Equilíbrio escrita por docin1


Capítulo 1
Capítulo Único




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Observar as estrelas sempre foram a melhor parte da minha noite. Talvez fosse o brilho ou o fato de estarem sempre longe demais para serem alcançadas o que me fascinava, mas não importava. São a melhor parte da minha noite.

E o melhor lugar para observar as estrelas era ali, no pedaço de paraíso que encontrei caído nesse inferno: uma queda d'água calma e cercada por pedras, plantas e árvores, escondendo o meu pedaço de paraíso apenas para mim. É o único lugar onde sou capaz de relaxar os ombros, deixar as asas descansarem preguiçosas no chão e, verdadeiramente, suspirar. Colocar a cabeça no lugar e sentir tudo aquilo que não era capaz de sentir durante o dia.

A noite nunca foi o suficiente. Eu estava ali, com os olhos colados nos pontinhos brancos irradiando luz própria, mas em breve o céu ficaria claro outra vez. E mesmo tendo algumas horas pela frente, eu já me sentia triste por saber que as perderia de vista.

As cortinas de folhas que rodeavam a queda d'água tranquila se mexeram mesmo na ausência do vento, atraindo a minha atenção para o verde. Esperei ver um pequeno animal saindo do meio das plantas, talvez um coelho perdido como acontecia às vezes, mas não.

A própria luz me encontrou.

Era uma mulher. Uma divindade-mulher. Toda feita de luz e nada mais.

Nunca, em toda a minha existência, eu havia encontrado alguém tão... Não, nenhuma palavra conhecida seria capaz de descrever seu esplendor.

Talvez fosse Afrodite a me visitar.

—  Oi.

Sua voz era morna, aconchegante. Quase fechei os olhos no conforto daquele som. Seu cabelo dourado deixava uma trilha sem final na água enquanto ela a atravessava até mim.

Cada estrela daquele céu infinito havia perdido o brilho na presença dela.

— Nunca te vi por aqui. - Ela falou quando percebeu que não conseguiria responder seu oi. - O que está fazendo?

— Pensando.

— Sobre o quê?

Ela sentou na pedra ao meu lado e pôde me olhar de perto. Eu mal podia respirar. O ar entrava e saía dos meus pulmões por puro hábito, porque eu estava usando o máximo da minha concentração para poder falar e não deixá-la esperando:

— Nada em especial.

Encarar seus olhos era como ter dois sóis me cegando ao mesmo tempo. E eu nunca pensei que ficaria feliz com a possibilidade de ficar cego.

— Também nunca te vi aqui.

— Eu não costumo vir nesse horário.

— Você vem para pensar também?

— Sim.

— Sobre o quê?

— Nada em especial. - Ela sorriu. - Qual o seu nome?

— Ícaro. E o seu?

Ela me sorria. Senti-me infinitamente grato por existir naquele instante e... mal, na mesma proporção. Meus sentidos, meu corpo... Tudo estava turvo, perdendo forma.

E se ela fosse o próprio anjo da morte?

Nada seria capaz de descrever o quanto eu estava feliz por saber que morreria ao lado da luz.

 

***

 

Puxei uma grande quantidade de ar para os pulmões antes mesmo de abrir os olhos. Era como se eu tivesse me afogado. Aos poucos, comecei a recordar o que parecia ser o sonho mais belo de uma vida toda de pesadelos.

— Oi. - A voz morna, agora parecia trêmula.

Cocei os olhos para ter certeza do que via. Ela estava ali, sentada do outro lado do lago, nas pedras mais distantes de mim, mas que me mantinham no seu campo de visão.

Eu sabia que nem as minhas memórias mais bonitas seriam capazes de imaginar tal divindade. Ela era real.

— O que aconteceu comigo?

— Você derreteu.

Soltei uma risada sem querer. Rir era tão incomum que estranhei o som que saiu dos meus lábios.

— Eu não estou brincando. Você derreteu. - Ela parecia irritada, talvez até magoada com a minha reação.

Eu não sabia o que havia acontecido, mas sua luz me fazia sentir revigorado. Atravessei o lago arrastando as asas na água e parei na sua frente. Ela fez beicinho, ia chorar. O anjo da morte chora magoado quando pensa que machucou alguém. Se for um sonho, pensei, que eu o viva bem antes que acorde.

Estiquei minha mão para tocar em seu rosto tentando disfarçar o sorriso de antecipação que se formava em meu rosto. Quando aproximei minha mão de sua bochecha, senti. Meus dedos, meu braço... Eu estava derretendo. Ao ver minha mão se tornando cera derretida, pronta para pingar, ela virou o rosto com força, com lágrimas nos olhos de cegar homens.

Meus olhos arregalados se transformam em olhos de decepção, depois raiva. Estava tão claro agora.

Eu, sempre tão apaixonado pelas estrelas, agora conhecia a mais brilhante delas.

— Você é o sol.

Ela não respondeu, só prendeu as lágrimas nos olhos. Estiquei minha mão de novo, devagar. Se fosse para derreter, que fosse lento e doloroso, mas que eu pudesse contemplá-la até meu último segundo.

Encostei em seu rosto e comecei a sentir meu corpo ceder, cansado demais. Usei toda a minha concentração e a fiz olhar para mim, confusa e surpresa. Levei minha outra mão ao seu rosto e a trouxe para os meus lábios. Que audácia, a do menino de cera, de beijar o próprio sol.

Vi seus olhos se arregalaram, depois fecharem lentamente enquanto eu perdia o benefício da consciência.

 

***

 

Mal pude acreditar que já estava anoitecendo. Desde o momento em que acordei sozinho nas pedras até agora, tem sido dia mais longo de toda a minha vida. E mesmo tendo quase morrido por um beijo, eu ainda não tinha certeza se era real ou apenas a alucinação mais maravilhosa de toda a minha vida.

No instante em que começou o pôr do sol, voltei voando para o meu pedaço de paraíso que agora era ainda mais precioso que antes.

Ela demorou. E eu esperei ansioso, implorei que ela viesse, que fosse real. Berrei com os deuses quando ela não apareceu, soquei as pedras. Mas ela veio. Esplêndida, impressionante.

— Você não morreu. - Ela comemorou com um sorriso.

Morri. Eu morri uma vez por segundo desde que acordei sem você.

— Você se lembra do que aconteceu?

— Eu beijei você. E não morri. - Eu sorri. Na verdade, acho que já sorria desde o momento em que a vi atravessando a cortina de folhas.

— Não morreu. - Ela disse mais para si do que para mim.

— Vem, quero te mostrar uma coisa. - Estendi-lhe a mão.

— Vai na frente, quero ver você voando de perto.

— Você me vê voando?

Ela acenou que sim com a cabeça, com as bochechas rubras.

Voei alto sendo seguido pela sua luz do chão.

Minha casa ficava sobre duas árvores altas, feita com a intenção de não deixar ninguém além de mim entrar. Pela primeira vez, considerei construir uma escada. No entanto, agora eu não tinha nada para ajudá-la a subir.

Estendi-lhe a mão pela segunda vez naquela noite e, dessa vez, ela aceitou. Subi rápido e nos atirei para dentro pela varanda sem nenhuma delicadeza. Minha mão estava derretendo. Assim que ela tocou o chão, soltei sua mão e me afastei o suficiente para não desmaiar.

— Você mora aqui?

— Sim.

Ela passou os olhos cintilantes por cada cantinho da minha casa na árvore feita de madeira velha como se fosse o seu próprio pedacinho de paraíso. De repente, até eu gostava mais da minha casa.

— O que é isso?

Ela encontrou minha coleção particular de plantas na namoradeira da varanda de madeira. Caminhou próxima aos vários vasos de vários tipos de plantas que pareciam muito mais vivas agora, absorvendo a luz do sol de perto.

— São plantas.

— Sim, mas, e nos vasos?

— Ah, eu coloco nomes nas minhas plantas.

— Por quê?

— Me ajuda.

— Com o quê?

— Me ajuda lidar com... os meus medos. Olha, isso é um bonsai e o nome que eu escolhi é solidão.

— E essas? - Ela apontou para as pequenas violetas.

— Escuridão.

— Você tem medo do escuro?

Dei de ombros. Ela sorriu tímida, se aproximando. Sua luz me aquecia como nada nunca foi capaz e senti meus lábios formarem um sorriso. Como eu poderia não ter medo de ficar sem aquela luz? Eu sentia minha cera amolecendo, mas não doía como antes. Quando ela chegou perto o suficiente, a envolvi com meus braços e asas, sentindo seu calor.

Senti seus lábios nos meus outra vez e me senti derreter de dentro para fora.

 

***

 

Quando abri os olhos, ela estava sentada no chão, com os braços apoiados na cama e o queixo apoiado neles. Ela me olhava intrigada, preocupada. Àquela distância, seu calor era apenas confortável.

— Você derrete quando eu te toco.

— Um pouco.

Estiquei a mão para tocá-la, mas ela afastou o rosto.

— Não faz assim. - Pedi com demasiado desespero, mas não era por menos.

Você não pode me dar o prazer de sentir seu calor e depois tirá-lo de mim. Minha mão ficou suspensa no ar por segundos agonizantes. A ideia de nunca mais tocá-la me invadiu, meu corpo esfriou, me senti apagar. Eu seria capaz de passar o resto da vida toda apenas observando? Não. Não depois de sentir seu calor, seu corpo na minha pele.

Pulei da cama e me sentei no chão próximo a ela, rápido demais para que ela pudesse me afastar.

— Eu não quero machucar você! - Ela berrou, sentida e magoada.

Peguei sua mão e a encostei em meu peito.

— Olha. Olha! Quanto mais tempo eu passo perto de você, mais rápido o meu corpo se acostuma.

Ela arregalou os olhos, depois sorriu. Minha pele derretia em volta da sua mão incandescente, mas mais devagar. Ou talvez não, talvez estivesse igualmente doloroso e rápido como das primeiras vezes, mas nenhum de nós dois queria acreditar nisso.

 

De quando em quando, eu inventava uma desculpa para levantar da cama e me aproximar da varanda. Geralmente era quando eu estava perto de desmaiar por estar muito tempo perto dela. Toda vez que ela ria, mesmo que só um risinho bobo, sua temperatura aumentava uns 100ºC e eu ficava perto de derreter inteiro. Então eu levantava, ia até a varanda e tomava um pouco de ar. Ela fingia que não, mas sabia o porquê de eu me afastar.

— Biscoitos?

— Sim, biscoitos. - Confirmei o nome que acabava de apresentar.

— São maravilhosos! Incríveis! Fantásticos! - Ela contemplava um biscoito torto e ligeiramente queimado nas bordas como se fosse um pequeno pedaço do céu.

— Não acredito que você nunca comeu um biscoito.

— Nem eu! Como pude passar toda a vida sem provar essas coisinhas marrons? - Ela apontava para as bolinhas de chocolate.

Ela comeu todos. Todos os quinze biscoitos que eu fiz na última vez que tive que levantar da cama para não me desmanchar em cera. Em pouco tempo, estava percebendo que dar a ela coisas de comer costumava funcionar. Aparentemente, ela não comia muito quando no céu.

Nos deitamos juntos outra vez e a mesma alegria inexplicável me atingiu. Dessa vez, ainda mais. Ela se deitou sobre mim, despindo a minha camiseta cinza sem vida.

Nenhuma palavra foi dita, só o que se ouvia eram suspiros e nossas respirações altas em compasso. Morri e renasci mil vezes. Estar com ela, dentro dela... Era como se eu tivesse passado a vida me arrastando pelo mundo dos mortos e, agora, havia vida sendo derramada sobre mim.

Minha cabeça, meu corpo… Eu não o controlava mais. O próprio Eros me movia, era a única explicação para que eu continuasse vivo mesmo estando deitado sobre o Sol, sentindo suas mãos em brasa nas minhas costas e suas pernas em volta da minha cintura. Ela sorria e suspirava de olhos fechados, tão linda que eu desejava com todas as minhas forças gravar cada detalhe do seu rosto na memória. No ápice daquele momento - e de toda a minha vida - ela falou, com a voz baixa e rouca, talvez até trêmula. Ícaro. E agora o meu nome era realmente meu, eu teria a lembrança da sua voz cravada na minha alma por toda a eternidade.

 

***

 

“Acorde! Acorde agora!”, Ícaro ouvia uma voz distante, mas não sabia de onde. Não era Sol, ele saberia se fosse Sol. “Acorde, tolo!”, ele ouviu mais uma vez, um pouco mais perto, mas não o suficiente para que ele realmente entendesse o significado das palavras. Eram apenas palavras distantes. A voz continuou chamando mais alto, cada vez mais próxima, até irritada, até que Ícaro foi de encontro ao chão. Ele abriu os olhos de repente e puxou tanto ar quanto seu pulmão era capaz de abrigar. Não tinha se dado conta que já não respirava há alguns minutos e só percebeu quando caiu da cama.

Suas asas pingavam no chão de madeira enquanto ele caminhava em direção à sua varanda, cada vez mais longe de Sol, que dormia tranquila na cama, iluminando toda a casa com a sua luz. Quando Ícaro chegou à varanda e sentiu o ar gelado contra seu corpo já completamente sólido, Sol iluminava apenas o quarto. A cada passo, ao aumentar a distância entre os dois, a luz de Sol diminuía.

Estava perto da morte quando acordou, ele sabia. E alguém o acordou. Quem? Depois de tanto tempo, por que alguém estava se preocupando com a sua vida agora? Depois de anos tentando se fazer notar, tentando ser ouvido, depois de desistir. Por que havia alguém preparado em mantê-lo vivo agora? Ícaro suspirou e trocou a paisagem da noite para olhar para dentro de casa, para Sol dormindo em sua cama, mais ou menos enrolada em seus lençóis. Depois de uma vida inteira, Ícaro estava grato por estar vivo pela primeira vez. Não sabia quem o havia acordado, mas agradeceria quando tivesse a oportunidade.

Ele dormiu ali, na varanda. Quando acordou, Sol já havia partido e o céu estava claro com a sua luz. Pela primeira vez, Ícaro se incomodou com a neblina e as nuvens que deixavam o dia cinza. Geralmente, não era com aquela estrela que ele se preocupava e agora ela era a única. Contou cada minuto com ansiedade e, no primeiro sinal do pôr-do-sol, preparou-se para encontrar sua divindade-mulher, que desceria dos céus para vê-lo.

“Não vá”, escutou. A mesma voz que o manteve vivo, agora o mandava esperar. “Não vá, Ícaro.”

— Quem está falando comigo?

— . - A falta de resposta o irritou

— Quem é você? - Perguntou com a voz um pouco mais alta, áspera.

Nenhuma resposta. Ele suspirou e abriu as asas, pronto para ir.

— Não vá, seu tolo! - Agora era real, Ícaro podia sentir.

Estava bem ali, atrás dele. Um homem também alado, mas não parecia ter a mesma pele, não parecia ser feito da mesma coisa. As asas preenchiam todo o ambiente com uma luz pálida, mas ainda celestial; os cabelos eram encaracolados e castanhos, pareciam ter sido desenhados com perfeição. Todo ele, na verdade, parecia perfeito. Mesmo que invadindo sua casa e lhe dando ordens, Ícaro não conseguia sentir nada além de afeição pelo desconhecido.

— Foi você que me mandou acordar?

— Sim.

— Eu ia morrer, não ia?

— Sim.

— E por que não me deixou partir?

— Era isso o que você queria?

— Bom, não. - E suspirou, lembrando-se do quanto estava grato a cada segundo que o céu escurecia um pouco mais.

— Não há de quê, então.

— A quem devo agradecer?

— Meu nome é Eros.

— Você é filho de-

— Sim. - Eros revirou os olhos tão discretamente que nem Ícaro percebeu. Nem mesmo aquela que chamava por mãe perceberia.

— Bom, obrigado. Agora eu preciso-

— Não vá. - Sua voz já não era tão calma.

Ícaro não respondeu. Na verdade, nem sabia se realmente tinha entendido o que parecia ter entendido. Apenas o fitou com expressão de dúvida. Eros suspirou.

— Vocês não podem fazer isso. Não podem mais.

— Fazer o que? - Sua voz tremia assim como o seu corpo.

— Ouça, talvez seja melhor você se sentar. Precisamos conversar. - Eros deu dois passos para frente e Ícaro deu dois passos para trás.

— Não! Não posso sentar, não posso conversar! Eu vou vê-la e você não pode me impedir!

— Eu posso.

Ele podia. Ícaro sabia que ele podia. Qualquer um saberia, os deuses podiam fazer o que quisessem e quando quisessem, nunca perdendo tempo em se importar com vidas pequenas como as de Ícaro, nunca com receio de tirar qualquer sopro de vida de alguém como ele. Como pôde mantê-lo vivo se o mataria logo em seguida? Se tiraria aquilo que significava a vida dele?

— Então me impeça. - Ícaro o desafiou, deu-lhe as costas e foi em direção à varanda.

Ele colocou o pé sobre o parapeito e se preparou para alçar voo. Se fosse muito rápido, talvez conseguisse vê-la uma última vez, dizer-lhe adeus antes de ser arrastado para o Hades.

— Apolo irá matá-la. - Três palavras foram capazes de deter Ícaro.

Colocou os dois pés no chão e virou-se novamente para Eros. Ele queria questionar, brigar, gritar. Mas não precisava, Eros falou da sua Sol e Ícaro jamais questionaria se isso valesse a sua vida. Eros conseguia mais do que ver a dor em Ícaro, conseguia senti-la.

Embora Ícaro não clamasse por respostas, seus olhos o faziam.

— Ela pertence a Apolo. - As palavras de Eros provocavam dor física a Ícaro. - Ele a tem como seu deus, ele a manteve pura e ao seu redor desde o seu primeiro contato. O deus do sol não fez nada quando a pegou observando você, quando ela desceu dos céus para vê-lo de perto… Mas o que aconteceu depois disso? Ele jamais permitirá. Eu, sinceramente, não sei como você ainda está vivo. Não sei como não derreteu após estar tão perto dela, após o que aconteceu. É apenas por você ter sobrevivido que eu estou aqui, aliás. Mas se o calor de Sol não o matou, o deus dela também não irá fazê-lo. Ele fará pior.

Ícaro esteve colado nela, com seus corpos tão juntos que não se poderia dizer onde um começava e o outro terminava, como se fossem um. E isso não o matou. Ele derretia e doía, mas o prazer era imensamente maior que a dor e ele sobrevivia.

— O que existe entre vocês é real e maior do que qualquer coisa que poderia existir entre Apolo e Sol, é por isso que estou aqui. Porque ele irá destruí-los a não ser que você o faça.

— Eu?

— Se Apolo intervir diretamente, Sol tentará impedir-

— E ele vai matá-la.

— Não se brinca com o ego dos deuses.

— Mas eu não…

Ícaro se sentiu ofendido, derrotado. Apolo teria coragem de destruir a mulher que amava por ego ferido? Apenas porque Sol preferia descer dos céus e deitar-se com um infeliz amante de estrelas, alguém que não sabia o que era viver até conhecê-la? A resposta era óbvia. Não se brinca com o ego dos deuses.

Ícaro, familiarizado apenas com a dor e recentemente apresentado ao amor, agora provava o sabor da fúria.

— O que você está fazendo aqui, Eros? - A raiva era perceptível em sua voz. Ele dava passos largos na direção de Eros.

— Vim alertar.

— Por quê? - Agarrou a camiseta branca do homem alado e o empurrou até a parede de madeira.

— Eu estou do seu lado, tolo! - Berrou com as mãos para cima, defendendo-se apenas com palavras.

— POR QUÊ? - Bateu Eros contra a parede, fazendo toda a construção precária tremer.

Eros respirou fundo antes de empurrar Ícaro para o outro lado da casa com apenas uma mão. Ícaro perdeu todo o ar de seus pulmões quando bateu com as costas na parede. Eros é um deles, é um deus.

— Eu sei que não tenho uma boa fama entre os amantes, mas sei reconhecer quando vejo um grande amor e decido quando devo protegê-lo. Ela está esperando por ti, despeça-se. Se é que você a ama.

 

***

 

Sol estava mesmo esperando por Ícaro. Parte dela, estava nervosa pela demora do amante e a outra parte estava apenas muito ansiosa. Batia os pés na pedra em que estava sentada e olhava o tempo todo para o seu reflexo na água, questionando se estava bela o suficiente para ele. Ele atravessou a cortina de folhas andando ao invés de voar até ali. Sol não reparou, mas as asas dele se arrastavam como se tivessem o dobro do peso.

— Ícaro! - Ela sorriu e deu um pulinho infantil da pedra que estava para terra. Ícaro desviou o olhar. - Por que demorou? Eu estava ficando preocupada.

Ela se aproximou devagar, sensual e sorridente, ele quis dar uns passos para trás, precisava ser forte, mas seus pés estavam fincados na terra. Todo o seu corpo, seu coração… cada parte de si era contra o que ele precisava fazer e lutava para que ele não fizesse.

— Precisamos conversar. - Ele falou quando ela chegou perto de tocar seu rosto, ela parou com a mão no ar e o olhou com atenção. - Eu estou deixando você.

Sol parou de brilhar. Pela primeira vez desde que ele a conheceu, Sol não estava brilhando.

— Oi?

— Estou deixando você. - Ele repetiu com raiva na voz. Raiva de si e raiva dos deuses.

— Por quê?

Ícaro deu dois passos para atrás, como resposta. Dizer qualquer coisa poderia quebrá-lo, fazê-lo desistir. Sol avançou com o olhar confuso e a voz alta, com medo.

— Não! Você não está! Ícaro! - Quando as primeiras lágrimas começaram a rolar pelo rosto dela, Ícaro deu-lhe as costas. - Não!

Sol voltou a brilhar, só que de fúria. Seus cabelos dourados estavam vermelhos, ela se tornou fogo. Ele não parou, não obedeceu suas ordens de retornar, continuou andando enquanto ela ia deixando de brilhar, desesperada.

— O que eu fiz de errado? - Perguntou baixinho, com a voz chorosa.

Ele finalmente atravessou a cortina de folhas e rezou que ela não fosse atrás, ele já não conseguia segurar sua pose. Quebrado, ele estava. Arrastou suas asas pesadas pela terra fitando os próprios pés a cada passo dolorido. Talvez fosse mesmo melhor assim, ele jamais seria digno de uma divindade-mulher. Sol não merecia nada abaixo de um deus, e ele… o que era? Nada.

Enquanto Sol, ah, Sol ainda derramava lágrimas na terra onde se conheceram. Ainda brilhava vermelha, ainda estava com raiva, mas se sentia fraca. Como alguém pode ser capaz de plantar amor no coração de alguém e depois fugir? Todos os contos que ela costumava escutar, quando nos céus, não passavam, então, de contos? E aquelas vezes que ela foi capaz de ver o amor? Quando, lá do céu, viu o amor acontecer na terra? Era real, ela sabia. Talvez apenas não fosse pra ela. Seu brilho se apagou. Talvez ela não fosse feita para o amor, pensou. Ela caminhou pesadamente na direção oposta a de Ícaro e, por onde passava, seu cabelo arrastando no chão tirava a vida de tudo aquilo que tocava.

 

***

 

Ícaro não conseguia abrir os olhos. Sentia vontade de abri-los, mas não conseguia. Gemia e batia os dentes sem parar, sentindo tanto frio quanto se era possível, frio que saía dos ossos para a carne. Na varanda, um pequeno vaso fora adicionado a sua coleção particular: um pequeno girassol. Em seu vaso, lia-se “amor”. Ícaro sabia que, desta vez, não haveria ninguém para acordá-lo quando estivesse perto demais da morte. Na verdade, já se sentia perto demais da morte. Rogou, em seu coração, que pudesse vê-la antes de partir e, mesmo com dor e frio, sorriu minimamente quando começou a escutar a voz de sua amada. Quando chegasse ao Hades, procuraria agradecer quem quer que o tivesse proporcionado esse imenso prazer antes da morte.

 

***

 

Estrelas morrem, não morrem?

Sol batia o dedo indicador no queixo questionando-se. Sim, estrelas morrem, ela sabia disso. Mas, como? Parecia complicado demais provocar a morte de uma estrela. E não qualquer estrela, afinal. Ela, que sonhava tanto em descobrir se amor realmente existia, acabou descobrindo que dói mais descobrir do que passar a vida toda em dúvida. Sol não seria capaz de, lá do céu, vê-lo voando no fim da tarde, como costumava fazer. Dois dias correram desde que ele a deixou e ela não conseguia nem ao mesmo pensar nele sem que todo o seu corpo doesse, sem que lhe faltasse o ar e ela tivesse vontade apenas de jamais tê-lo conhecido. O amor era real. Real e cruel, doía tanto… Talvez fosse mais fácil apenas esquecer. Isso! Esquecer seria o suficiente e nem tão complicado quanto morrer.

Ela fitou o abismo e ele a fitou de volta.

 

***

 

Ela o chamava e seu corpo respondia. A voz de Sol, sempre tão aconchegante e tranquila, parecia com medo e assustada. Ela o chamava pedindo que ele não a deixasse, ele a sentia, mas não conseguia vê-la. A agonia de poder ouvi-la, mas não poder vê-la ou sentir seu calor o matava, mas não tanto quanto não ouvi-la. A voz dela sumiu de sua cabeça, nenhum som além de seus dentes batendo por conta do frio arrebatador.

Ícaro abriu os olhos. Todos os seus músculos estavam contraídos, suas asas pareciam esfarrapadas e seus ossos doíam. Ele se arrastou até a janela e pulou de asas abertas, mas foi ao chão. Estava fraco demais para voar. Correria, então. Correu com o seu máximo, tropeçando vez ou outra em seus próprios pés errantes, até alcançar o lugar onde descobriu o amor. Alguns passos depois da cortina de folhas e ela estava ali, como ele sentiu. Estava na ponta dos pés, encarando o precipício que ele próprio encarou por vezes, com a mesma vontade de dar um passo em direção ao fim.

— Sol!

O pé que estava dançando no ar, balançando enquanto ela tomava coragem para ir, voltou para terra. Ela olhou para trás só para ter certeza que era mais uma alucinação, mais uma vez que ela o ouvia sem que fosse real. Mas ele estava ali. Ícaro estava ali!

— Sol? - Ícaro chamou de novo, já que ela não respondeu da primeira vez. - Vem aqui. - Pediu, com medo de fazer qualquer outra coisa.

Ela não se mexeu, apenas o encarava com uma pontinha de dúvida. E se ela estivesse imaginando? Ele deu dois passos com muito cuidado, sentir o calor de Sol depois de tanto tempo era entorpecente. Ela esticou a mão até chegar perto de encostar na bochecha fria de Ícaro e a viu começar a derreter. Sorriu. Era mesmo ele, não era sua imaginação.

Ícaro a tomou nos braços, envolveu sua cintura e a protegeu com suas asas, que agora tinham vida outra vez. Trocaram um beijo como se fosse o último, a pele dele derretendo e os dedos dela se enroscando no cabelo dele, como tinha que ser.

 

— Eu pensei que você quisesse me deixar. - Ela perguntou, manhosa. Estava deitada sobre o peito dele agora, ambos na grama.

Senti-la tão perto depois de dias que lhe pareceram a eternidade era como acordar de um pesadelo ou voltar para um sonho. Ela sorria, mas ainda tinha os olhos tristes, tinha medo.

— Eu não vou.

— Mesmo?

— Sim. O que pode dar errado? - Ele falou mais para si do que para ela.

Nos céus, havia um deus pronto para responder.

 

Ele conseguia, agora, passar uma noite toda com Sol nos braços. Sua cera derretia superficialmente, toda aquela tontura e fraqueza também vinha, mas passava. Valia o esforço para tê-la presa aos seus braços o máximo de tempo que podia. Enquanto ela dormia tranquila e com uma pontinha de sorriso nos lábios, ele pensou no que Eros diria se os visse agora.

Como uma explosão no centro do quarto, o filho da deusa do amor com o deus da guerra veio lhe responder. Suas asas brilhantes e bem abertas iam de uma parede até a outra e, atrás de si, havia ainda mais luz.

— Tolo.

Antes mesmo que Ícaro conseguisse responder, após o susto de ter seu quarto invadido, ele já não estava no quarto. Estavam na grama, Ícaro e a sua que acordava confusa, mas ainda em seus braços. Atrás de Eros, uma grande quantidade de luz brilhava iluminando a noite mais do que a lua.

— O que está acontecendo? Ícaro? - Sol perguntou chorosa. Chorosa porque sabia que ele não conseguiria responder, porque sabia que era culpa dela.

Ícaro carregava uma grande quantidade de medo, mas estava mais tranquilo do que qualquer um deles. Eros os protegeu uma vez, ele poderia fazê-lo de novo. Não poderia?

Pela cortina de folhas, lugar por onde Sol entrou na vida dele, um homem saiu. Era belo, como uma estátua divina que ganhava vida. Diferente dos outros homens ali, não tinha asas, tinha a pele morena e cachos negros escorrendo na testa. Os olhos, dourados.

Sol se levantou assim que o viu e colocou o corpo pequeno e dourado na frente do amado. Toda a tranquilidade de Ícaro o havia abandonado e ele agora tremia dos pés à cabeça.

— Muito bem, irmã. Chegou antes de mim. - Ele sorriu sem levantar os olhos, tinha o sorriso perfeitamente ameaçador.

— Você sabe muito bem, irmão, que eu não sou só um rostinho bonito. - Ela saiu de trás do filho.

A mulher deu alguns passos à frente e Eros abaixou as asas. Ela vestia uma túnica no tom mais claro de cor-de-rosa e, quando tirou o capuz, todos presentes perderam o fôlego por alguns segundos.

Como era possível tamanha beleza? Ícaro olhava de Sol para a mulher ao lado de Eros e fazê-lo estava o deixando muito confuso. A mulher tinha traços delicados e perfeitos, e parecia muito com a mulher-sol que tentava protegê-lo com os seus metro e sessenta de altura. Diferente da sua Sol, ela tinha a pele mais escura que a sua e mais clara que a do seu irmão. O cabelo loiro-dourado caía em cascatas perfeitas por seus ombros e costas. Era impossível de desviar o olhar.

Eros foi o único a perceber a confusão do outro homem alado e suspirou antes de explicar. Não que ele precisasse explicar, aquela confusão que os mortais sentiam o divertia, mas o pobre homem já estava amaldiçoado o suficiente e não custava nada distrair-lhe a mente antes do golpe que estava por vir.

“Ela é Afrodite.”

Ícaro escutou em sua mente. Estava quase acostumado a ouvi-lo dessa forma: “O irmão dela, Apolo.”, Eros apontou discretamente com a cabeça para o homem de pele morena e olhos dourados. Ícaro cerrou os olhos pousados em Afrodite, ainda confuso. Então ele continuou: “Ela é a deusa do amor e da beleza, e estes são indissociáveis. A beleza é relativa, Ícaro, está nos olhos. Aquilo que você ama, se torna belo aos seus olhos, então Afrodite se parece, para você, com a mulher que você ama e acha a mais bela dentre as mulheres.”. Isso parecia o suficiente para fazê-lo concentrar sua atenção no que precisava.

— E você acredita que chegar aqui segundos antes de mim, muda alguma coisa? - Apolo perguntou, mas agora não sorria.

— Talvez eu possa barganhar.

— Eu duvido.

— Eles são reais, irmão. O amor deles é real e poderoso.

— Desde quando isso basta para você interferir?

— Eu não estou interferindo, sabe que eu não poderia. - Afrodite tinha os olhos ferozes de quem luta, mas abaixou a cabeça.

— É mesmo? Então pode me dizer o que Eros estava fazendo quando avisou o homem, dias atrás?

— Um favor a você. - Ela deu de ombros.

— Eu não pedi favor algum! Não preciso dos seus favores e, que eu saiba, você é quem me deve um.

Sol não parecia escutar a discussão que acontecia a sua frente, apenas deixava lágrimas rolarem pelas bochechas e mantinha o peito estufado na frente do amado. Ícaro abriu suas asas e a envolveu com elas, numa espécie de abraço. Sol suspirou e soluçou. É real, então. As histórias que ouvia, lá no céu, não eram apenas histórias. O amor é real e ela o sentia em cada parte do seu corpo e em seu coração.

— Você jamais a terá como quer. - Afrodite suspirou porque já sabia como o dia terminaria.

— TEREI! - O chão tremeu com a voz de um Apolo muito irritado. Ele passou as mãos no cabelo cacheado e limpou a garganta. - Você me deve favores, não se lembra?

— Ora, você sabe que eu não sou capaz de fazê-la te amar. Ninguém é capaz de fazê-la amar ou deixar de amar. - Deu de ombros mais uma vez, recusando-se a ajudar o irmão de qualquer maneira que fosse.

— Ah, Sol… - Apolo se aproximou de Sol sem trocar ao menos um olhar com Ícaro, atrás dela. Ele levantou os dedos e tocou seu rosto relutante. - Você devia ser minha.

— Eu sou, deus Apolo. - A voz da garota estava fraca e ela abaixou os olhos, como fazia sempre que ele se aproximava.

— Não! Devia ser minha como escolheu ser dele! - Seus olhos foram de encontro aos de Ícaro e este pensou que ficaria cego, tamanha a intensidade do olhar.

Ícaro gritou de dor e colocou as mãos na cabeça, tentando se concentrar. Apolo sorriu. O homem era fraco, ele terminaria tudo antes do que havia planejado. Ele deu um passo na direção de Ícaro e sua Sol colocou-se entre eles novamente. Apolo apenas a empurrou para o lado com uma das mãos e continuou a seguir em direção ao homem que já conseguia recuperar sua visão.

— Ninguém te avisou, mortal? Não se deve brincar com os deuses. - Ele agarrou Ícaro pelos ombros e o lançou ao chão. Suas mãos, na pele de Ícaro, deixavam marcas de queimadura e ele gemia de dor. - Eu sou um deus! Eu a mereço! E ela escolhe você? - A cada frase, um golpe era desferido em Ícaro, que apenas tentava se proteger.

— Não! Eu escolho novamente! - Sol berrava entre lágrimas de desespero e ódio e Apolo a encarou, parando a mão fechada em punho no ar. - Serei sua, deus Apolo. Como quiser que eu seja. - Ela suspirou, olhando para o chão. Assim, podia evitar o olhar de desespero do homem que amava e o olhar de vitória do homem que devia aprender a amar.

— Será minha? - Apolo se levantou, com uma ponta de sorriso nos lábios e se aproximou da mulher-sol.

— Sim.

— Como eu quiser? - Ele chegou perto o suficiente e pegou suas mãos.

— Sol… - Ícaro se arrastava na terra numa tentativa de alcançá-los.

— Sim. - Ela se esforçou e levantou os olhos para ele, que sorria. Valeria a pena para manter Ícaro vivo.

— Nós poderíamos ser tão felizes juntos. - Apolo secou uma lágrima insistente que rolava no rosto da garota.

Poderíamos? Sol arregalou os olhos. Podemos, diga que podemos!

— Minha irmã tem razão. Eu não posso fazê-la me amar. Mas você será minha, Sol, e jamais deixará de iluminar o céu, nem que eu a carregue.

Enquanto proferia palavras, uma carruagem de luz tomava forma ao lado deles. Sol chorava enquanto, junto da carruagem, correntes de luz se enroscavam em seu tornozelo direito e em ambos os punhos. Ao fim das palavras de Apolo, Sol já estava acorrentada à carruagem de Apolo.

— Não! Por favor… - Ícaro suplicava.

— Eu também já me cansei de você. - Apolo deu de ombros.

O deus do sol bateu um dos pés com força na terra e, sob Ícaro, uma rachadura surgiu e foi aumentando até que o mesmo fosse engolido pela terra. Sol abaixou a cabeça e já não soluçava ou emitia luz, as lágrimas desciam silenciosas e ela estava opaca. Afrodite se aproximou da garota e revelou sua ideia apenas na mente dela. Apolo sabia as extensões e limites dos poderes da irmã, então contentou-se em esperar de braços cruzados sobre a carruagem, com Sol acorrentada atrás dele.

— Sim. - Sol aceitou após escutar a deusa do amor, a quem guardava um pouco de ressentimento. Por que fazê-la amar se isso custaria tudo?

Ao menos, Sol havia sentido emoções com mais intensidade do que pensou ser capaz. Cada momento ao lado do seu amado fazia com que perder o resto de sua vida valesse à pena. Ainda mais agora, depois de ouvir a oferta da deusa do amor. Ele estaria a salvo e ela jamais o esqueceria.

— Tem certeza? Uma vez que fizer, não terá como ser desfeito.

— Por favor.

 

***

 

Acordou, mais uma vez, dentro da gaiola. Mais uma vez sem saber se estava alucinando ou vivendo aquela realidade cruel e fria. Um homem alado, ele era. Quem teria a coragem de prendê-lo numa gaiola? Quem seria cruel o suficiente para privar um homem alado de voar? Ícaro havia desistido de descobrir. Depois de quase enlouquecer e encontrar-se são novamente, ele havia desistido.

Em algum lugar abaixo da terra, ele estava. Um tipo de caverna ou talvez estivesse no Hades. Sua gaiola conseguia ser ainda menor que a sua pequena casa na árvore, que ele já não via há tanto tempo. Ali, cercado de barras de ferro negras, ele tinha apenas onde dormir e comia vez ou outra, quando aparecia comida antes dele acordar. Por alguns buracos no teto da caverna, ele sabia que era dia. A luz do sol entrava pelas falhas e o mantinha acordado, lhe dava luz o suficiente para continuar seus desenhos na madeira da base da gaiola. Vários e vários sóis desenhados com o auxílio de uma pedra preenchiam a base da gaiola. Não entendia e nem procurava entender o porquê dos sóis, apenas gostava de desenhá-los e o fazia para matar o tempo.

Acontece que já não tinha espaço na base da gaiola, estava toda preenchida. Acontece que ser são o estava matando, ficar preso o estava matando. É um homem alado, afinal. É feito para voar, cortar os céus e ver o sol sem ser através de falhas nas paredes da caverna. Não tinha para onde ir, não sabia como havia chegado ali, mas tinha de fugir.

Bateu com o corpo nas barras de ferro como havia feito assim que se encontrou preso, dias atrás. Bateu vezes e mais vezes numa única barra, até fazê-la soltar-se da base.

“Tolo.”

Ouviu uma voz em sua mente e ela parecia familiar: “Não vá”. Estaria perdendo sua sanidade? Deu de ombros. Perdê-la seria melhor do que continuar preso. Deu o primeiro pulo para fora da gaiola e suas asas se abriram, fortes e ávidas por um pouco de liberdade.

“Não vá!”, a voz o advertiu de novo.

Ícaro não quis saber o que havia no interior da caverna, apenas se chocou contra a porção mais falhada da parede da caverna e encontrou a liberdade. O mar estava logo abaixo de si e, acima, o sol. O céu estava limpo, sem nuvens que o impedissem de ver a estrela mais brilhante das estrelas, sua inspiração enquanto estava preso e ainda inspiração quando encontrou a liberdade.

Sua luz brilhava forte, atraindo o homem alado a voar cada vez mais alto, cada vez mais perto do céu.

 

De sua carruagem, sendo conduzida por Apolo e ainda presa às correntes, Sol gritava em pânico. Era a primeira vez que via Ícaro depois de dias sem saber se estava vivo ou morto, sem saber se Afrodite havia cumprido sua promessa. Agora, vendo-o voar muito rápido em sua direção, Sol sabia que sim, Afrodite havia tirado suas lembranças da mente da mente, mas não poderia fazê-lo do coração. Ícaro sentia a atração irracional pelo sol e voava em sua direção sem perceber que seu corpo derretia e ele pingava sua cera no mar. Ela suplicou a todos os deuses, chorou e proferiu palavras proibidas enquanto via, acorrentada e impotente, seu amado se dissolver sob seus olhos, voando sem parar em sua direção mesmo sem se lembrar de tudo o que haviam vivido juntos.

De todas as histórias trágicas de amor que ouvia dos outros, antes do homem que conduzia sua carruagem com um sorriso no rosto prendê-la, a sua era mais trágica.


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