da vestimenta manteve os punhos fechados, determinada mesmo com o rosto exposto.

Gerard quase largou a espada.

Anni. A última vez que a viu, Arthur ainda estava vivo. A última vez que a viu, ela ainda era humana. Para o que olhava agora era o que havia restado de sua humanidade, tomada por um chifre do lado da cabeça e olhos contornados por veias escuras.

— Anni?

Ela manuseou a cabeça em resposta.

Yo, Gerard.

Gerard deixou a espada cair de sua mão. Entre tantas perguntas que se passava em mente, apenas uma se destacava: por quê?

Anni se preparou para atacar, parada logo em seguida pelo selo mágico sob seus pés. As espadas de energia subiram e grande parte atingiu seu corpo. Ela rugiu, afundando pelo chão para fugir.

Gerard ergueu a mão.

— Espera! Anni—

— O que você tá fazendo?

Astaroth desceu do céu. Não uma descida direta, mas uma descida lenta, suave.

— A Elesis tá com o Lass, vamos!

Gerard não se moveu. Estava preso no passado, no momento que viu Anni no topo daquele telhado, pronta para pular. Por interferência sua, por ter impedido a morte da jovem, ali estava ela, meio humana, meio asmodiana.

— Gerard! — Elesis berrou.

Ele estava parado na cozinha da casa. A ruiva subia a escada apressadamente com Lass nos braços. Astaroth a ajudou subir, logo desceu.

— Você tá bem? — a pergunta com tom de irritação saiu com uma genuína preocupação. — Se machucou?

— Não, eu tô bem. Só um pouco...

Ele pôs a mão na boca. O calou subiu por sua garganta. Gerard correu para a pia e vomitou.

— Gerard?

— Eu tô bem — ele riu, vomitando novamente. — Eu só... Vai cuidar do Lass.

Gerard não saiu da pia. Astaroth, por mais preocupado que tivesse, subiu a escada. Elesis tinha levado Lass para o banheiro e depositado seu corpo na banheira. Enfim o via pela primeira vez em anos. Pálido, coberto por cinzas e com um braço quebrado.

Astaroth se apoiou na pia.

— Ele tá queimando de febre — disse Elesis. — Tem alguma coisa pra segurar o braço dele? Eu vou dar um banho nele e tirar tudo isso.

— Tem na cozinha. Elesis, deixa que eu cuido dele.

— Não precisa, eu—

Ela se levantou do chão, quase voltando pela intensa queda de pressão. Astaroth a segurou, notando a camiseta completamente vermelha da espadachim. O corte na costela continuava a escorrer sangue.

— Sério, você precisa cuidar disso. Pede para o Gerard fazer um remendo. — Elesis balançou a cabeça, teimosa. — Eu cuido do Lass. Ele vai ficar bem, ok?

Elesis viu a mesma preocupação sua transbordar de Astaroth. Ele se importava imensamente por Lass para cuidar com todo carinho.

— Tá bom, eu volto...

Elesis deixou o banheiro se arrastando pela parede. A descida da escada foi o maior desafio do dia. Ela apoiava um pé no degrau abaixo e sentia todo seu corpo desmoronar no apoio.

Ela entrou na cozinha aos tropeços. Gerard, que parecia distante, a ajudou chegar até a cadeira e desmoronar.

— O Lass...

— Astaroth vai cuidar dele. Deixa eu ver esse machucado.

A pressão de Elesis continuou a cair até que seus olhos não suportaram e se fecharam. Ela só conseguiu pensar em Lass antes de ser levada para a escuridão.

***

Gerard lavou as mãos três vezes. Ele tentava, mas sempre tinha sangue sob as unhas. Ele lavou por uma quarta vez por garantia.

Mais calmo, menos distraído, Gerard entrou no banheiro. Astaroth terminava o banho de Lass, que continuava apagado e com o torso apoiado na lateral da banheira. O braço quebrado era segurado por uma colher de pau amarrada a ele. Uma improvisação típica de Astaroth.

— Elesis apagou com o remédio que eu dei pra ela e as poções chegaram — disse Gerard.

— Ele finalmente chegou?! — Astaroth ficou de pé, secando as mãos. — Vou preparar uma dose pro Lass.

— Vai lá, eu cuido dele aqui.

Astaroth saiu do banheiro às pressas. Gerard tomou seu lugar ao lado da banheira. Sentou-se no chão e observou o rosto adormecido de Lass. Deveria ser o primeiro momento de calma que ele sentia. Seu corpo tinha sofrido como sua mente, e as marcas nas suas costas estavam ali para provar.

Gerard passou a mão pelas costas do ninja. Talvez ele voltasse à pia para vomitar mais, percebeu ao ver as milhares de cicatrizes. No meio delas, àquelas que o próprio Gerard fez. Não tinham desaparecido, continuariam eternamente marcadas na pele do rapaz.

— Desculpa.

Ele abaixou a cabeça. Seus olhos ardiam.

— Me desculpe.

***

— Zero, a ruiva tá acordando.

O calor queimava a região da costela. Não acordou porque quis, mas porque não conseguia mais ficar inconsciente por tantas sensações. Elesis despertou em completa agonia.

Ao abrir os olhos, encontrou outro par de olhos a observando. Olhos verdes, de um rapaz de aparência verde.

Elesis gritou e se jogou para trás. Caiu do sofá, despertando mais dores.

— Ei, calma — ele disse. — Zero, a ruiva...

Como se não pudesse ficar mais estranho, outra pessoa entrou em seu campo de visão. Alguém que ela reconheceu.

— Que bom que está bem, Elesis — disse Zero.


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Notas finais do capítulo

Review?
* O próximo capítulo promete...



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