Pátria Amada escrita por Goldfield


Capítulo 5
V: Afasta de mim esse cálice, pai!




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V

Afasta de mim esse cálice, pai!

As circunstâncias não estavam sendo solidárias com Oliveira quando o assunto era vislumbrar a mulher com a qual seu outro "eu" se casara naquele mundo: primeiro a visão oblíqua da cozinha, agora o ângulo de baixo da cama – onde o agente se escondera – permitindo somente enxergar os pés da mulher indo para lá e para cá em seus chinelos rosa, conforme varria.

Ter o olhar entediado pelo esfregar das cerdas contra o chão, erguendo poeira que por pouco não o fez tossir, lembrou-o, para própria surpresa, de Jânio Quadros. O presidente da "vassourinha", que pretendia varrer do país a corrupção... Somente para se mostrar um comunista no poder – alertando o país ao perigo que corria quanto a se tornar uma nova Cuba – ao condecorar Che Guevara e reatar relações com os soviéticos. E pensar que, quando Figueiredo ensaiou a abertura, o maldito já se preparava a concorrer a mais algum cargo político... Em qual país morrera exilado mesmo? Portugal?

O agente do DOPS imaginou qual teria sido o fim de Jânio naquela realidade desvairada. Bem, se a esposa usava a vassoura descompromissada em suas tarefas domésticas, ao menos não fora elevado a santo – o que tornaria o objeto relíquia intocável...

Talvez estivesse divagando demais, a urgência de sua situação voltando para perturbá-lo quando a mulher começou a estender a vassoura para baixo da cama. Oliveira esquivou-se de uma esfregada rolando o corpo para o lado, mas não pôde evitar que a piaçava resvalasse em si no movimento seguinte. Congelado, suspendeu a própria respiração, angustiantes segundos de incerteza passando conforme aguardava a reação da moradora...

Que, para sua surpresa, prosseguiu imediatamente varrendo o piso despreocupada.

— Ai, o Thiago deixa esses sapatos todos embaixo da cama! – foi sua conclusão, permitindo a Oliveira recuperar o fôlego.

E, mais algumas esfregadas e lufadas de pó depois, a mulher saiu do quarto, fechando a porta e trancando-a. Aguardando até que seus passos se afastassem pelo corredor, deixando o ambiente seguro para revelar-se, o agente sentiu frustração por não poder novamente visualizar qualquer traço de sua aparência acima dos calcanhares. Não queria o destino que conhecesse sua cara metade naquela dimensão paralela? Isso poderia ter consequências abalando todo o universo, como seu filho também só ali existente avisara?

Sentando-se na cama, Oliveira viu que a alternativa seria esperar – e desejou que sua outra versão ao menos não gostasse de falar muito...

X – X – X

A mãe voltou a entreter o tal de Queirós na cozinha, oferecendo café e bolo de fubá mesmo não tendo passado sequer meia hora após o almoço – deixando Thiago sozinho com o pai na sala. Era bizarro, ao rapaz, abandonar uma versão da mesma pessoa trancada em seu quarto para então se encontrar com outra, embora a intransigência marcada no rosto de ambas revelasse que algo no multiverso conseguia juntá-las. Pena não ser outra coisa.

— Ainda bem que veio! – o Estevão da mesma dimensão que Thiago afirmou sentado à poltrona, abaixando o volume da TV com o controle remoto numa mão e ajeitando a camisa sem mangas para ocultar o umbigo exposto com a outra. – Choramingar na sua cama não resolverá nada!

— Eu não estava choramingando.

Estevão franziu o cenho, examinando o filho com mais atenção. Provavelmente constatou não haver marcas de lágrimas ou irritação em seus olhos, pois logo retraiu a cabeça e grunhiu conformado. Ajeitou-se melhor ao assento, como se algo o pinicasse. Prendendo o controle remoto sob um braço e segurando as duas beiradas do móvel com as mãos, iniciou o sermão:

— Não quis te ofender. Mas precisa entender como o mundo é de verdade, diferente do que seus professores doutrinadores da faculdade contam. O comunismo não deu certo em nenhuma parte do mundo, e aquela gente quer virar sua cabeça! Quando eu tinha sua idade...

— Pai, eu não defendo revolução comunista! – Thiago subiu o tom, embora se mantivesse um tanto contido, ciente de até onde poderia ir. – Nunca defendi nada assim, dentro ou fora de casa! O que eu defendo é a democracia, com igualdade de oportunidades!

— Igualdade de oportunidades é comunismo, ora essa! – o pai cruzou os braços. – Vista todo mundo igual, faça com que possam comprar apenas os mesmos carros ruins, sem nem terem peças para consertá-los se quebrarem. É nisso que acredita? Também acredito na democracia, garoto. Aliás, dentre nós dois, talvez seja o único. Por isso mesmo sou contra os vermelhos!

— O senhor vive elogiando a ditadura militar...

— Não houve ditadura militar no Brasil.

Thiago sentiu um terremoto dentro de si, sua consciência pacífica e tolerante à mercê de uma avalanche de ódio inconformado. Como negar a ditadura? As perseguições, as torturas? Suavizar, ou relativizar, um governo autoritário só por estar de acordo com suas posições ideológicas?

O pior, no entanto, era saber que a versão alternativa de seu próprio pai, vinda de uma realidade em que a ditatura não terminara, reconhecera que Thiago seria torturado ou morto caso seu esquema de levar mídia de seu mundo ao outro através do guarda-roupa fosse descoberto. Um próprio agente da repressão reconhecia a crueldade de seus métodos e que seus superiores eram ditadores. Quem diria que, num país há mais de trinta anos ventilado por democracia e liberdades, a mesma pessoa, do alto de seu trono de latas de cerveja e futebol nas tardes de domingo, poderia dizer o contrário?

Talvez Thiago devesse colocar as duas versões do pai para conversar. Aquela com a qual convivera desde criança teria muito a aprender com a segunda, recém-apresentada a si. Esta última, claro, também precisava de melhorias: mas se o agente do DOPS poderia rever seu apoio à ditadura diante da alienação de seu semelhante, o Estevão que concebera Thiago também aprenderia ter havido sim ditadura no Brasil com os relatos que o agente do DOPS ofereceria.

Claro, colocar os dois frente a frente poderia aniquilar todo o universo... A pouca fé de Thiago nos seres humanos, todavia, não o fazia enxergar aquilo como uma ideia tão má...

Reprovou-se. A raiva tentava-o a ter tanto desprezo pela vida das pessoas quanto seu interlocutor. Não podia. Tinha de mostrar ser melhor.

— Se o senhor diz... – responder assim feriu-o muito, mas a prioridade era encerrar logo a discussão. O pai talvez até concordasse se soubesse que o intuito era ajudar seu outro "eu". O auxílio a ele mesmo, se é que possível, teria de esperar.

— Vá, vá perder tempo com suas coisas, vá!

Estevão dispensou-o num gesto com a mão, que voltou em seguida ao controle remoto na enriquecedora tarefa de escolher qual canal de TV sintonizar. O filho deu-lhe as costas e deixou a sala, os passos determinados dos chinelos servindo de indicador que, por dentro, não fora derrotado.

X – X – X

Oliveira ensaiou novo mergulho para baixo da cama no momento em que uma chave voltou a girar a tranca da porta. A voz de Thiago, entretanto, tranquilizou-o – e ele permaneceu sentado no colchão enquanto o filho que até então não sabia ter readentrava o recinto.

— Tudo certo aqui? – o jovem indagou.

— Sua mãe veio varrer, mas me escondi a tempo... – o agente do DOPS levantou uma palma em apaziguamento antes que Thiago pudesse se alarmar. – Está tudo bem. Só devia realmente arrumar melhor isto aqui...

— Quem diria que a fama de bagunça do meu quarto atravessaria dimensões!

O garoto colocou-se ao lado do agente, e ambos se voltaram ao guarda-roupa. Estático, silencioso, tal qual jamais houvesse demonstrado algo fora do ordinário.

— Como ele funciona? – Oliveira perguntou.

— Eu não sei.

— Já contrabandeou caixas e caixas de obras subversivas para o outro lado, e não sabe?

Thiago bufou.

— Ele se aciona sozinho de quando em quando... Dá para perceber pelo brilho e os estalos elétricos. Não tenho controle sobre ele, no entanto. Não existe algo como um botão ou alavanca que eu possa acionar para ligá-lo.

— Isso é complicado, porque precisamos ativá-lo agora... – de pé, o agente levou as mãos à cintura, olhando impaciente para a estrutura de madeira. – Retornar com Queirós é uma prioridade. Ele em seguida deve ser destruído! Quem sabe quais danos vir para cá pode ter ocasionado à minha realidade?

— Eu diria que o inverso é mais provável, mas...

— E se já derem por minha falta do outro lado?

— Sobre isso, pelas vezes que viajei, bem... A transição de tempo de uma dimensão a outra é meio louca. Nunca pude determinar com certeza quantos dias, meses ou até anos havia de diferença entre aqui e lá por causa do celular ficar totalmente desconfigurado depois de se passar pelo guarda-roupa, mas o mero fato de ser dia numa dimensão e noite na outra já deixa alguma suspeita.

— Foi exatamente o que notei durante a travessia. Mas e quando voltou? Chegou num momento diferente em sua própria realidade?

— Não. Reapareci no meu quarto praticamente no instante seguinte a ter desaparecido. Meu parâmetro, por não poder olhar no celular, foi sempre deixar alguma música tocando no computador. Ao retornar, a faixa nem havia terminado. Isso ocorreu todas as vezes desde que adotei a técnica, então deve ser uma regra constante das viagens nessa coisa.

Thiago ficou pensativo por um momento, encarando Oliveira, porém enxergando muito além dele.

— Mas agora temos a oportunidade de verificar a distorção de datas...

Antes que o agente conseguisse inquirir do que raios ele falava, o rapaz emendou uma indagação:

— Que dia era quando passou pelo guarda-roupa?

— Nove de novembro de 2016. Uma quarta-feira à noite.

O jovem coçou o queixo, sem responder – o que contribuiu para aumentar o suspense.

— E aqui? – Oliveira precisou reforçar.

Caminhando até a porta fechada do quarto, Thiago puxou uma camisa amarrotada pendurada num cabide, revelando atrás dela um calendário de folhas destacáveis. Apontou a uma coluna do lado esquerdo, composta de números vermelhos indicando os domingos. O dedo do rapaz pousou sobre o último registro:

— Trinta e um de março de 2019. Aniversário do golpe militar de 1964, que vocês apoiadores chamam de "revolução".

— Importante data comemorativa, sim, no mundo de onde venho – o tom de Oliveira sugeria certa satisfação por Thiago reconhecer aquilo. – Nesta sua realidade, presumo, um dia que devem repudiar.

O garoto suspirou demoradamente.

— Você não tem ideia...

Após fitar o chão por alguns segundos, tornou a erguer a face e completou:

— Foi o que iniciou as trocas de farpas no almoço, aliás.

O agente do DOPS só anuiu inexpressivo num leve balançar da cabeça.

— De todo modo, agora temos certeza que o guarda-roupa conduz a um mesmo ponto no espaço entre diferentes dimensões, porém momentos distintos no tempo. Dois anos e meio de atraso entre sua realidade e a minha. Isto é, em questão cronológica... – Thiago aparentou estar negando que a dimensão de Oliveira pudesse ser atrasada de alguma maneira, mas na verdade a justificativa fora devido a, em regime político, considerá-la ainda mais atrás. – Não sabemos se essa defasagem é constante entre nossos dois mundos. Caso não seja, bem... Então o guarda-roupa também é um instrumento de viagem no tempo.

Foi a vez de o garoto sentar-se à cama, olhar confuso e transparecendo ter milhares de teorias rodopiando em sua mente. Oliveira também sofria com a carga de informação, sentindo-se zonzo pelo próprio raciocínio e até meramente contemplar Thiago. Um longo momento de introspecção transcorreu até o jovem centrar sua expressão, um último olhar lançado ao guarda-roupa antes de falar ao agente, bem mais convicto que antes:

— Precisaremos compartilhar nosso segredo com mais alguém. Uma especialista, capaz de nos ajudar. Eu diria até entender o portal dimensional e colocá-lo para atender nossas vontades.

— E quem seria esse gênio? – Oliveira riu meio incrédulo.

— "Esse" não, "essa". A Larissa, que estudou comigo no colegial. Agora cursa Física na UFRJ.

E, já se encaminhando à porta, avisou:

— Minha ideia é ir vê-la e trazê-la até aqui. Vou trancar de novo o quarto e...

— Não, rapaz – embora soasse sério, o agente não quis mostrar-se ameaçador. – Eu vou com você.

Sem que Thiago pudesse abrir por completo a boca em espanto, o pai de outro mundo replicou:

— Entenda como obtenção de dados à Inteligência.


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