Aurora Rubra: Entre Dois Mundos escrita por Alx Lochet


Capítulo 1
Capítulo 1




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Num balanço rítmico de esquerda-direita as pontas de seus pés arranhavam o chão branco.

A graxa de seus sapatos deixava marcas no mármore que desenhavam um pêndulo, que ia ficando mais escuro no centro, preto, e mais claro nas pontas, num tom cinza. Bala já tinha parado de gemer de dor fazia dois minutos e alguns segundos. Agora, o gosto de sangue em sua boca era mais familiar e a queimadura entorno da ferida parecia comum. Ele segurava, com as duas mãos, o gancho de metal que perfurava seu ombro esquerdo.

Ele não se lembrava da pessoa que tinha perfurado seu ombro com aquele objeto estranho, mas ela parecia ter hábitos de pesca muito estranhos. O gancho estava ligado a uma corda preta e grossa, que estava ligada ao teto, assim, o gancho de mental erguia o ombro esquerdo de Bala que estaria exposto se ele não estivesse se segurando com todas as forças possíveis. Qualquer movimento em falso e ele poderia cair no chão, rasgando seu membro, atingindo uma outra veia ou nervo importante, e sangrar até morrer.

Bala lutava para se manter erguido. A pressão que o gancho fazia em seu ombro parecia vezes dilacerante e impossível de se tolerar, fazia com que ele desejasse estar morto. O lado esquerdo de seu corpo já estava molhado com sangue vindo da ferida. Até seus braços, que seguravam a corda ligada ao gancho, pareciam manchados de sangue, mas, na realidade, eles só estavam rubros da força e do tempo que permaneceram na mesma posição.

Ele tenta se erguer um pouco mais, quando percebe que seu ouvido direito está estourado. Ele não sabia se realmente tinha machucado-o ou se tinha alguma coisa enfiada nele, impedindo-o de escutar qualquer som, nem mesmo o murmuro do escape de ar. Num instante depois, o som de uma martelada abafada toma conta da mente de Bala, os vasos sanguíneos em seus olhos pulsão e as lágrimas começam a chegar. O gosto de sangue em sua boca prece ficar mais forte e sua visão turva; a familiar sensação do gancho em seu ombro tornou-se agoniante.

Merda, pensou ele. Agora ele sabia que estava entrando em euforia. Todos os nociceptores de seu corpo pareciam estar despertados, tudo o que ele sentia endo e exteriormente pareceu ser aumentando ao último volume de sensações. Bala tentou focar em outra coisa, mas a martelada em sua mente ficava mais alta, mais próxima.

Quando fechava os olhos, sentia água descer em suas bochechas, que, cheias de cortes, queimavam quando em contato com o sal das lágrimas. Ele parecia sentir seu corpo produzindo cortisol, fazendo seu coração bater mais rápido, seu pulmão exigir mais ar, sua mente gritar por liberdade e suas mãos cerrarem mais no gancho.

Bala olhou mais uma vez para a sala em que estava. Em sua diagonal esquerda, uma cadeira de escritório cinza, com o estufado furado e muitos tufos de algodão saindo. Uma mesa de metal com as quatro pernas predadas no chão, como se ela não pudesse fugir, mesmo se quisesse. As paredes eram brancas e cobertas por um plástico bolha; do seu lado direito, uma cama de metal, preta, sem o colchão e já enferrujada; na cabeceira da cama, no chão, havia vários sacos pretos de lixo, um ao lado do outro, e essa fileira seguia por toda a parede do lado direito, passando do espaço de visão de Bala.

Ou essas merdas são corpos mutilados ou folhas de outono, Bala tentava preencher sua mente com pensamentos que o fizessem esquecer da dor no seu ombro esquerdo e da martelada em sua cabeça, mas ele sabia que não era outono.

Ele tentou lembrar como foi parar lá, de alguma forma, tudo estava turvo, não só o agora como o antes. Ele não parecia conseguir ligar os pontos de sua chegada naquela sala branca da tortura, ele só tinha certeza de uma coisa: era lá que Neur estava.

I

Mikel passou as lentes de seus óculos meia-lua na sua camisa.

Talvez Anna estava certa e ele deveria mudar de moldura, um óculos mais moderno, mais na moda. Se eu tiver um óculos Ray Ban minha filha teria menos vergonha de mim, ele pensou, baixinho, no canto de sua consciência. Mikel sabia que sua filha não tinha vergonha dele, ele sabe que sua relação com Alma está onde está por culpa dele. Mas encarar a verdade seria doloroso demais, essa responsabilidade quebraria Mikel, e, por isso, ele criou uma realidade em que sua única cria tem vergonha dele.

Vergonha do pai famoso, que original.

A última edição de 'Aurora Rubra' foi um sucesso. Muitos leitores estão aflitos com a situação do seu herói, esperando ele ser salvo por alguém ou alguma situação inesperada. Não é todo dia que o personagem principal é suspenso no teto por um gancho preso no ombro.

Visceral, Ramini, você já fez muitas coisas, mas isso foi visceral. Ele achou que a editora não ia deixar isso passar, mas parece que o mundo inteiro está passando por uma transformação moral, e ninguém mais se importa em ver um rapaz de vinte anos ser torturado, mas por Deus, não torne ele gay!

Mikel levantou de sua cadeira e saiu do seu atelier. Pegou um copo d'água na geladeira e tomou em cinco goles. Foi em direção a mesa de sala para verificar seu celular e leu:


5 chamadas perdidas: Alma (4); 021988234554 (1)

22 novas mensagens

Da última vez que sua filha havia lhe ligado fora para dizer que sua sogra faleceu. Não poderia ser algo tão grave.

Antes de pôr o celular de volta ao seu lugar, ele vibrou em sua mão. Sua editora-chefe estava ligando e Mikel soltou um grande suspiro antes de atender.

"Que merda é essa Mikel!"

"Oi Julia"

"Você poderia ter avisado que estava querendo mudar seu público-alvo, ? Mas parece que hoje em dia os GRANDES ESCRITORES não precisam mais da opinião de seus editores! Perceba que eu disse opinião e não permissão, porque, a-pa-ren-te-men-te, o senhor já passou dessa fase, Ramini?!"

"Fala devagar que eu não entendendo nada"

"Ah! Não não?!"

"Não"

"Eu também não! Por que quando tivemos a reunião com você e Bá - descanse em paz - nós apresentamos a possibilidade de um webtoon e vocês disseram 'Nããão, Julia, webtoon é coisa de millennials, nós queremos um público alvo que ADMIRE TRABALHO DE VERDADE' Mas e agora, Mikel? Ein? O que mudou?!"

"Que porra de webtoon, Julia?"

"A porra da webtoon que você acabou de lançar! NO SEU SITE, BABACA!"

"Eu não lancei webtoon nenhuma"

"Então foi seu eu lírico, amor, só pode. Sua outra personalidade, que não se importa com contratos!"

Mikel correu para seu atelier e abriu seu computador. O link de seu site já estava na homepage do Google, ao lado do Youtube e PornHub.

Quando a página carregou, ele observou a parte de últimas publicações. Em primeiro lugar estava um postagem sem assunto ou título, ele clicou no link e outra página abriu.

A capa de Aurora Rubra tomava quase que toda a página da web.

"Eu não publiquei isso", ele disse para Julia e depois afastou o celular do ouvido de novo, para descer o mouse.

Na medida que ia descendo, Mikel observava uma história que começava depois do final da última edição da sua graphic-novel. Ele via eu herói, Alexandre Bala, sofrer para se manter erguido, lutando contra as dores. Essa parte elava ilustrada da mesma forma que ele havia feito: as sombras e traçados; os tons de vermelho e cinza na gravata de Alexandre. Nada demais.

O que o espantou veio depois. O próximo quadrante da graphic-novel estava em preto e braco, inacabável, o traço era um pouco mais fino, mas ainda assim muito parecido com o dele, só que o tom de preto estava errado, quase amarronzado. As próximas imagens que o fizeram suar em frio: existe uma porta atrás de Alexandre Bala e, sem mais nem menos, ela se abre devagar. Dela, sai uma mulher misteriosa, de cabelos escuros e presos, seu rosto está nas sombras.

A mulher ajuda Bala a sair e ela o tira da sala. Eles dois sobem um lance de escadas e abrem uma porta para sala de estar de uma casa de arquitetura moderna, com janelas ao invés de paredes. Eles saem da casa e caminham pela neve. Alexandre apoia todo o seu peso na mulher, que ainda não teve sua identidade revelada.

Mas que merda...

Os dois descem o morro de neve e andam pela estrada até um posto de gasolina. As pernas do herói cedem e ele cai no chão. A mulher se agacha do lado dele. Ele luta para abrir seus lábios, mas, quando consegue, deixa um som fraco e rouco sair de sua garganta:

"Quem é você?"

Finalmente o rosto da mulher é revelado, Mikel engole em seco e deixa o celular cair.

Alma?

"Meu nome é Alma", responde a mulher.

II

Formation grita para fora dos fones de Danton, que dorme na cama de cima.

Alma pensou que conseguiria dormir mesmo com o som distante das músicas de Danton clamando por serem ouvidas. Era isso que a incomodava. O fato que ela ainda conseguia ouvir a música, como um som de fundo acabava com qualquer possibilidade de conseguir dormir.

Danton, que estava no colchão de cima do beliche, sentiu os dois chutes de Alma num susto.

"Que foi mulher?!" Disse ele, tirando o fone do ouvido.

"Eu tô ouvindo os saxofones da música daqui. Tá muito alto, amigo."

"Pois eu só consigo dormir assim"

"Já eu não consigo. Seja altruísta"

Alma conseguiu ouvir Danton suspirar.

"Que golpe baixo! Você sabe dos meus problemas com altruísmo"

Alma sorriu.

"Vamos dormir"

Danton desligou a música e virou para o lado.

Quando Alma sentiu sua mente relaxar, uma luz branca tomou conta de suas pálpebras.

"A emergência precisa de vocês"

"Puta que pariu...", suspirou Alma, entre os dentes.

"Tá bom" disse Dante, com a voz rouca.

Dante pulou pra fora da cama e ajudou Alma a se levantar.

"À luta doutora!" disse Dante.

Alma riu.

Os dois pegaram seus jalecos e saíram da sala de repouso.

Era o segundo ano de Alma como médica residente no Santo Amaro, um dos grandes hospitais da sua cidade, e ela estaria estática, se não fosse pelas noites perdidas, o estresse e antipatia dos outros médicos. Apenas Dante se salvava da equação de recém-formandos apáticos. Ele era leve e engraçado, o tipo de pessoa que Alma queria por perto. Talvez o tipo de pessoa que todo mundo quer por perto.

Ela entrou na sala do Dr. Romário e ele tratava uma paciente com ansiedade crônica, ela tinha parado de tomar seus remédios e isso tinha desencadeado uma reação exagerada de seu organismo: muito Cortisol havia sido liberado e agora ela se queixava de uma acidez agonizante no estômago.

"Quando seu organismo libera muito Cortisol, sua imunidade tende a diminuir, aumentando as chances de acidez no estômago. Em situações mais graves, úlceras podem se formar no órgão."

"O que é úlcera, doutora?"

"É ferida, dona Carla. E pode me chamar de Alma, eu ainda não tenho um doutorado."

A paciente sorriu.

"O seu médico deve ter passado uma batalha de exames né? Vamos ver o estado do sue estômago e depois resolvemos o que fazer, ok?"

"Certo."

Alma começou a ler os tratamentos prescritos para dona Carla.

"E não deixe de tomar sua medicação. Ansiedade é coisa séria, dona Carla. Você pensa que não, mas ela pode matar."

"É que eu nunca mais senti esse aperto no coração, sabe? Pensei que tava bem. Ai meu sobrinho entrou num trabalho que não sei não..."

"A senhora não gostou do trabalho? Paga pouco?"

"Não. Até que paga bem. Só é perigoso."

"Ele é militar? Policial?"

"Não. Tá do lado errado."

Alma respirou fundo. As vezes ela esquecia de como todo dia um novo jovem entrava pro mundo do crime. Para os menos favorecidos, o tráfico parece a única chance de crescer economicamente para eles. Afinal, ninguém está interessado a empregar um favelado, ou dar um livro e caneta pra ele. Depois, quando o estrago já está feito, eles são mais uns pra equação de jovens mortos no país. Mais um corpo com o qual ninguém se importa.

Alma passou um remédio para combater a acidez no estômago de dona Carla e prescreveu outro remédio para Ansiedade, um pouco mais forte. Passou o resto da noite atendendo casos simples, mas puxados. Ela sempre tentava puxar assunto com os pacientes, fazê-los se sentirem seguros, como se estivessem com uma confidente. Aquilo ajudava com os nervos. Ela sabia disso, pois ela já foi uma das pessoas que tinha pavor de médicos.

Quando deu sete horas da manhã, ela foi liberada. Chamou um Uber com Danton, que não parava de falar de um paciente com uma ferida no tornozelo direito, ela já tinha inflamado e estava impedindo o homem de andar normalmente.

Foi quando o carro parou na luz vermelha e do lado de uma livraria. Na vitrine, um grande cartaz da última edição de 'Aurora Rubra', a maior graphic-novel da atualidade. Todos a leram, menos Alma. Ela tentou, mas depois de um tempo, ela percebeu que se sentia desconfortável. Em toda a página que virava, ela não mergulhava na história do detetive Alexandre Bala e sua filha adotiva poderosa Morena, mas sim na mente do pai.

Seu pai era Mikel Ramini, co-criador e ilustrador de Aurora Rubra. Fazia dois anos que ele havia se tornado o escritor oficial da narrativa e, de acordo com as críticas, esses têm sido os melhores anos para o mercado de quadrinhos.

Agora ela olhava os traços do desenho de seu pai: era como a maioria dos traços artísticos apresentados em quadrinhos de super-heróis como Batman ou Mulher-Maravilha, mas tinha algo a mais, como uma força maior... uma raiva.

Na capa da graphic-novel, via-se o personagem principal, Alexandre Bala, de joelhos no chão, com os punhos cerrados sobre as coxas e cabisbaixo. Ele usava uma calça social cinza, combinando com sua gravata, uma camisa social branca e sapatos pretos, limpos e com muita graxa. O ambiente era de neve e, em suas mãos, muito sangue. Em baixo dos nomes AURORA RUBRA lia-se: Uma Revelação Aproxima-se.

Danton percebeu que Alma estava observando o cartaz, quase que tentando destruí-lo com o poder de laser.

"Eu já li" disse ele, Alma interrompeu seu pensamento e olhou para Danton "É muito boa. Apesar de eu não gostar de ver pessoas sendo machucadas sem nenhum profissional de saúde responsável para ajudá-las... É muito boa. Bem escrita."

"É, eu ouvi falar.", respondeu ela, com um sorriso de canto.

Danton sorriu.

"Por que você nunca se interessou amiga?"

"Quem sabe..."

"Minha personagem favorita é Morena" Ele gemeu de felicidade "Mal posso esperar a hora que ela conseguir lidar com seus poderes! Vai ser icônico! Fênix Negra 2.0! Já faz três meses que ele lançou a última edição. Eu to MORRENDO pra saber o resto!"

Alma riu.

"Ai amiga... Para com isso. Esse sorriso debochado. O quê foi que você não gostou?"

"No quê?"

"Na história ué! Vou fazer você gostar."

Alma riu. O motorista do Uber também.

"Ok" Alma limpou a garganta "Primeiro: É muita forçação de barra essa história de Bala ser um detetive. Ele nem tem menos de trinta anos de idade! E ele deixou claro que entrou na academia de polícia para conseguir achar o assassino dos pais. O que é uma merda impensável, por que se isso fosse o mundo real, ninguém ia deixar ele ficar perto de uma arma! Ele ia ser mandado pra uma psicóloga, isso sim!"

"Eu preciso de uma psicóloga..." sussurrou Danton.

"...Além do mais... Morena?! Uma menina de 13 que passou por um estudo de laboratório do Governo e saiu de lá com poderes místicos? Quanta baboseira..."

"Uhm-hum" Dante mexia a cabeça "Você é uma hater."

"O quê?!" Alma riu.

"Isso mesmo senhora! Você é uma daquelas pessoas que ficam no twitter esperando Katy Perry postar pra dizer como o corte de cabelo dela tá horrível."

Alma gargalhou.

Ela tirou o celular do bolso e discou o número do seu pai. Começou a ligar, mas depois mudou de ideia, desligou o telefone e guardou-o novamente.

"Você deveria dar outra chance aos quadrinhos, moça" disse o motorista do Uber "Eles são realmente bons. Nada de história de criança, manjada."

Alma sorriu e deu uma ultima olhada para a vitrine da livraria, quando o sinal ficou verde e eles seguiram com a viagem.

III

Nutella, o cão de Alma, já estava latindo na porta, esperando a dona entrar em casa.

Quando abriu a porta, ela mal conseguiu entrar em casa: foi atropelada pelo pequeno filhote de bulldog, marrom como um pó de chocolate. Ela pegou o animalzinho no colo e fechou a porta.

Percebeu algumas caixas de papelão na sala, mas foi direto para a cozinha, beber um copo d'água. Em cinco goles, ela já tinha terminado todo o copo.

Na porta da geladeira, uma mensagem da sua mãe:

Oi querida, fui correr no parque, comprei tapioca e queijo vegano (eu não sei como isso funciona, mas ta aí pra gente experimentar). Da corrida eu vou pra casa de Daniela e pro trabalho, beijo.

Alma riu, abriu a geladeira e pegou um pouco do almoço do dia anterior. O relógio bateu 8hrs e 21 minutos. A maqluba de ontem estava quase acabando e com um cheiro duvidoso, mas Alma não queria pensar muito sobre isso. Colocou um pouco num prato, esquentou no microondas e comeu rápido, quase sem mastigar - um hábito comum entra profissionais de saúde: o tempo dedicado à refeições era pequeno.

Em menos de 1h, Alma tomou banho, escovou os dentes, colocou a comida de Nutella e foi dormir no seu quarto.

Ela sonhou com o pai. O seu sonho era quase que uma recordação: Ela tinha cinco anos de idade e estava no Parque da Cidade, brincando com castelos. Seu pai sorria e tirava fotos. Ele estava sentado do lado de sua mãe, que comia um algodão doce rosa, nessa época eles já estavam divorciados. Então Alma começa a brincar de pega-pega com seu pai e, subitamente, ele cai no chão. Quando se levanta, seus joelhos e mãos estão cobertos de sangue, Alma corre para chamar a sua mãe, mas ela não estava mais lá. Em seu lugar, Alma via dona Carla, vomitando em cima do algodão doce.

Quando acordou, não tinha passado duas horas. Alma pegou seu celular e discou o número de seu pai, deixou chamar, mas desligou novamente.

Ela não entendia por que era tão difícil conversar com ele. Eles não precisariam mudar o passado, podia ser uma conversa simples, do tipo: "Oi, como foi seu trabalho? Você almoçou bem? Tem um pouco de maqluba aqui, 'ab, eu posso levar aí"

Mas ela não conseguia. Por algum motivo, ela acreditava que eles começariam a relembrar situações desagradáveis, e uma briga seria o final inevitável. A relação dela com Mikel estava ruim, não precisava piorar.

Alma levantou e foi para a sala. Ela observou as caixas de papelão que tinha ignorado quando chegou e aproximou-se delas. Em cima de uma delas tinha um recado de sua mãe:

Seu pai deixou isso aqui ontem a noite, no seu plantão. Disse que o que você não escolher ele vai doar.

Alma abriu a primeira caixa e encontrou um monte de camisetas de algodão, com estampas de bandas de rock como Beatles, Rolling Stones, Fleetwood Mac, Queen, Teme Impala, etc. Ela pegou três das vinte camisas lá, para usar quando dormir.

A caixa de baixo era de coisas de madeira: porta-retratos, porta-lápis, base de cinzeiros, segura-papéis, etc. Ela não quis nenhum dos objetos lá. Na terceira caixa, na base, tinha objetos tecnológicos: uns dois mp3, o primeiro iPod, um iPhone 5, dois celulares Motorola, uns sete fones de ouvido... Mas o que mais chamou a atenção de Alma foi o maior objeto: um tablet para desenho.

Mikel deveria ter comprado outro para melhorar seus desenhos para Aurora Rubra, e estava se desfazendo do antigo. Alma pegou o objeto com as duas mãos, os olhos cheios de brilho e a boca entreaberta.

Ela se levantou rapidamente e levou o tablet para o quarto. Tirou o carregador do seu celular e conectou o USB na saída do novo tablet. Sem tirar os olhos do carregador, Alma ligou pro seu pai para agradecer pelas coisas que mandou, mas a ligação caiu na caixa.

Quando o tablet ligou ela sentou em sua escrivaninha e começou a explorar. Alguns arquivos ainda estavam salvos, como algumas edições antigas de Aurora Rubra, mas nada tão antigo. Ela conseguiu ver uma pasta que dizia 'Antônio', mas não chegou a abrir-la.

Seu celular tocou e ela atendeu. Era sua mãe.

"Oi querida"

"Oi 'umi, abri as caixas."

"Ah sim... E? Achou alguma coisa legal?"

"Umas camisas velhas e o tablet antigo do meu pai."

"De desenho?"

"Sim"

"Nossa, mas isso parece um computador... Tem certeza que você tem espaço pra isso no seu quarto, filha?"

"Claro que tem mãe. Quem quer arruma espaço"

"Eu sei... mas você já não tem tempo de arrumar seu quarto, agora com tralha nova..."

"Mãe, pelo amor de Alah"

" certo, tá certo... Não vou dizer mais nada. Eu só liguei pra avisar que quando sair do trabalho vou para um aniversário"

" popular você, ein"

"É da minha amiga"

"Você que se cuide. E não use drogas"

Anna riu pelo telefone.

"Sim, senhora"

"Tchau, mãe"

"Tchau."

Ela jogou o celular pro lado e foi para sala, assistir alguma série. Depois de alguns episódios, e uma conversa no celular com Danton, Alma levantou e foi arrumar as coisas que não queria nas caixas.

Ela predeu o cabelo e Nutella correu para o quarto dela.

Quando terminou de arrumar e colocar todas as caixas perto da porta da sala, Alma voltou para seu quarto e ligou seu novo tablet novamente.

Desta vez, ela foi direto para o aplicativo que seu pai usa para ilustrar as graphic-novels. Ela abriu o arquivo mais recente e depois abriu outra aba para abrir uma mais antiga.

Alma estava certa que iria passar seu fim de semana se educando em Aurora Rubra. Se ela começasse a se interessar pela história, ela teria algo para conversar com seu pai, algum assunto que não terminaria em uma discussão sobre negligência parental. Ela procurou as edições mais novas no tablet, mas não achou.

Ela pensou em abrir a pasta com o nome do seu tio Antônio, mas pensou que era melhor não. Ela levantou e foi procurar no armário alguma cópia física das primeiras edições. Ela não conseguiu alcançar a parte mais alta do seu armário, provavelmente o local onde sua mãe guardou os quadrinhos.

Alma foi para a Área de Serviço, pegar uma escada e voltou para seu quarto com ela na mão. Ao entrar no quarto, ela percebeu que um som estranho estava vindo de seu tablet, como se as engrenagens dentro dele estivessem se movendo mais rapidamente e com maior força. Ela desconectou o cabo USB, mas não adiantou muito.

De repente, o tablet desligou. Antes de ficar tudo escuro, ela jurou ter visto uma pessoa se mexer dentro dele, nos quadrinhos.

Deve ser por isso que meu pai queria se desfazer dele. Está quebrado, pensou ela.

Sem nenhum aviso, no meio da tela preta, um ponto branco apareceu. Alma se aproximou da tela do tablet e o segurou para perto. O ponto branco começou a ficar maior e Alma começou a escutar marteladas abafadas no canto de seu ouvido. Ela não compreendia o que estava acontecendo e começou a bater na tela do objeto.

O ponto branco não deixava de crescer e agora Alma escutava ruídos de uma pessoa, um homem, talvez com dor. As marteladas ficaram mais altas e o tablet começou a piscar. Alma deixou ele cair no chão e tudo ficou escuro de novo.

Ela engoliu em seco.

Mas que merda...

Como um flash de luz, o tablet liberou uma luz branca forte e Alma se agachou perto dele. Quando a luz desapareceu e o tablet voltou a ficar desligado, Alma também desapareceu do quarto.

Nutella, que estava debaixo da cama da dona, virou a cabeça, em confusão.


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Notas finais do capítulo

Tive a ideia para essa narrativa de manhã e me senti em êxtase. Comecei a anotar todos os meus pensamentos e ideias para personagens e já estou apaixonado por cada um deles. Esta é a primeira vez que publico algo que escrevo em um site como o Nyah!, portanto a minha ansiedade é explicável.
A origem da história não é minha, então não ouso em me sentir seriamente orgulhoso por ela, mas isso não quer dizer que não estou feliz. Essa ideia veio para mim como: e se a Netflix fizesse uma releitura dessa série para alguém como eu? Como eu gostaria que fosse?
Por motivos de que eu não terminei de ver a versão original, o drama W: Two Worlds, eu não posso garantir que eles terminem da mesma forma. Nem começar vão. Só se, por uma brincadeira do destino, eu, por algum motivo extraordinário, acabe escrevendo um final parecido com o já aconteceu. Mas, enfim, eu espero que esta seja uma versão refrescante e eu espero ter fôlego para terminar.



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