O visitante escrita por Daniela Lopes


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Sherlock não é uma pessoa comum com sentimentos comuns em relação às pessoas que o cercam. Para a mente mais inteligente de todo o Reino Unido, lidar com isso é o maior desafio de todos.



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Os corredores do Hospital Saint Bart’s estavam apinhados de pessoas. De todas as idades e nacionalidades, participavam de um congresso de medicina e o evento se estenderia até tarde da noite, com um coquetel oferecido pela diretoria. Médicos, professores, estudantes de várias áreas da medicina seguiam para as palestras que aconteciam durante todo o dia, criando um clima alegre e agitado, diferente da rotina silenciosa do antigo hospital.

Molly Hooper estava em mais um plantão, quando alguém no corredor gritou seu nome:

—Molly?

Ela virou-se e um homem veio rápido em sua direção rapidamente. Ele tinha um largo sorriso e ela sorriu ao reconhecer um antigo colega de classe:

­_Richard Horner? Oh!

            Ele avançou para a patologista e abraçou-a com entusiasmo:

—Quanto tempo, Moll!

—Sim! Muito tempo!

            Ele ergueu-a do chão, enlaçando-a pela cintura, fazendo a moça gritar, surpresa:

—Oh, Rich! Não!

—Calma, doçura! Estou muito feliz de vê-la aqui! Uau! Está muito sexy com esse jaleco!

            Molly ri:

—Também estou feliz em vê-lo, Rich! Agora me coloque no chão, está bem?

—Só se jantar comigo hoje à noite!

—Oh, céus! Mas acabamos de nos encontrar!

—Quer motivo melhor? Pelos velhos tempos!

—Hum... Eu não sei! Tenho muito trabalho amanhã e...

            Nisso, uma figura surge no corredor e observa a cena toda. Richard coloca Molly no chão e fala:

—Qual sua resposta?

            Molly olhou para o corredor. Sherlock Holmes estava parado, olhando os dois, em silêncio e sem expressão em seu pálido rosto. Ela murmurou:

—Sherlock...

            Richard olhou na mesma direção e encarou o detetive, ao mesmo tempo em que se voltava para a médica:

—Conhece ele?

            Molly ajeita o jaleco e fala:

—Boa noite, Sherlock... O que faz aqui a essa hora?

—Um caso.

—Oh, bem... Do que precisa?

            Sherlock caminha rumo ao necrotério, tendo Molly e Richard seguindo atrás dele. Sherlock fala:

—Preciso de um cadáver masculino, por volta dos 45 anos, pele negra...

—Ah! Sherlock? Esse é Richard Horner... Um amigo da faculdade e…

—Gostaria de resolver logo esse caso, se você não estiver muito ocupada...

            Dizendo isso, Sherlock acelera o passo e some na curva do próximo corredor. Richard parou de andar e perguntou:

—Ciumento?

            Molly falou:

—Sherlock Holmes? Oh, não! É o mesmo que imaginar o sol não nascer.

Richard riu:

—Não creio nisso! Me pareceu outra coisa! Os olhos do seu amigo me atravessaram como espadas!

            Molly começou a rir:

— Exagero! Preciso trabalhar agora. Daqui a pouco vão chegar outros corpos e eu vou ter que fazer tudo sozinha!

Richard se aproxima dela:

—Ainda não me deu nenhuma resposta... Jantamos hoje? Amanhã? Não aceito uma negativa...

—Teimoso...

—Isso é um sim?

—Amanhã.

            De repente, Richard segura o rosto de Molly e a puxa para si, depositando nos lábios dela um beijo rápido e quente. Ele se afasta e caminha para fora dali, rumo ao auditório:

—Te busco amanhã, doçura!

            Emudecida pelo ato repentino, Molly sente o rosto corar e segue rapidamente para o necrotério. Lá, Sherlock esperava por ela, sentado num dos bancos, em silêncio. Quando ela chegou, ele ergueu um olhar de aborrecimento e esperou, enquanto ela procurava nos prontuários, algum cadáver que se encaixasse nas especificações do detetive.

            Ela abriu a câmara frigorífica e apresentou o cadáver. Ele examinou e falou:

—É o mais recente?

—Sim. Três dias atrás. Traumas múltiplos e perda de fluídos vitais. 52 anos.

            Sherlock coloca luvas e começa a examinar o homem morto. Molly permanece ali, pensando no que falar sobre a cena com Richard e decide abordar o tema:

—Ah... Sherlock? O Richard... Meu amigo... Acha que você ficou com ciúmes dele.

            Sem olhar para a médica, Sherlock fala:

—Hum? Ciúmes? Ele é americano, não? Pelo que pude deduzir, ele é um falastrão... Parece um profissional competente, mas nada excepcional.

            Molly recua:

—O que...

            Sherlock continua o exame, enquanto fala:

—Galanteador... Faz sucesso com a maioria das mulheres, apesar de não se ligar a nenhuma delas e está aqui à procura de trabalho.

            Sherlock ergue o rosto para Molly:

—Veio à sua procura, pois sabe que pode interceder por ele junto à diretoria do Bart’s... Muito conveniente!

            Molly sente a provocação e fala, na defensiva:

—Vamos jantar amanhã. Um encontro normal entre duas pessoas. Isso acontece, sabia?

—Aham...

            Ela vira o rosto:

—Ele... Me beijou!

            Ela se afasta para a porta:

—E isso também acontece entre duas pessoas... Mas acho que não é do seu interesse.

—Molly... Não vá a esse jantar.

            Ela se vira, estupefata:

—O quê?

—Não vá. É um engodo!

            Ela suspira indignada e abandona o necrotério, seguindo para o refeitório do hospital para tomar um café. Sherlock termina seu exame no cadáver e segue para onde Molly foi. Ela está sozinha, debruçada sobre a mesa, tendo uma caneca de café ainda fumegante frente a ela.

            Sherlock aproximou-se e quando tencionava acordá-la, vê o rosto dela se contorcer e uma lágrima escorrer pela face inclinada. Ela funga e o detetive se afasta, mantendo-se de pé ao lado da mesa. Molly move a cabeça e pestaneja devagar, ergue a cabeça e toca o rosto, aparentemente confusa por sentir que estava molhado.

            Ela endireita a postura e ajeita o jaleco, mas não percebe Sherlock parado ali, silencioso. Quando se vira, dá de cara com o detetive e exclama, assustada, deixando a caneca de café cair da mão, espatifando-se no chão e dezenas de cacos. Ele se afasta, evitando os estilhaços da caneca, enquanto a legista se agacha, apanhando os pedaços de louça e secando o resto de café no piso, visivelmente perturbada.

            Sherlock comenta com voz calma:

—Deixe. O pessoal da limpeza cuidará disso.

            Sem parar de limpar, Molly responde:

—Eles não têm obrigação de arrumar a bagunça que eu fiz... Já tem trabalho o suficiente.

—Hum... Terminei de examinar o cadáver. Obrigado por me atender.

—Certo.

            Sherlock percebe que Molly não iria estender mais nenhuma conversa com ele, mas a visão dela chorando enquanto cochilava incomodou-o de uma estranha forma. Naturalmente, Molly era a pessoa mais sorridente que ele havia conhecido. Para alguém que lidava com cadáveres dos mais variados tipos, Molly era uma mulher de personalidade jovial e positiva.

            As lágrimas que Sherlock viu mostraram que havia algo dentro dela destoante de todo o resto. Um mistério que mexeu com seu cérebro investigativo. Um mistério a ser solucionado.

            Molly terminou de limpar a sujeira e voltou para o necrotério. Encontrou o corpo solicitado por Sherlock e suspirou. Aquilo seria o máximo de proximidade que teria com o detetive. Guardou o corpo no saco mortuário e levou-o de volta à gaveta da câmara de resfriamento. Voltou para limpar a bancada e guardar os instrumentos de autópsia. Quando deixou o hospital, devia passar das duas horas da madrugada e Londres era brindada com mais uma noite chuvosa e fria.

            Ela quis voltar e buscar um guarda-chuva, mas decidiu caminhar um pouco sob a chuva até o ponto de táxi mais próximo. A cabeça estava cheia de pensamentos. Richard e seu sorriso quente, Sherlock e seu olhar glacial alternavam em sua mente e Molly xingou baixo:

—Merda, Molly! Ainda tem dúvida sobre o que deve fazer?

            Nisso, ergueu o olhar para uma sombra parada do outro lado da rua por onde seguia. Era um homem alto e Molly não pode ver seu rosto, devido à escuridão do prédio próximo. Sentiu seu coração acelerar e a garganta queimar. Vários corpos de mulheres vítimas de ataques davam entrada no Bart’s e a médica se penalizava da sorte delas.

            De repente, percebeu que sair sozinha em altas horas não era algo muito sábio.

            Apressou o passo e não voltou a olhar na direção do sujeito. Vasculhou a bolsa e apanhou o celular. Ligou para o primeiro número que veio à mente e o visor acusou o nome:_ Sherlock Holmes.

            Enquanto aguardava a ligação se completar, ouviu ao longe um telefone chamando exatamente ao mesmo tempo em que o seu. Ela olhou em várias direções, confusa, e voltou-se para o estranho parado nas sombras, agora movendo o braço e retirando algo do casaco.

            Em choque, ela estacou ao ver o sujeito levar o objeto próximo ao rosto, o brilho azul do visor de um celular iluminando pequenas porções da face e uma voz grave responder:

—Sherlock...

            Molly deixou o braço pender ao lado do corpo, o celular ainda ligado, mas os olhos dela grudados no vulto do outro lado da rua. Não se moveu quando o homem deixou as sombras e seguiu na direção dela. A luz do poste revelando a pele branca e os olhos frios do detetive consultor contra a escuridão da noite.

            Molly encarou-o e desligou o celular. Ele repetiu o movimento e alcançou o passeio onde ela estava. Sem conseguir falar, ela limitou-se a andar para longe dele, aparentemente sem rumo, o mais rápido que podia. Sherlock falou:

—Molly...

            Ela não se virou e ele completou:

—Porque chorou na cantina?

            Ela parou de andar e virou-se:

—Como? Eu fiz o quê?

            Ele caminhou até ela:

—Você caiu no sono... Mas chorou enquanto cochilava.

            Molly recordou-se do rosto molhado e vasculhou a memória tentando lembrar o que havia sonhado. Nisso, encarou Sherlock e viu um real interesse estampado no rosto dele, que esperava, paciente, por uma resposta.

            Ela riu, incrédula:

—Oh, Meu Deus! Quer saber por que eu chorei? Fala sério?

—Pareço brincar?

            Ela parou de sorrir:

—Não... Certamente não parece.

—Então?

            Um táxi cruzou a rua e Molly ergueu o braço:

—Táxi!

            O veículo parou ao lado da calçada e a moça encarou Sherlock:

—Estou cansada, com sono e faço parte do reino dos mortais, Sherlock... Boa noite!

            Sem se dar por vencido, o detetive entrou no táxi logo atrás dela. Molly cobriu o rosto e o taxista riu:

—Pra onde, senhorita?

            Sherlock informou o endereço de Molly e o veículo seguiu. Percebendo que ele não daria trégua, Molly coçou a cabeça e falou:

—Oh, bem...

            Ele esperou e ela olhou a cidade iluminada ao longe, molhada pela chuva fina e constante. Ela sentiu que estava em um sonho estranho:

—Eu... Sonhava com meu pai, eu acho... É isso.

            Um suspiro de desapontamento foi ouvido e Molly virou-se para Sherlock:

—O que queria ouvir? Que eu estava sonhando ou fantasiando alguma coisa com você?

—Por que eu ia querer isso?

            A moça sorriu:

—Tem razão! Porque ia querer isso, não é?

            O sorriso esmoreceu e ambos se calaram, enquanto o táxi seguia noite adentro até parar frente ao endereço da médica. Sherlock virou-se e percebeu que ela estava com a cabeça recostada no vidro da janela, visivelmente adormecida. O taxista deu de ombros, mas Sherlock pagou a corrida e pediu uns minutos.  Puxou Molly para junto dele e depois foi saindo devagar do veículo, com a médica apoiada em seu ombro.

Molly resmungou baixo e assim que saíram do táxi, este seguiu, desaparecendo na esquina. A chuva deu trégua, mas estava frio e Sherlock chamou pela moça:

—Molly... Chegamos.

—Hum? O que...

            Ao perceber-se apoiada contra o corpo de Sherlock, Molly inclinou-se para o lado, tentando se afastar, mas o movimento brusco, aliado ao sono em que ela estava imersa, fizeram-na perder o equilíbrio. Um segundo depois, Molly sentiu-se firmemente segura, encarando Sherlock.

            Ele mirou-a e disse:

—Devia ser mais cuidadosa...

—Pode me soltar, detetive... Não vou cair.

            Mas ele não o fez:

—Você... Vai jantar com o americano?

—Sim. Já me decidi.

—Sabe que ele está fazendo média com você para que o introduza no Bart’s...

            Molly sorri e Sherlock percebe que não é de contentamento. A voz dela era suave, mas nada amigável:

­_Acho que atraio esse tipo de homem em minha vida...

            Sherlock soltou-a devagar. Ela ajeitou o casaco e o cabelo úmido de chuva e seguiu para a entrada do prédio. O detetive sacou o celular e digitou alguma coisa, depois o guardou no bolso do casaco e seguiu para junto da médica. Ela abriu a porta de entrada do pequeno edifício e disse:

—Devia ter pedido ao taxista que esperasse por você...

—De fato.

            A jovem suspirou:

—Meu sofá não é muito grande, mas é confortável, Sherlock. Entre logo antes que eu me arrependa!

            Ele sorriu um pouco, como sempre fazia quando ia ao necrotério e ela sabia que era desprovido de graça real, mas não importava. Queria cair na cama e esquecer o dia.

Sherlock avaliou o pequeno apartamento da médica. Molly apontou o sofá e ele sentou-se. Ela foi à cozinha e colocou água para aquecer no micro-ondas, colocou numa xícara  e adicionou um sachê de chá preto, estendeu ao detetive:

­_Açúcar?

            Ele apanhou a xícara das mãos de Molly:

—Está bom assim... Você... Me ofereceu chá? Não me lembro de aceitar.

            Ela balançou a cabeça e suspirou:

­_Fique à vontade... Sei que não costuma dormir, mas eu preciso muito disso! Boa noite...

            Saiu da sala e seguiu para o quarto, fechando a porta atrás de si. Passado algum tempo, saiu do aposento trajando uma camisola de algodão, sem estampa e com renda na gola. Sherlock percebeu que ela tinha os pés metidos em pantufas cor-de-rosa e os cabelos estavam soltos, caindo pelos ombros e omoplata.

            Molly ignorou-o e pela primeira vez sentiu-se à vontade na presença de Sherlock Holmes. Em seu território, ela não precisava agradá-lo mais do que faria a qualquer outro. E Sherlock não era uma visita, mas um intruso noturno que queria desvendar as lágrimas de uma mulher solteira, solitária e sem namorado.

            Sherlock escutou o som da pia e do escovar de dentes da médica patologista. Bebericou o chá e esperou-a sair do banheiro. Ela seguiu para o quarto sem olhar para ele e fechou a porta, deitando-se em seguida. Puxou o edredom até o ombro e respirou fundo.

            De repente, abriu os olhos e sentou-se na cama. Havia se esquecido de fornecer cobertor para o detetive sentado no sofá da sala. Levantou-se, cansada, sentido o corpo e a mente cada vez mais pesados. Apanhou uma colcha e saiu de volta ao pequeno corredor.

            O detetive olhou-a em silêncio e viu a colcha em suas mãos. Ela caminhou lentamente até o sofá:

—Coberta.

—Não era preciso.

—Certo, certo...

            Quando se virou para voltar ao quarto, Molly cambaleou e apoiou as mãos na mesinha de centro:

—Oh, céus...

            Sherlock ergueu-se, segurando a jovem pelos ombros:

—Molly? O que...

            Ela sorriu:

—Eu... Estou zonza de sono... Preciso voltar pra minha cama...

            Sherlock virou a moça e sorriu:

—Vocês, mortais...

            Ela riu, mas sua mente nublada pelo torpor do sono fazia a jovem cada vez mais distante. Ele apoiou o braço dela no pescoço e ergueu-a nos braços. Molly afundou o rosto em seu peito e não viu quando ele seguiu até o quarto e a depositou com cuidado na cama pequena, mas aconchegante. O quarto tinha um leve perfume de lavanda e os móveis eram de cor clara, combinando entre si.

            Sherlock se deteve ali, observando-a se acomodar na cama e respirar profundamente. Quando já saía pela porta, ouviu-a resmungar alguma coisa e em seguida ela murmurou:

—Sherlock...

            Os olhos do detetive se abriram num lampejo de iluminação. Ela havia mentido no táxi. As lágrimas que vira na cantina eram por causa dele.

            Voltou à sala e sentou-se no sofá. Ouviu um ronronar e o gato de Molly apareceu na sala, aproximando-se de Sherlock com curiosidade. Recebeu um afago na cabecinha lisa e subiu no sofá, aninhando-se ao detetive, que se arrependeu de ter vindo atrás da patologista, curioso do comportamento dela.  Não havia mais mistérios.

            Sherlock levantou-se e caminhou até a porta da sala. Podia ir embora, já tinha feito sua parte naquele jogo, mas voltou seu olhar para trás, para o pequeno corredor que terminava no quarto da legista.

Recordou-se da cena em que Richard a erguia nos braços e ela riu com o susto. Do braço do médico ao redor do ombro dela e da conversa entre eles.       Ele representava uma ameaça à estável relação que Holmes mantinha com Molly Hooper. Sherlock precisava dela e ela atendia-o. Dividir sua atenção seria uma tragédia para a solução de suas investigações. Decidiu voltar ao sofá e ficar ali até o amanhecer ou até que Molly despertasse. Faria com que ela desistisse do jantar com Richard.

Molly abriu os olhos e espreguiçou-se. Fazia um pouco de frio, mas o sol brilhava através da cortina. Sentiu a presença de Toby ao lado dela e sorriu:

­_Olá, meu amorzinho! Não vi você chegar!

            Toby ronronou e esfregou a cabecinha no queixo dela, carinhoso. Molly beijou-o entre as orelhas:

—Também te amo! Vamos tomar café?

            Súbito, lembrou-se que Sherlock tinha vindo com ela e passado a noite na sala. Ergueu-se de uma vez e foi conferir se o detetive não havia escapulido tão logo ela caiu no sono. Para sua surpresa, encontrou-o embrulhado na colcha, com o rosto voltado para o encosto do sofá, encolhido como uma criança. Dormia profundamente, calçado apenas com suas meias e isso fez Molly sorrir:

—É humano, afinal de contas...

            Foi até a cozinha e colocou ração para Toby. Retirou da geladeira pão, ovos, geleia e colocou água para ferver, improvisando m café da manhã o melhor que pode. Sherlock despertou com o cheiro de café fresco e virou-se no sofá. Molly estava de pé junto ao fogão, de camisola e penhoar aberto. Parecia distraída preparando torradas e não o viu se levantar em direção ao banheiro. 

            A médica olhou para o sofá e não viu Sherlock, então o som da pia do banheiro indicou que seu convidado estava desperto. Preparou uma bandeja com manteiga, geleia, torradas e café e colocou-a na mesa da pequena sala. Esperava por Sherlock para comerem juntos.

            Ele apareceu no corredor de rosto lavado e cabelos levemente úmidos, mas ainda com cara de sono. A legista ergueu uma caneca para o detetive:

—Podia ter dormido um pouco mais...

            Sherlock sorveu um gole dom café quente e fechou os olhos. Precisava de um dos seus adesivos de nicotina, mas o café o ajudaria a despertar. Molly sentou-se no sofá e convidou-o a sentar-se perto dela. A mesma máscara inexpressiva que ele usava todos os dias ocupou lugar no rosto do detetive, mas ela preferiu ignorar isso.

            Molly passou geleia em duas torradas e manteiga em outras duas. Comeu uma de cada, devagar, sem se preocupar se ele aceitaria as torradas ou não. Ele apanhou a que tinha geleia e cheirou, desconfiado. Provou e a legista percebeu uma sobrancelha dele se erguer:

­_Blueberry?

—Sim! Minha geleia favorita!

            Ele devorou a torrada, aparentemente satisfeito. Blueberry era sua geleia favorita também e se serviu de mais uma. Por fim, tomou outra caneca de café e Molly sorriu:

—Bem. Vou chamar um táxi pra você. Já o segurei aqui tempo demais e...

            Sherlock voltou seu rosto para ela:

—Foi gentil ter me abrigado por esta noite e por esse café da manhã...

—É bem vindo, detetive.

            Se levantaram ao mesmo tempo. Molly apanhou a bandeja e levou-a até a cozinha. Pegou o celular e solicitou um táxi para o detetive. Sherlock ouviu a moça agradecer e digitou para John Watson em seu celular:_ “Estou no apartamento de Molly. Breve nos encontramos no 221B.” _ e voltou sua atenção para a legista, que vinha em sua direção:

­­_Feito! O táxi chega em 15 minutos!

—Satisfatório...

            Ela esperou. Aquela pausa na fala de Sherlock Holmes indicava que ele queria dizer mais alguma coisa. Não era típico dele, mas foi o que ela entendeu.

            Sherlock olhou para a porta:

—Sobre o jantar de hoje à noite... Com Richard Horner...

—Não, Sherlock! Chega! Não discutirei isso com você! Eu não posso...

—Jante comigo.

            Molly recuou. Não soube avalia o que sentiu naquele momento. Os olhos de Sherlock estavam fixos nela, quase suplicantes e ela estacou, mão espalmada sobre o peito:

­_O que... O que acabou de dizer?

—Foi o que ouviu...

            Ela sentou-se no sofá, visivelmente abalada:

—Que brincadeira doentia é essa?

            Sherlock sentou-se ao lado dela e tomou as mãos da legista entre as suas:

—Pense! Horner surge do nada, te convida para sair e diz que está tentando uma vaga em algum hospital de Londres! O que acha que ele quer?

            Molly não consegue crer no que ouve. Ela ri, sente que pode ficar histérica a qualquer momento e puxa suas mãos das dele:

—Sherlock... Eu quero que saia da minha casa... Prefiro que espere pelo táxi lá fora.

            O detetive se levanta. Os olhos de Molly o acompanham até a porta e ele não se volta, saindo em seguida, deixando a moça sozinha. Ela se deita no sofá, cobrindo os olhos com o antebraço. A respiração vai ficando mais lenta e ela consegue se acalmar. Queria que a noite chegasse logo.

            Mike Stamford estava sentado no laboratório de informática do hospital Saint Bart’s. Já passara da hora do almoço e ele corrigia algumas provas, quando ouviu passos atrás de si. Virou-se e viu Sherlock Holmes entrar. Saudou-o com um aceno de cabeça e voltou sua atenção para as provas.

            Sherlock ocupou um dos computadores da mesa ao lado de Mike e falou:

—O que pode me dizer de Richard Horner?

            Mike riu no canto da boca. A curiosidade de Sherlock sobre o médico recém-chegado era interessante:

—Hum... Pai americano e mãe inglesa. Nasceu em Nova Jersey, mas veio morar ainda criança com os avós em Northhampton. Formou-se na Universidade de Cambridge e fez estágio no Northhampton General Hospital. Voltou para os Estados Unidos pouco tempo depois... Bom aluno, mas nada além da média, ouvi dizer que está solteiro e é independente dos pais... Está procurando trabalho como legista em Londres. Com a indicação certa, acho que conseguirá alguma coisa!

            A frase “com a indicação certa” entrou na cabeça de Sherlock como uma corrente elétrica. Ele sabia exatamente onde Richard Horner buscaria apoio.

            Eram quatro horas da tarde e Richard saía do hotel Chawol, na Clerkenwell Road, a alguns quarteirões do Hospital Saint Bart’s. O médico procurava uma loja de flores que vira ao chegar de táxi e queria escolher algumas para agradar Molly Hooper. Enquanto escolhia as flores, não percebeu alguém se aproximar à sua esquerda e só se deu conta da presença quando ouviu seu nome:

—Richard Horner?

            O médico saltou, tomado pelo susto e virou-se rápido:

—Jesus Cristo!

            Sherlock riu no canto da boca. Richard passou a mão pelos cabelos castanhos:

—Ah! Detetive Holmes! Costuma abordar as pessoas dessa maneira?

—Sempre que o momento pedir... Tem um minuto?

—Só vou fechar meu pedido... Moça? Por favor...

            A vendedora recebeu o cartão de crédito do médico e confirmou a compra do buquê de rosas vermelhas e miosótis brancos. Sherlock observou a ação:

—Rosas vermelhas? Isso não soa muito íntimo para o primeiro encontro de duas pessoas que não se veem há anos?

            Richard sorriu:

—Isso vai impressioná-la, não? Vou mandar entregar na casa dela! Sei que ela está de folga hoje!

            Sherlock deu de ombros. Não gostou do olhar que Horner lançou a ele após o comentário. Saíram dali pouco depois e Richard falou:

—Aonde vamos?

—Café.

—Ok! Vá à frente!

            Entraram numa cafeteria no quarteirão seguinte. Era pequena, mas charmosa e ficava longe do burburinho da avenida principal. Pediram café e Richard se recostou na cadeira acolchoada:

—Certo, detetive. Não estamos aqui para um bate papo.

            Sherlock olhou a rua através da vidraça:

—Senhor Horner... Percebi que sua aproximação de Molly Hooper é meramente profissional, estou enganado?

            Richard pestanejou:

—Hein?

—Porque esse jantar?

            Horner quis rir, mas o rosto sério de Sherlock o impediu de tal ação:

—Oh, bem... Não vejo Moll há muito tempo e ela é o canal para o Bart’s. Porque não aliar negócios ao prazer? Ouça, detetive... Não acho que devo lhe dar satisfações de minha relação com Molly Hooper!

—Certamente não, Senhor Horner! Molly Hooper teve uma experiência negativa há algum tempo e...

—Jim Moriarty? Sim, eu sei... Todos no Bart’s comentam do ex-namorado psicopata dela...

            Sherlock fica surpreso. Não era interessado em fofocas, mas o comentário dava uma nota diferente à situação. Naquele segundo, Richard viu sua chance:

—A garota precisa se distrair! Eu procurei saber a seu respeito, Sherlock Holmes... Detetive consultor, mente brilhante, métodos pouco ortodoxos. Alguns o acham genial, outros te acham maluco, arrogante, sociopata... Só não sei ainda o que Molly Hooper pensa de você...

            Sherlock encarou o homem. Havia nele uma malícia nas palavras, um olhar inquisidor que o detetive não gostou. Súbito, imaginou aquele homem assediando a médica legista e isso o enfureceu.

            Richard recebeu sua xícara de café e sorriu para a garçonete. Sherlock não tocou na sua. Horner falou:

—Terminamos por aqui, detetive?

—Sim...

—Ótimo! Preciso me preparar para mais tarde!

            Sherlock ergue-se da mesa, deixando dinheiro para os cafés, mas o médico disse:

—Por minha conta, Senhor Holmes! Talvez eu acredite que veio aqui genuinamente preocupado com Molly... Ou está apenas agindo como alguém que cuida de seus próprios interesses? Nesse campo, eu acho que não sou pior do que você quer me ver. Talvez sejamos muito mais parecidos, que tal isso?

            Sherlock ganhou a rua e chamou um táxi que passava. Arrependeu-se de procurar Richard Horner, pois o americano demonstrou ser bastante observador e astuto. Quando chegou em casa, Holmes encontrou John sentado diante do notebook, distraído em sua digitação.

            Sherlock deitou-se no sofá e pigarreou. Watson sorriu:

—Já percebi que chegou, meu amigo!

—Tive um curioso encontro com Richard Horner...

—Curioso? Pelo seu grau de irritação, eu mudaria o adjetivo...

—Ele se comparou a mim...

            Watson parou de sorrir. Queria entender a expressão no rosto de Sherlock antes de decidir ficar preocupado ou cair numa sonora gargalhada:

—Explique o contexto!

—O contexto é Molly Hooper...

—Oh!

            Watson fechou o notebook e virou-se para o amigo:

—Certo. Como assim comparou? E o que Molly tem a ver com isso?

—Disse que quero impedir o encontro dessa noite por interesses próprios...

—E não é verdade?

            Sherlock sentou-se abruptamente no sofá:

—JOHN!

            Watson sorriu, amigável:

—Desde que o conheci, testemunhei sua interação com Molly Hooper muitas vezes no necrotério do Bart’s. O que quer que eu diga?

            Sherlock, carrancudo, encarou o amigo:

—Me diga como faço para impedir esse jantar?

—Ora, Sherlock! Que tem demais Molly jantar com o sujeito?

—Ele é um... Abutre! Um predador cercando sua presa sem que ela perceba!

            John Watson riu. Estava surpreso com a súbita preocupação de Holmes com a legista, ainda mais que o próprio detetive agia assim em inúmeras ocasiões. Talvez de forma inconsciente por se tratar de Sherlock, mas agia.   

            Sherlock encarou aquilo como perda de tempo:

—Não posso contar com sua mente...

—Oh, Holmes! Vê-lo dizer essas coisas é no mínimo surreal! Acha que vai perder Molly? Que não terá acesso ao necrotério do Bart’s?

            Sherlock completa:

—Se ele resolver voltar para a América...

—Vai levar Molly junto? Minha nossa! Eles já se conhecem! É natural que tenham um encontro após anos e... Ele não propôs nada pra ela, certo?

            O detetive pestanejou. Talvez estivesse sendo dramático ou exagerando em sua preocupação. Watson deu-lhe um tapa nas costas:

—Deixe as coisas acontecerem como devem, Holmes! Molly Hooper não é uma molécula instável das suas experiências! É uma mulher e uma médica competente e comprometida com seu trabalho, tal como você é com suas investigações.

            Sherlock bufou:

—Sim, “papai”!

            John ri:

—Sou mais velho que você, portanto tenho mais autoridade nesse campo! Vou sair com Sarah! Não me espere!

—Não vou.

            John tomou banho, arrumou-se e deixou a Baker Street por volta das 17 horas. Sherlock estava sentado no sofá, digitando em seu celular furiosamente. Teve uma ideia absurda, mas brilhante e começou a colocá-la em prática. Precisava ser rápido.           Por volta das 18 horas, tomou um táxi para o centro. O tempo corria contra ele.

            Molly colocou brincos e deu a última retocada no batom. Usava vestido de alça fina azul turquesa, sandálias de salto baixo, uma pulseira de pedras e uma bolsinha de mão. Para finalizar, uma echarpe de renda num tom um pouco mais claro que o vestido e os cabelos presos num coque desfiado. A maquiagem era leve e graciosa, dando à legista um ar jovial.

            Ela deixou o celular no carregador e pensou:

—Não vou deixar nada estragar minha noite!

            Um táxi buzinou frente ao prédio e Molly sorriu. Trancou o apartamento e desceu as escadas. Eram 19h e 30 e ela viu o táxi preto esperando por ela:

—Que gracinha! Ele mandou um táxi me buscar!

            O motorista acenou:

—Senhorita Molly Hooper? O trajeto está definido e a corrida paga. Entre por favor!

—Oh! Vamos, então?

            Ele conduziu pela rua e Molly estava excitada pela aventura. Não sabia ao certo onde Richard marcara o encontro, mas certamente queria impressioná-la. Um pouco mais cedo, recebeu um buquê de rosas vermelhas e um cartão confirmando a hora em que ela tinha de estar pronta. Enquanto pensava no médico, não percebeu o táxi entrar na Kensington High Street e em seguida no Kensington Park.

            Molly olhou ao redor. O parque estava às escuras na maior parte dos lugares, sendo a luz mais forte próxima ao Round Pond, o impressionante lago circular e ao fundo o Palácio Real de Kensington. Confusa, Molly olhou o motorista e ele apontou:

—Siga as marcas no chão! Boa noite!

            A legista olhou ao redor e só ouviu o som do vento entre as árvores. Sentiu-se vulnerável e assustada. O que Richard pretendia com tudo aquilo? Olhou para o chão e viu traços amarelo-fluorescentes indicando a direção onde ela deveria seguir. Ela sorriu com a brincadeira e continuou parque adentro. Quando a linha brilhante terminou no gramado, ergueu os olhos e viu alguém sentado no que parecia uma toalha de picnic.

            Ela cobriu a boca. O americano parecia mesmo querer impressioná-la. Caminhou devagar, não desejando denunciar o quanto estava eufórica com toda aquela produção. A poucos metros do homem, Molly comentou, sorridente:

—Sequestro é crime em toda Inglaterra, sabia?

            A voz que chegou até a jovem congelou seu sorriso e fê-la recuar. Sherlock Holmes levantou-se e falou:

—Eu sei! Já coloquei muitos na prisão por isso!

            Molly não chegou a ouvir o que ele disse. Começou a andar de um lado a outro, machucando a grama verde sob seus pés:

—Não acredito! Não acredito! Não acredito!           

            O detetive avaliou o comportamento dela. Era o esperado:

—Podia parar de andar e me ouvir?

            Ela virou-se, ainda sem parar de andar:

—Ouvir você? VOCÊ?

            Ela gritou. Seus olhos pareciam em chamas:

—SHERLOCK HOLMES! VOCÊ FOI LONGE DEMAIS!             

            Ela respirou:

—O que... Passou por sua mente doente, seu... OH! CÉUS!

            Sentiu-se fraca. Viu pontos brilhantes diante de seus olhos e cambaleou. Sherlock correu até ela e evitou sua queda, trazendo-a para a toalha estendida na grama. Ajudou a jovem a se sentar e ofereceu água.

            Boa parte das coisas que Sherlock fez por Molly naquele momento não foi assimilada por ela de imediato. O choque de perceber que estava a quilômetros de casa, no meio do nada e na companhia de um sociopata funcional com mania de grandeza fez a médica descompensar. Ela sorveu grandes goles de água e tossiu. Sherlock afagou-lhe as costas:

—Devagar...

            Ela sentiu o contato e olhou-o:

—Não me toque! Eu não estou bem! Garanto!

            Ele ergueu as mãos e esperou. Molly abraçou os joelhos e olhou em todas as direções:

—Oh, Deus! Richard vai pensar que dei um bolo nele! Que perdeu tempo comigo e...

—Eu te convidei pra jantar, Lembra-se?

            Ela encara Sherlock:

—O quê?

—Só cheguei antes dele na sua casa!

            Ela começou a rir, nervosa. Ele parecia falar sério e isso era o mais assustador de tudo. Ele falou:

—Não devia rir...

—Não mesmo? Me dê um bom motivo pra não ficar louca de tanto rir!

            Ele mostrou a cesta de vime logo atrás deles. Era grande, arredondada e tinha um buquê de margaridas enfeitando a alça. Sherlock retirou as flores e entregou-as à médica:

—São suas.

            Ela estacou. As flores em suas mãos e o olhar de Holmes sobre ela. Pouco depois ele voltou sua atenção para a cesta e retirou dela taças, talheres e pratos. Potes herméticos, além de pães e frutas embalados em plástico filme.

            Molly olhou ao redor. O céu estava limpo, sem nuvens e era possível ver constelações brilhando no firmamento azul cobalto. O Palácio de Kensington do outro lado do lago parecia tirado de um conto de fadas. Ela voltou seu olhar para o detetive:

—Peça o táxi para voltar, por favor...

—Não farei isso! Podia me ajudar a arrumar isso aqui! Não sou muito habilidoso com picnics!

—Sherlock! Eu falo sério! Se tem alguma consideração por mim... Pelo meu trabalho, que seja! Deixe-me ir ao encontro com Richard!

            Ela chegara ao ponto. Ele parou de fuçar a cesta e encarou-a:

—Seu encontro é um engano. Uma artimanha de Horner para ganhar pontos com você e conseguir ser incorporado ao quadro de médicos do Bart’s.

            Ela sorri, não crendo nas palavras dele:

—E se não for?

—Mas é! Não acredito que se deixe cair em algo tão... Torpe!

            Ela baixou o olhar. Ele não entenderia que ela precisava de jogos como aquele para se sentir viva e não mais um corpo no necrotério:

—Eu admiti você, mesmo sabendo que me usa o tempo todo, Sherlock... Não fale de Richard se faz algo semelhante comigo. Ele me conhece de outros tempos e eu era bem mais jovem e ingênua. Sei me defender, caso não acredite... Não quero que interfira na minha vida fora do Bart’s.

            O detetive a olha em silêncio e suspira:

—Gostaria de mostrar a você que tenho razão, Molly Hooper...

—É o que sempre diz, Sherlock Holmes.

            A calma dele a exasperava e preocupava em deixar Richard esperando por ela:

—Por favor... Preciso ligar para ele. Me empreste seu celular, pois deixei o meu em casa... Não ia precisar dele.

—Vai mesmo ligar?

—Ao contrário de você, as pessoas normais costumam pedir desculpas ou dar satisfação para as outras por quem tem alguma consideração!

            Ele sorri e entrega o aparelho para a legista. Molly se afasta dele e disca o número de Richard que guardara na memória. Esperou e por fim ouviu a voz do americano:

—Alô?

—Rich? Oh, Deus! É Molly! Eu...

—Molly? Aconteceu alguma coisa?

—O que...

—Leu a mensagem que mandei? Stamford marcou uma entrevista com o diretor do Saint Bart’s! Se tudo correr bem, vamos marcar outro jantar pra comemorar! Eu prometo!

            Molly sentiu o chão fugir-lhe sob os pés:

—Onde você está agora, Rich?

—À caminho de Lewisham! Stanford disse que o homem é muito exigente com horários!

—Sim, ele é...

—Molly? Tudo bem? Desculpe ter desmarcado nosso jantar... Você entende, não?

—Sim... As flores são lindas, Obrigada.

—Aposto que você ia vestir alguma coisa bem sensual! Te ligo quando voltar!

—Boa sorte, Rich...

—Obrigado, doçura! Ei! De quem é esse número de celular?

—De um... Ah... Amigo! O meu descarregou...

—Certo! Certo! Te vejo em breve! Beijos!

            Sherlock estava sentado na toalha de picnic. Havia aberto os potes e colocava tudo organizado sobre a cesta, como uma mesinha improvisada. Abriu a garrafa de vinho e colocou nas taças. Molly aproximou-se e entregou-lhe o celular:

—Obrigada.

—Tudo resolvido com seu amigo?

—Acho que sim...

—Vinho?

            Ela apanhou a taça, bebericou e ficou a olhar o lago circular. Queria estar em casa, debaixo de seu edredom, chorando abraçada a seu gato Toby, mas estava ali, no meio do nada e na companhia de Sherlock Holmes, um homem cuja sensibilidade poderia ser comparada a um elefante num campo de margaridas.

            Virou o vinho de um gole só e disse:

—Agora pode chamar o táxi de volta? Não vou a encontro algum, afinal.

            Ele sorriu:

—Não percebeu nada, Molly?

—Que eu não a mensagem de Rich cancelando o encontro? Que me arrumei toda para depois ser sequestrada por você?

            Sherlock levantou-se e foi até ela:

—Hoje à tarde, estive com Mike Stanford no Bart’s. Comentei o interesse de Horner em compor o quadro de funcionários do Hospital e que precisava alguém para indicá-lo. Stanford se ofereceu para ajudá-lo pelos tempos de faculdade.

            A médica encarou Sherlock:

—Você fez o quê?

—Não sabia que Stanford conseguiria essa entrevista tão rápido e justamente hoje. Me ligou e disse que havia marcado para esta noite.

            Molly riu:

—Você nunca faz as coisas inadvertidamente, detetive! Você queria que esse jantar não acontecesse... Por isso mandou o táxi! Por isso armou tudo isso!

—Contei com a sorte. A entrevista poderia ter acontecido qualquer dia, mas o resultado final seria o mesmo... Você aqui.

            Molly ficou em silêncio. Ele se dera a todo aquele trabalho para atrapalhar seu encontro com Richard. No íntimo, a médica legista sentiu-se quente. Estava sendo disputada, mesmo que fosse por sua posição no hospital, mas estava furiosa com Sherlock por ele manipular tudo ao seu redor em benefício de seus interesses.

            Ele esperou a reação dela, que suspirou e caminhou até a toalha estendida. Retirou as sandálias e acomodou-se, enquanto Sherlock sorriu e fez o mesmo. Ela serviu-se de mais vinho e falou:

—Tire os sapatos!

—Como?

—Picnics pedem que você fique à vontade, não?

—Não sei! Não costumo fazer isso, se é que já fiz isso alguma vez!

—Nem na infância?

—Minha família não era dada a esse tipo de folguedo.

            Molly balançou a cabeça:

—Certo. Mas tire-os mesmo assim!

            Ele o fez e sentou-se de pernas cruzadas, enquanto bebericava o vinho. Molly apanhou um garfo e espetou um canapé, mastigou devagar e fechou os olhos. Era visível o prazer que sentiu e exclamou:

—Salmão defumado? Hum!

            Ergueu o garfo e fez Sherlock comer de surpresa um canapé:

—Prove isso!

—Molly, não... Hum!

            Ela riu enquanto o detetive mastigava, misto de raiva e satisfação. Ele encarou-a:

—Digno da realeza, não?

            Ela sorriu e vasculhou os vasilhames à procura de mais iguarias. Encontrou queijo de cabra, frutas secas e uma torta salgada de trufa que a fez devorar a uma parte generosa sem culpa, enquanto a garrafa de vinho se encontrava em menos da metade. Nesse tempo, conversaram trivialidades, falaram de política, trabalho, riram quando Sherlock criticou a Scotland Yard e talvez por estarem aquecidos pelo bom vinho, aquela aproximação se mostrou agradável para ambos.

            Ao fim da garrafa, Molly ergueu a taça para um último brinde:

—Bem... Brindaremos ao quê, agora?

            Sherlock ergueu sua taça:

—Já brindamos à Rainha, à Ponte de Londres... O quinto brinde da noite?

—Porque não?

            Ele sorri, observando o rosto corado da legista:

— Vinho parece ter um efeito curioso em você...

— E em você, detetive Holmes... Aposto que investigou isso também...

—Não.

            A resposta direta fez Molly abaixar a taça. Ele encarou-a e falou com voz suave:

—Ainda furiosa comigo?

            Ela sorriu:

—Acho que não... Depois da terceira taça, a raiva passou.

            E riu da piada, levando Sherlock a rir muito com ela. Viraram o último gole e ela se deitou de uma vez na toalha xadrez, respirando fundo, fechando os olhos:

—Isso é bom...

            Ele observou-a. Avaliou o vestido, a maquiagem e os adereços, percebendo que ela queria parecer bonita para Richard Horner. Sentiu-se estranho ao tomar consciência que havia conseguido atrapalhar o jantar de Molly com o médico americano e que agora desfrutava da companhia dela por obra do acaso ou sorte como dissera antes.

            Ela falou:

—Há muito tempo não vinha aqui... E nem fazia picnic.

—Isso quer dizer que não vai me barrar no necrotério do Bart’s?

            Ela riu de novo. Uma risada cristalina que fez Sherlock pestanejar e sorrir. Afastou a garrafa vazia e as taças e deitou-se, olhando o céu, como Molly fazia. Lado a lado, ela voltou seu rosto na direção dele:

—Eu acho que quero te agradecer...

            Ele olhou-a:

—Quer?

—Sim...

            Ela ergueu meio corpo, apoiando-se nos cotovelos:

—O jantar com Richard ia ser divertido, mas eu o conheço tempo suficiente para saber que poderia me aborrecer com suas investidas “românticas”...

            Sherlock fica surpreso. Sentiu a mesma coisa ao ver o médico no necrotério, abraçando Molly de uma forma ousada. A médica tocou o rosto do detetive e ele segurou a mão dela por um segundo. Estava fria e ele viu a pele do braço dela se arrepiar.

            Sentou-se e prontamente tirou o casaco, cobrindo-a até os ombros:

—A temperatura caiu rápido. Use isso.

            Ela aproximou-se dele e puxou o casaco de forma que ambos ficassem protegidos. Ela apoiou a cabeça no ombro dele:

—Se quiser, pode chamar o táxi agora...

            Ele sorriu e apanhou o celular. Solicitou que o motorista viesse duas horas após a ligação e ouviu a jovem ressonar de leve, adormecida ao lado dele. Sherlock virou o corpo de lado e puxou-a para junto de si, sentindo o corpo dela estremecer, para em seguida acomodar-se entre os braços do detetive.     

            Ele estava satisfeito com o resultado de sua empreitada. Havia conseguido afastar a ameaça do americano em relação à médica legista. A atenção dela não seria desviada e não teria nenhum bisbilhoteiro atrapalhando suas experiências auxiliadas por ela. Súbito, percebeu-se dependente da presença daquela mulher e ficou confuso. Ela lhe era familiar, assim como John e a Sra. Hudson. Ela fazia parte de sua rotina e perder isso o incomodou a ponto de simular um picnic romântico.

            Mas o encontro não foi romântico. Foi tenso no começo, conflituoso como uma tempestade que ia se acalmando até tornar-se uma garoa. Viu várias faces de Molly Hooper e gostou da companhia dela. Agora ali, aspirava o perfume dela, deitados na grama macia do Kensington Park, sob um céu de estrelas brilhantes, cercados de silêncio e tranquilidade.

            Ela moveu-se e abriu os olhos. Ele voltou seu olhar para ela:

—O táxi chegará em breve...

—Oh! Eu cochilei?

—Por alguns minutos. Sente-se bem?

—Sim... Estou aquecida. Obrigada.

            Então ela percebeu que estava aninhada nos braços dele e corou. Ele comentou, suave:

—Ia congelar...

—Tudo bem, Sherlock... Não se preocupe. Não vou interpretá-lo mal por isso.

            Dizendo isso, ela aproximou-se dele e pousou os lábios na face do detetive. O contato foi quente, quase mágico e ela afastou-se devagar, afundando o rosto no peito dele, estreitando o abraço, fazendo-o estremecer. Molly percebeu, mas não disse nada. O hiperativo e sociopata funcional Sherlock Holmes teve sua cota de humanidade por uma noite. Ela não ia exigir mais nada dele.

            O celular tocou. O táxi havia chegado como combinado. Molly afastou-se de Sherlock, que sentiu-a desfazer o contato e sentou-se como ela. Guardaram os utensílios do jantar e se levantaram ao mesmo tempo, calçando os sapatos. Ela apontou para a toalha:

—Deixe que eu dobro...

            Ele assentiu e apanhou a cesta, afastando-se. Molly curvou-se e ergueu a toalha xadrez, sacudindo-a dos ramos e gramas e dobrando rapidamente. Sherlock abriu a cesta e a jovem guardou o objeto, sorrindo:

—Pronto. Podemos ir agora...

            Ele ergueu o braço e ela segurou-o, caminhando juntos até a área pavimentada. O taxista era o mesmo que trouxera Molly e sorriu ao vê-los se aproximando. Abriu a porta para os dois e em seguida arrancou o carro.

            Sherlock colocou o casaco sobre os ombros da médica e a segurou junto de si, protetor, mas nada disseram durante o trajeto até a casa dela. Molly permaneceu alheia, os cabelos estavam soltos, num gracioso desalinho e isso fez o detetive olhar para ela algumas vezes.

            O táxi estacionou diante do prédio onde Molly morava. Sherlock desceu e ajudou-a a desembarcar, segurando suas mãos. Ela agradeceu e seguiu um pouco à frente, tirando as chaves da bolsa de mão. O taxista esperou, enquanto Sherlock se aproximava da moça.

            Ela abriu a porta de entrada do prédio e voltou-se para o detetive, retirou o casaco e entregou a ele com um sorriso sincero:

—Esse casaco é fantástico. Não me admira que o use sempre! Obrigada.

—É verdade.

—Bem, detetive Holmes... Boa noite e obrigada pelo picnic noturno. Foi adorável!

            Ele inclinou-se numa vénia e ela respondeu com outra própria das ladys inglesas. Virou-se e entrou, fechando a porta atrás de si. Sherlock ainda permaneceu no passeio, até que viu a luz na janela do que seria o quarto de Molly e a silhueta dela passar rapidamente atrás da cortina.

            O detetive entrou no táxi:

—Baker Street, 221B, por favor.

            O taxista conduziu o veículo, enquanto Sherlock ainda olhava pela janela, pensativo. O taxista sorriu:

—A jovem dama ficou contente, senhor?

            Sherlock olhou o motorista, pensou um segundo e decidiu responder:

—Acho que foi uma noite agradável... Sim, ela ficou contente.

—Se precisar dos meus serviços, senhor, ficarei contente em atendê-lo!

            Estendeu um cartão para o detetive, que apanhou e leu o nome do motorista:

—Me lembrarei disso. Obrigado.

            E o taxista nada mais disse até chegarem ao endereço, onde Sherlock pagou a corrida e entrou em casa silenciosamente. Não sabia se John estava em casa, mas tanto melhor ficar sozinho nessa noite, pois queria analisar tudo o que havia acontecido e entender o que havia mudado. Deitou-se no sofá como de hábito e fechou os olhos. Foi tomado por uma estranha e confortável languidez e adormeceu profundamente.

            Em seu apartamento, Molly terminava de alimentar seu gato, Toby. Ela estava silenciosa. Nem agitada nem calma, sentia-se estranha. Sonolenta, apagou as luzes da cozinha e seguiu para o quarto, aconchegou-se em seu colchão e fechou os olhos. O cheiro de Sherlock Holmes, gravado em sua memória, embalou seu sono.

            No plantão noturno do dia seguinte, Molly estava distraída pesando um cérebro de um cadáver recém-chegado. Não notou a aproximação de Richard Horner, que vinha lentamente e segurou-a por trás, pela cintura:

—Adivinhe só!

            A legista se assustou e ergueu as mãos enluvadas sujas de sangue:

—Richard! Não faça isso!

—Stanford conseguiu! O diretor gostou das minhas referências! Sou um novo membro do Bart’s!

            Ela sorriu:

—Que maravilha, Rich! Quando começa?

—Em vinte dias! Preciso voltar para Nova York amanhã e preparar a mudança oficial! Fechar contas, me despedir da galera e vir de uma vez pra Londres!

            Ela concordou, sorridente e ele bateu palmas:

—Que tal comemorarmos hoje? Aquele jantar ainda está de pé!

—Oh! Meu turno vai até uma hora da madrugada!

—Ah! Sem problema! A noite é uma criança! O que me diz, doçura?

            O olhar de Molly segue para além de Richard e ele se virou ao sentir uma presença atrás de si:

—Detetive Holmes! Sempre chegando sorrateiramente! Faz isso de propósito, não?

—Não vejo razão para tal ato, Doutor Horner... Ah! Molly?

            Ela pestanejou e ele continuou:

—Esqueceu sua echarpe no táxi ontem à noite. Trouxe pra você...

            Molly sorriu e mostrou as luvas sujas:

—Oh, Sherlock! Foi muito gentil! Pode colocar sobre a minha mesa de arquivos, por favor!

            O detetive dobrou o tecido e depositou na mesa como ela pediu. Olhou-a novamente e sorriu de leve:

—Queria dizer que a noite de ontem foi bastante agradável... Em muitos aspectos.

            O rosto de Molly iluminou-se:

—Também gostei muito, Sherlock. Obrigada... Precisa de ajuda?

—Hum? Oh, não! Vim só para devolver sua echarpe e agradecer a companhia!

—Oh, certo! É sempre bem vindo!

            Ele sorriu e voltou-se para Richard:

—Doutor, Boa noite.

—Boa noite...

            E saiu dali tranquilamente, deixando o médico pensativo. Este voltou seu olhar para Molly:

—Ontem à noite...?

—É uma história complicada, Rich...

—Sei... Você me pareceu bem contentezinha...

            Ela riu:

—Enquanto você foi ao encontro do diretor do Saint Bart’s, Sherlock foi gentil em me convidar para um picnic no Kensington Park...

—Picnic à noite?

—Sim! Foi... Adorável!

            Richard fechou a cara:

—Eh... Hum... Eu... Vou andando! Nós marcaremos alguma coisa quando eu voltar de Nova York, combinado?

—Quando quiser, Rich! Desde que não seja no meu plantão!

—Certo... Eu já vou... Boa noite!

—Boa noite!

            Molly voltou sua atenção para o cérebro na balança e o médico americano ficou algum tempo olhando para a jovem, ali, imersa em pensamentos. Richard Horner percebeu o leve rubor na face dela quando Sherlock falou do encontro e a troca de olhares entre eles denunciava algo que não agradou o médico.

            Molly Hooper não seria outra de suas conquistas.

Fim


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Notas finais do capítulo

Mais uma fic baseada em Sherlock, da BBC.
Revisei esta história e modifiquei algumas coisas para adequar à série que avançou bastante.
Quero continuar a postar outras dentro do mesmo universo!
Boa leitura!!!!



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