a Flor e o Vento escrita por Aline Stechitti


Capítulo 1
Os irmãos Borges


Notas iniciais do capítulo

Essa história será postada todos os dias às 9:30 da noite em ponto! Média de 20 a 30 capítulos.



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Prólogo

Meu reflexo revela uma criatura hedionda. O menino que eu fui lamentaria pelo homem que me tornei. Os pecados que cometi jamais poderão ser pagos e nem toda a eternidade nas garras do diabo me libertarão da minha culpa.

A história de como cheguei a esta cela, na madrugada do dia 27 de junho de 1996, é um filme que se repete todos os dias em minha memória. Sinto um latejar constante em meu cérebro incendiado pela delícia que ela foi em minha vida e pela maldição que eu fui na dela.

— Rosa! Meu Deus! O que fiz com você?

As grades que me separam do mundo e os presos que me arrebentam contra as paredes são detalhes rotineiros que tenho aprendido a apreciar nesse lugar. Cada dor é um mínimo alívio do comichão que sinto na pele pela obrigação de estar dentro de mim, por essa maldita obrigação de ser quem eu sou.

Todas as noites, nesse cubículo frio e escuro, me aqueço com a fantasia de que esse último ano da minha vida não foi real. Mas a voz de Mauro sempre surge em meus ouvidos, sibilando como uma serpente.

— Faça o que tem que fazer! Está em suas mãos, Rômulo. Faça o que tem que fazer!

Eu fiz, irmão. Eu fiz.

*********

Minas Gerais, 1987

A chácara era dez vezes maior do que nossa antiga moradia no Paraná. Possuía dois andares com cinco quartos grandes, sala, cozinha, dois banheiros e duas varandas largas. Nos fundos havia muitas árvores frutíferas, chiqueiros, um espaço para galinhas e um extenso pasto. Em volta de tudo isso estavam as grandes e verdes montanhas.

— As cercas precisam de conserto. - Mauro anotou mentalmente. - Temos que conseguir cavalos e cachorros bravos. Não me deixa esquecer também que, além das garruchas, vamos ter que comprar umas boas espingardas.

— Pra quê tudo isso numa cidade sossegada dessas, homem?

Ele abafou um riso de escárnio. Meu irmão se decepcionava comigo até nas falas mais simples.

— Não viu as cruzes pela estrada, irmão? Em Divino se mata mais gente por prazer do que boi pra comer. Podemos não durar uma semana aqui se não formos espertos.

Mauro caminhava em volta do nosso investimento com ar esnobe. Eu não o julgava por se sentir daquela maneira. Nós nunca havíamos sido donos de nada. Aquela era uma sensação nova para mim também, mas eu não era como meu irmão. O que eu sentia ou pensava quase sempre ficava só comigo.

— É um bicho do mato! - Lembro de meu pai rosnar sobre mim com minha mãe. - Esse menino não fala! Não ri! Não chora! Daqui a pouco nasce rabo e a gente vê que criou bicho e não gente!

Com as mãos na cintura magra, o cigarro no canto da boca chamuscando o bigode negro e um chapéu branco na cabeça, meu irmão estava tão parecido com nosso pai que muitas vezes eu sentia que conversava com o fantasma dele.

Nós dois éramos diferentes. Mauro tinha ossos finos, mas era forte, seus olhos eram espertos e ele estava sempre com uma sombra de riso desaforado no rosto. O que posso dizer de mim é que continuei sendo um bicho do mato. Adquiri olhos cada vez mais sombrios que se encolhiam por baixo das sobrancelhas grossas e conservei por muitos anos uma barba cerrada e escura que nublava ainda mais o meu semblante. Apesar dos cinco anos a menos, eu tinha me tornado mais robusto que meu irmão com o passar dos anos. Se saíssemos no braço, no entanto, era difícil dizer quem mataria e quem morreria.

— Eu gosto de Divino, Rômulo. Você logo vai gostar também. - Mauro não cansava de repetir essa ladainha para mim. - É um lugar quieto. Quando alguém morre por uma dívida, o povo entende que a conta foi acertada e não se fala mais nisso. Não vamos passar pela mesma situação de Londrina.

Fiz um sinal positivo de cabeça enquanto olhava as montanhas ao redor de nós. Não estava com vontade de conversar sobre Londrina. Apenas aos vinte e três anos de vida estava finalmente compreendendo o que meu pai queria dizer com ser livre. Quase senti pena do velho naquele dia. Ele viveu naquela terra por toda sua juventude até que uma briga de foices no meio da lavoura o fez fugir. Em alguns anos o câncer começou a corroer seus pulmões e ele então perdeu todas as chances de voltar.

— A gente pode começar a arrumar a chácara pela manhã. A não ser que você esteja muito animado. O que você me diz, Mauro?

Eu estava exausto até mesmo de observar aquele horizonte verde e só desejava um bom banho. No entanto, ele era o mais velho e tinha sempre a última palavra.

— Não, é melhor amanhã mesmo. Além do mais, deve estar na hora de jantar.

Mauro afastou a manga da camisa e o ouro reluziu. Aquele relógio era seu único acessório realmente valioso e ele o adorava. Ao contrário do meu irmão, eu não me importava com luxos e muito menos compraria algo que pudesse chamar a atenção das pessoas da região. Nem a caminhonete que dirigíamos havia passado despercebida e isso me ensinou algo: Os divinenses sempre sabem de tudo.

— Não subestime ninguém desse lugar. - Mauro já havia comentado antes de chegarmos. - Eu vim aqui com nosso pai muitas vezes e sei do que estou falando.

Assim que pusemos os pés em Divino fomos à procura de pessoas para trabalhar na chácara e não foi difícil encontrar quem nos indicasse alguns nomes. Graças ao antigo dono, muitos já nos conheciam antes mesmo de nos apresentarmos. Éramos chamados de "Irmãos Borges" e todos nos tratavam com doses iguais de cordialidade e cisma.

— Eles olham pra gente como se soubessem o que fizemos! - Comentei com Mauro. - Olham como se pudessem ler a nossa vida.

Ele respirou fundo e expulsou o incômodo ar das minhas palavras. Estávamos na pracinha da cidade, bem próximos da pequena rodoviária. Aquele domingo estava calmo e ensolarado.

— É, irmão, vejo que vou fazer bem em te levar pra roça. Alguns meses no meio do mato vai espantar essas caraminholas da sua cabeça. O Paraná é passado. Minas é o presente!

Estávamos sentados em um dos bancos da praça, com nossos pescoços virados para cima, visualizando a bonita igreja imponente no alto da escadaria, como uma mãe zelosa sobre a população que vagava abaixo.

— Diacho! Isso aqui é lugar santo! - Um arrepio me subiu pela nuca.

— Quê?

— Uma pomba desceu do céu e deram o nome dessa terra de Divino Espírito Santo!

Mauro arregalou os olhos em minha direção e depois de um segundo de silêncio, desatou a rir.

— Onde ouviu isso, irmão?

— Naquele bar, onde mais? Os homens estavam falando. As mulheres também falam. Diacho! Até as crianças sabem disso!

Meu tom severo sempre fazia Mauro silenciar o riso. Ele não cruzava os limites comigo e eu o respeitava por isso.

— Você nunca foi de crendice, Rômulo. Que tá acontecendo com você?

— Eu não sei. Mas esse lugar tem alguma coisa pra nós dois. Ou pode ser que seja só pra mim. Eu não sei ainda.

Um mal estar me atravessava desde o primeiro instante naquela cidade. Ela me puxava para seu interior como um ímã e eu estava sendo atraído para ela como uma presa em direção à armadilha.

— Se é um lugar santo como você diz, pode ser que seja coisa boa que vem por aí, irmão. Quem sabe? Pode ser um recomeço pra nossa vida.

Ergui os olhos para a cruz na torre da igreja, pensei por um segundo e balancei a cabeça.

— Não. Deus não daria nada de bom a um sujeito como eu.

Naquela manhã fresca, à sombra das densas árvores da praça, eu me senti um homem amaldiçoado. Ela ainda não havia entrado na minha vida, do contrário não me sentiria daquela forma. Hoje eu não posso dizer que Deus não tentou me dar algo bom na vida. Mas eu fui como um garoto vândalo que viu a beleza e não soube se servir dela com suavidade. Com minhas mãos brutas e meu sangue assassino, eu a arruinei.




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