Um Lamento Desamparado escrita por JM


Capítulo 1
Fora do Chão


Notas iniciais do capítulo

Capítulo único. Aproveitem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/776265/chapter/1

Eu amo o jeito como o meu cachorro se debruça sobre as minhas pernas quando eu estou sob o edredom. Ele faz isso de força suave, quase como que se ele não quisesse me acordar. Mal sabe ele que estou bem desperto, bem atento. Da minha cama, não consigo enxergar a lua. As copas das altas árvores cobrem qualquer resquício de sua luz. Apesar das cortinas da minha janela estarem abertas, me sinto deitado e encarando um muro de pedra. Algumas folhas chacoalham no lado de fora com o vento que, ao que parece, está mais feroz do mais cedo.

Giro os olhos procurando o relógio na minha cabeceira, mas tudo o que vejo é um copo d’água meio cheio em frente aos número. Já deve ter passado de meia-noite. Já deve ser, provavelmente, uma e pouca da manhã. Eu deveria estar dormindo, mas não consigo desviar o olhar da minha janela. Que, apesar das cortinas estarem abertas, não vejo nada. Já tem algum tempo que sinto meu corpo suar por debaixo das cobertas, mas não quero fazer nenhum movimento. Não quero acordar o El Filete, como eu chamo a coisa que andou me perseguindo durante essa semana. Depois que meu cachorro se deitou em cima das minhas pernas, senti El Filete dando duas cutucadas com seus longos dedos debaixo do meu colchão.

Não o vi claramente, não sei exatamente como ele é. Quando eu corria pelo estacionamento dois dias atrás, o vi me encarando detrás de um carro. Estava distante, mas sei que era ele. Parecia não ter pele, pura carne, ou me enganei e ele possa ser apenas um grande boneco de madeira. Os olhos eram dois orifícios limpos e escuros, como se ele carregasse dois buracos negros no rosto. A boca, não era uma abertura com dentes, eram dois fios de arame cheios de espinhos. Tentei correr o mais rápido possível, mas ele sempre espreitava. Não importava onde eu estivesse ou o que eu fazia, sempre pude ver os pés dele se arrastando por trás de caminhonetes estacionadas, estantes de bibliotecas ou pelas marcas de sujeira que apareceram no meu quintal quatro dias atrás.

Cada dia uma surpresa diferente. Cada dia uma morte inexplicável diferente. Cada dia o vi mais e mais perto. Há dois prédios de distância. Há duas ruas de distância. Há dois carros de distância. Há dois cômodos de distância. E agora ele está há dois palmos de mim. Eu o ouço respirar, eu o ouço moendo sob a minha cama. O chão de madeira é frio durante a noite, o que será que o aquele ali em baixo?

Admito que deixei uma lágrima cair. Mas isso foi no início da noite, logo após Kenito ter adormecido em cima de mim. Contei sobre isso para minha melhor amiga. Ela disse que eu estava enlouquecendo e logo mudou de assunto. Talvez realmente não acreditasse, mas senti algo emanando dela nesse dia. Uma preocupação talvez, um instinto de fuga a acertou quando mencionei meu novo perseguidor. Ela deu um gole no seu milk-shake e eu engasguei com o meu medo.

Digo, querido, não foi exatamente assim. Ou realmente foi? Quero ser real e forte. Quero entender o que se passa aqui dentro. Não dentro de mim. Dentro da minha casa. Duas escoteiras bateram na minha porta e eu não respondi. Não quis que elas vissem a minha cara, não quis que elas soubessem quem morasse ali. Sou novo nesse bairro, me mudei há algumas semanas. Saí da casa dos meus pais para ter sossego e agora El Filete não me deixa em paz.

Eu perguntaria o que ele quer, mas, para ser sincero, me apavoro quando penso nas mil possibilidades que ele poderia responder. Verdade seja dita, ele não está aqui para me fazer cafuné ou para me trazer pão de ló. Minha vizinha disse que alguém deixou na minha porta um presente. Ela deve ter ficado horas vigiando a vizinhando para saber disso. Claro, ela nunca sai da varanda. Peguei a caixinha na frente da minha porta e levei para dentro. Kenito se assustou quando eu gritei. Joguei a caixa sobre a mesa, espalhando os dentes por toda a madeira. E eu vi. Eles foram arrancados pela raiz. Tinha sangue.

Foi quando senti uma mão cobrindo a minha boca e outra segurando a minha nuca. Eu caí no chão e alguma coisa me arrastou para dentro do armário debaixo da pia. Eu não lembro como isso aconteceu, mas quando eu acordei estava sentindo muita dor. Era pequeno e escuro ali em baixo. As minhas pernas estava contorcidas para eu conseguir caber e meu pescoço estava dolorido. Abri a porta com um murro e escorreguei para fora devagar. Fiquei no chão, olhando o teto, por alguns segundo antes de revistar a casa. Não tinha nada. Kenito estava dormindo na caminha dele e nada estava fora do lugar. Os dentes e a caixinha sumiram e a minha testa tinha um galo gigante.

Eu fiquei completamente perdido dentro da minha casa e desabei na banheira. Liguei a água e tentei limpar todos os pensamentos doentios que me vinham à mente. E relaxei. Relaxei tanto que me senti flutuar numa nuvem de algodão. Minha cabeça não doía e eu não sentia mais medo, foi abraçado por algo celestial que me tirou completamente da Terra. Foi uma sensação boa, boa até duas mãos me agarrarem abruptamente pelos ombros e me puxarem com força para cima.

Minha mãe foi me visitar naquela tarde. Ela disse que eu não atendi a porta e me encontrou na banheira assim. Fundo. Mas eu não morri. Eu estava lá, curtindo alguma coisa. Mas mães costumam exagerar. Ela insistiu que eu estava debaixo da água. Imersivamente profundo. Eu estava?

Ela envolveu uma toalha ao meu redor e falou um monte de coisas. Eu não ouvi. Tinha uma sombra atrás do vidro da porta da sala. Era distorcido e curvado. Eu não saberia dizer o que era. Eu a segui até a cozinha, tentando ignorar o demônio que vivia na minha casa. Não quero dizer literalmente na minha casa, mas sim comigo. Eu estou ouvindo ele. Ele está rasgando a parte de baixo do meu colchão com as pontas de seus dedos. Está chegando até mim.

Eu quero me mover. Quero pegar Kenito nos braços e correr para a porta. Ela está fechada. Todas as saídas estão fechadas. As cortinas, apesar de abertas, apenas emolduram uma janela também fechada. Com vista para uma copa de árvore imensa e sem brilho. É o que eu vejo daqui. Não vejo muito, eu vejo o bastante. Mas realmente seria o bastante? Eu poderia querer ver mais? Eu poderia podar essa copa. Eu poderia mudar de quarto. Eu poderia ter o controle da minha casa. El Filete parece ter tirado o volante de mim, assumido o controle.

Ele está em baixo. Está em cima. Está no outro cômodo. Está dentro de mim. Eu não nasci com ele, mas não o criei. Eu sei disso. Ele existe. O que é ele? O que ele quer de mim? Ele quer me dar ou me tirar? Ou ele só quer me observar? Eu não sou idiota, eu sei que depois que ele apareceu tudo desandou. E ele assiste a minha vida desmoronar. Eu me vejo cair aos pedaços. Estou no chão ou numa nuvem de algodão? Talvez eu esteja na calçada, no meio fio, cambaleando pra lá e pra cá, tentando a sorte.

El Filete não tirou nada de mim, ele me mostrou. Mostrou o medo que eu tinha antes. Me disse que as angústias que pesam nos meus ombros são antigas. Ele me abraçou por trás e sussurrou a verdade, que eu estou num canto escuro, apertado e sem saída. É como se eu estivesse plantando bananeira por muito tempo sem saber. É como se eu tivesse acordado, mas não despertado. Eu quero chorar, mas não sinto vontade. Eu sinto um monte de coisas e não sinto nada.

Eu quero me mover, mas não consigo. O som de algo se arrastando pela escuridão me apavora. El Filete está de pé ao lado da cama. Ele me observa quieto. Não faz um som. Apenas se aproxima lentamente e se deita ao meu lado. Depois de tanto temor, eu finalmente o vejo. Está ali, ao meu lado, me enchendo de vazio. É como olhar num espelho.

Eu giro a minha cabeça em direção à cabeceira do outro lado e tento ver as horas, mas só vejo um copo d’água meio cheio. Ao lado dele, uma caixa de remédios vazia e sua cartela vazia. Eu quero fechar os olhos, mas tenho medo do que possa vir depois. El Filete ergue as suas mãos sobre meu rosto e delicadamente fecha as minhas pálpebras. Eu me sinto novamente flutuando.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Comentem o que acharam. Obrigado por terem lido.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Um Lamento Desamparado" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.