a Flor e o Vento escrita por Aline Stechitti


Capítulo 7
Duas mulheres




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Nunca gostei de recordar o passado. Eu apenas vivia os dias conforme eles nasciam e morriam. Agora, trancado aqui, recordar é meu único vício. Os anos em que trabalhei para aquele militar, cujo nome eu prefiro evitar dobrar minha língua para dizer, quase não existem em minha lembrança. As cenas terminam naquela árvore em que dormi naquela madrugada. Talvez eu tenha ficado nela por alguns anos ou ainda esteja vivendo por lá.

 

*************************************

Os irmãos Borges, sim, eram assassinos. No entanto, éramos apenas mais dois entre os tantos matadores da região. Dessa forma, era fácil passarmos despercebidos. Na época, raras pessoas de Divino sabiam, mas mesmo quando muitas ficaram sabendo, poucas se importaram. Os cidadãos tinham respeito por nós dois, assim como a polícia sutilmente agradecia por nossos serviços. Andávamos tranquilos à cavalo pelos pastos e estradas, sempre com nossas armas na cintura e os chapéus largos na cabeça. 

Contudo, Mauro e eu quase nunca estávamos ao mesmo tempo na chácara. Vivíamos circulando pela região. Procurávamos mulheres, não vou negar. E a oferta nunca foi pouca para nenhum de nós dois. As moças tinham esperanças de se casar bem e nós dois vivíamos realmente muito bem para os padrões da época.

Valéria foi encontrada em uma dessas minhas voltas. Eu cometi o erro de levá-la para a chácara em vez de ficar com ela em qualquer paiol. Depois disso ela passou a ter esperanças que eu covardemente não destruí.

— Valéria, moça brava! — Inferno, eu a adorava. — Você é louca, Valéria!

Aqueles olhos cor de mel ficavam bonitos como nunca diante dos primeiros raios de sol, quando o dia amanhecia e um pouco de luz passava pelas frestas das janelas de madeira e se depositava sobre a minha cama. No entanto, era só Valéria abrir a boca que meu desejo de olhar para ela se dissipava.

— Quando vamo casar, Rômulo?

— Não sei. — Me espreguicei e joguei os lençóis para longe. Era bom ficar nu.

— Cê nunca sabe, né? Nunca diz nada. Nunca me dá uma explicação do que cê quer. E eu sei que cê dorme com tudo que veste saia!

— Você é louca.

Quando Valéria dormiu comigo ela não era mais virgem, ou "moça", como as pessoas de Divino diziam. Diferente de meu irmão, eu pouco me importava com a virgindade da mulher, mas descobri que elas mesmas se importavam muito. Isso as fazia inseguras e, portanto, muitas vezes, insuportáveis.

— Ocê mente! É um safado! Desgraçado! Mentiroso! 

Ela se sentou na cama de costas para mim e fingiu chorar. O cabelo castanho claro era cortado nos ombros, o que me dava a visão de suas costas brancas. Eu a agarrei pela cintura enquanto ela ainda resmungava e mordi seu ombro com força. A dor a fez se calar e ela tentou me bater, mas eu a segurei e a rolei para baixo de mim.

— Não me amola! — Rosnei, segurando seus pulsos. — Vamos nos casar quando eu disser que vamos. Me ouviu?

Era comentado por toda a região que Valéria tinha um sonho antigo de se casar com alguém de fora da cidade. O que ninguém sabia é que ela gostava principalmente das noites com homens diferentes dos que conhecia na região.

— Minhas tias falam que os homens delas não usa dos dedo e nem a boca, sabia? — Ela ronronava em meus ouvidos. — Eles não tão nem aí pra elas. São só vacas pra enxertar. Cê não é assim. Cê faz essas coisas que gosto. Cê se importa comigo.

Eu ouvia suas adulações, mas não dava resposta. O que ela pensava sobre mim não me interessava. A verdade é que eu pouco estava me importando em satisfazer qualquer mulher. Eu gostava de ver as mulheres gritando e apenas isso. Valéria era bonita e me irritava tremendamente. Vê-la desesperada com minha mão direita entre suas pernas e a esquerda apertando seu pescoço era tão bom quanto entrar nela.

— Vai acabar se casando. — Mauro ria de mim. — Espera mais um pouco e ela aparece de barriga cobrando casamento.

— Se aparecer eu pego meu filho e mando ela embora. Não me interessa ter mulher, mas um filho eu não nego.

— Tá sabendo que peixe morre pela boca, irmão? — Mauro fixou os olhos desaforados em mim, pois sabia que eu o julgava por seus atos no passado. — Só espero então que Valéria esteja mesmo cuidando pra não embarrigar.

— Ela me disse que sim.

— Mulher diz muita coisa, Rômulo. O que não é mentira, é delírio.

De qualquer maneira, meu irmão tinha certa razão. Valéria estava a todo momento comigo. Ela me acompanhava à cavalo por todos os lugares e estava quase todos os dias na minha cama. Não havia nenhum papel assinado que nos ligasse, mas ela já fazia as vezes de minha mulher.

Isso, devo dizer, se estendia à chácara, que ela tratava como sua casa. Era comum que eu a visse dando ordens aos filhos de seu Antônio, principalmente à Rosa, que era quem mais ficava na casa.

Eu estava acabando de chegar do pasto numa tarde, debaixo de uma neblina fria, quando a ouvi gritar, pedindo que Rosa lhe trouxesse café. 

— Porque você não pega? — Me enfureci ao vê-la sentada com os pés para cima. — Sua mão quebrou por acaso?

— Ela não tá aqui pra isso? — Valéria me desafiava como nenhum macho tinha coragem. — Tem mais que fazer, se é que ela tá aqui pra isso.

— Não, ela não tá! — Minha voz repercutiu como um trovão. — Ela não é sua empregada e essa não é a sua casa.

Rosa entrou na varanda com o café, mas não teve tempo de servi-lo. Valéria não me respondeu, mas se levantou e nos encaramos como animais selvagens. Em segundos passou por mim, tão ágil quanto o vento. Sempre que se irritava, a mulher pegava o cavalo e sumia por uns dias, depois retornava como se nada tivesse acontecido.

Fiquei de braços cruzados observando sua saída. Quando me dei conta, vi que Rosa ainda estava ali. Parecia criança assustada esperando chinelada do pai.

— Tá tudo certo por aqui? — Perguntei, baixando o tom de voz e retirando as botinas e o chapéu.

Ela balançou a cabeça ainda assustada e eu me aproximei. Estava me acostumando a tê-la por perto. Dona Cida já não era jovem e deixava o trabalho da chácara nas mãos da filha quase todos os dias. Eu preferia assim.

— O dotor veio mais cedo. — Observou ela, parecendo um tanto tensa por estarmos sozinhos. — Não ia botar as cercas de trás?

— Termino amanhã. — Eu estava me sentindo estranhamente fraco e eu nunca me sentia daquele jeito.

A menina me cercou na porta e, antes que eu entrasse, colocou a mão pequena e fresca em meu rosto. Foi instinto, imagino, ela não se aproximava dessa maneira.

— O dotor tem febre. — Constatou ela. — Toma um banho que eu vou fazer um chá de horta. 

Obedeci como um menino e apenas hoje me dou conta disso. Tomei um banho e me deitei no sofá da sala enquanto o dia esfriava ainda mais. O inverno estava se aproximando e Divino é conhecida por ter um frio bem intenso para o clima do sudeste mineiro.

— Dotor. — Ouvi a voz de longe, o que me pareceu horas depois. — Toma isso.

Ergui um pouco a cabeça e tomei o chá estranho que Rosa me deu. Senti calafrios e forcei os olhos a se abrir. 

— Não obedece mais a Valéria, ouviu? — Sussurrei antes que ela saísse.

— Tá bom, dotor.

— E se ela chiar, deixa chiar... Ouviu?

Devo ter visto uma sombra de sorriso em seu rosto.

— Tá bom, dotor.

Meu irmão não voltou para casa naquela noite. Estava em suas gandaias com as mocinhas bobas que conseguia arrastar para os cantos escuros. José Marcos e o irmão Carlos Alberto, ou Carlo, como todos chamavam, chegaram ao anoitecer. Estavam consertando o outro lado da chácara.

— Se o dotor quiser nós pode ficar aqui. — Ofereceu José. — Dou um pulo lá em casa e aviso a mãe. É perigoso num ter quem vigiar as terra e o dotor não tá lá essas coisa, né Carlo?

— Verdade, dotor. — Confirmou o irmão mais velho, rindo. — A Rosinha pode queimar uma cachaça com erva cidreira pro senhor. Ela sempre faz pras mulé de resguardo.

Ele segurou o riso assim que se lembrou de que eu não era meu irmão.

— É... É sério, dotor, é bom pra resfriado, né Zé? — Cutucou o mais novo, que se esquivou.

— E eu lá sei, Carlo! — O menino saiu resmungando. — Lá vou saber de mulé prenha!

Fui para a cozinha ainda ouvindo os dois tagarelarem, dessa vez sobre o quão adiantado estava o trabalho na chácara. Eu não quis ouvir. Fiquei todo o tempo observando Rosa preparar a mistura. Ela colocou um prato sobre a bancada, colocou galhos de erva cidreira dentro, despejou cachaça e açúcar, depois jogou um fósforo aceso no prato. As chamas subiram e ela foi mexendo com uma colher até o fogo se desfazer e apagar. 

— Só esperar esfriar um pouco, dotor. — Ela sorriu para mim.

Tomei aquilo e me deitei, deixando os três irmãos conversando na cozinha. Eles dariam um jeito de achar um canto para dormir, já conheciam a casa. Acordei de madrugada, porém, com alguém abrindo a porta do meu quarto. Era Rosa. Não consegui acordar completamente.

— Sai. — Resmunguei. — Me deixa dormir.

— Toma esse chá, dotor. Vai ajudar.

Aquela noite foi infernal. A febre, as dores e os delírios me cansaram mais do que se estivesse acordado. Quando o galo cantou no terreiro, meus olhos se abriram automaticamente. Ao me sentar na cama, eu a vi ali, encolhida no chão frio, bem no canto do quarto. Usava um xale de tricô em volta dos ombros magrelos e os pés estavam descalços e roxos. Que imagem estranha e incompreensível.

— Rosa! — Gritei. — Levanta, menina!

Ela despertou em um pulo, esfregou os olhos e veio até mim.

— O dotor sarou?

— Num interessa... Vai embora, vai cuidar das suas coisas. — Me levantei enquanto ela saía rápido de perto de mim. Segurei a cabeça dolorida e pesada nas mãos por alguns segundos. — Que diacho foi isso?


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