Luzes da Rebelião escrita por Marcelo


Capítulo 1
Capitulo 1 - O funeral




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A tarde estava fria e chuvosa, da janela do meu quarto no segundo andar podia ouvir as buzinas dos carros em meio ao falatório das pessoas lá embaixo, correndo para buscar abrigo da chuva que caia pesada. Meu peito apertava de angustia e tristeza que parecia não ter fim. É claro que depois que minha mãe morreu, eu e meu pai tentamos levar a vida da melhor forma possível; eu tinha a faculdade e alguns poucos amigos para conversar e distrair, mas o velho só tinha a mim, ele e minha mãe eram muito ligados, faziam tudo juntos, faziam compras, iam ao médico, um sempre acompanhando o outro, meus amigos muitas vezes disseram que meus pais eram exemplo a seguir e que me invejavam por termos uma família como aquela nos dias de hoje.

Porém, as coisas foram piorando para o velho, começou a largar mão da higiene, passou a fumar mais, o que era horrível, pois o cheiro do tabaco pela casa era quase insuportável. Ele andava horas pela orla, sempre cabisbaixo e a esmo, costumava dizer que não chamava a atenção das pessoas, mas outro dia chegou em casa rindo e tossindo ao mesmo tempo, dizendo que um idiota tinha lhe dado dinheiro pensando que era um indigente, eu pensei que o estranho não estava de todo errado, mas nada disse ao meu pobre pai, deixei que curtisse o momento, afinal não era fácil arrancar-lhe um sorriso. A partir dai entretanto, a saúde dele decaiu e tivemos que ir ao pronto socorro muitas vezes seguidas. Baterias de exames foram feitas, até que o médico, no final do que pareceu uma maratona, concluiu se tratar de enfisema pulmonar, uma doença crônica degenerativa. O tratamento seguiria pelo resto de sua vida.

Com o passar do tempo, o quadro de saúde dele piorou consideravelmente dia após dia, e hoje está lá em sua cama deitado, sem forças e sem ânimo para continuar, os médicos não nos deram quaisquer esperanças, ele partirá em breve inevitavelmente, ele sabe disso e eu ficarei completamente sozinho.

Fui até a cozinha preparar algo para comermos, fiz uma sopa de legumes com galinha, a preferida do meu pai, pedi a ele que se levantasse para comer, mas ele recusou-se dizendo que estava muito fraco, então me restou apenas levar o jantar para ele, depois de ajudá-lo a se sentar e acomodá-lo bem, entreguei a ele a pequena travessa com o alimento, ele sentiu o aroma da comida como sempre fazia, dizia que isso lhe aguçava o paladar, todavia comeu pouco. Após recolher as coisas voltei para a cozinha, limpei tudo e depois de dizer boa noite ao meu pai segui para meu quarto para estudar um pouco para um teste que viria. Adormeci sem perceber.

Pela manhã me arrumei como de costume, tomei um café puro sem açúcar e fui me despedir do velho que estava dormindo com fazia todas as manhãs.

—Pai, já estou indo, hoje venho direto para casa, não se preocupe com nada, apenas descanse, disse a ele, que não respondeu, sequer se mexeu na cama.

Aquilo me preocupou, corri até a beirada da cama para verificar; ele estava muito fraco, a respiração ainda mais difícil do que o habitual, não tive dúvidas, liguei para a emergência e em dez minutos chegou a ambulância. O socorro foi rápido, meu pai foi colocado na maca e em poucos minutos estávamos dando entrada no hospital municipal. O salão estava cheio de doentes. Com aquela clima era de se esperar que muitos adoecessem, principalmente as crianças que são mais vulneráveis. Havia ao menos uma dezena delas aguardando, algumas no colo, outras com as carinhas pálidas e tristes encostadas em seus pais aflitos.

Os enfermeiros entraram rapidamente levando meu pai pelo corredor apinhado e eu fiquei no saguão para formalizar a sua entrada e seu atendimento. Fiquei horas esperando sem ter qualquer aviso sobre seu estado de saúde e já era quase meio dia quando um enfermeiro me pediu para entrar, pois o médico estava me chamando. Entrei rapidamente, estava ansioso por notícias e para ver meu velho. Eu o procurei pelas salas contíguas, mas não o encontrei. O doutor Renato Alcântara veio ao meu encontro e me explicou o que havia acontecido. Explicou que meu pai não havia resistido e que estava morto.

O que eu mais temia acontecera, meu velho pai havia partido, agora eu estava de fato sozinho. Uma lágrima correu pela minha face enquanto o médico assinava os documentos do óbito para que eu levasse ao cartório e providenciasse os trâmites do sepultamento. Insuficiência respiratória foi a causa da morte.

Ele me permitiu ver meu pai e segui pelo corredor até o necrotério do hospital. Uma sala grande, azulejada e fria, algumas mesas de aço inox e gavetas para os corpos de cima a baixo em uma das paredes. A ventilação me pareceu escassa naquele local claustrofóbico. Quando o enfermeiro abriu a porta e puxou a gaveta, reconheci meu pai, tinha o semblante austero como lhe era peculiar, mas em paz.

Será que ele já se encontrou com minha mãe, pensei. Ela, certamente, estaria ao seu lado neste momento, refleti sobre aquilo querendo que fosse verdade. Toquei a mão fria do meu pai e fiz uma oração, chorei em silêncio por alguns minutos, prometi a ele que continuaria firme e lhe pedi que me desse sua proteção e benção. Quando deixei o corpo do meu pai ali, ainda soluçava meu choro contido. Agora, eu tinha que tratar de toda a papelada e burocracia.

Saí dali e liguei para alguns parentes para avisá-los do ocorrido, um tio distante, uma prima do meu pai, meu tio por parte de mãe. Ainda que eu não quisesse alardear, a notícia sobre a morte do velho correu rapidamente pelo bairro.

Fui até em casa, abri o guarda-roupa do meu pai e peguei um terno preto que sempre achei bonito, peguei uma camisa azul escura e uma gravata. Meu pai sempre foi um homem alinhado e vaidoso, eu o conhecia bem, embora nos últimos tempos ele tenha permitido que a doença lhe tirasse a alegria. Ao menos seria enterrado como ele merecia. Fui ao banco e tirei algumas economias de minha conta para custear o funeral.

Assim que encomendei tudo na funerária, entreguei a roupa ao atendente para que ele se dirigisse ao hospital e fizesse seu trabalho. Corri ao cartório e providenciei a documentação.

Voltei para casa, comi alguma coisa, tomei um banho, me barbeei e me preparei para a noite em claro. Olhei para a cabeceira e vi a fotografia da mamãe, que mantinha ali. Ela era linda e sorria para mim, senti saudades do que jamais aconteceria novamente.

Quando sai de casa, alguns vizinhos do prédio me deram os pêsames. É claro, tudo muito formal e vazio, não havia sentimento de verdade em nenhum deles, apenas o Zeca da portaria, que nos conhecia bem foi quem se aproximou com lágrimas nos olhos e me abraçou. Eu o agradeci pela consideração e já ia saindo quando o Zeca me prometeu que iria ao funeral com toda a certeza.

Aos poucos, os familiares e amigos iam chegando, e o velório transcorria normalmente, porém em dado momento, quando me aproximava da urna onde jazia o corpo de meu amado pai, senti um frio incomum que me subiu pela coluna, e pude ouvir claramente a voz de meu pai me chamando:

—Gustavo!

Olhei ao redor assustado e por um lapso de segundo tive fé de que ele estaria ali, em pé, com os braços estendidos para dar-me um abraço e que tudo não passava de um sonho, porém não estava lá, de fato estavam apenas as pessoas ao redor com suas carrancas fúnebres.

Durante o enterro, a chuva voltou a cair, os guarda-chuvas armados protegiam os presentes. Apenas os dois coveiros trabalhavam sob a chuva pesada. Ao final, todos, aos poucos, foram se retirando e eu permaneci ali sozinho diante da sepultura de meus pais por mais um tempo. Agora eles estavam juntos novamente.

Quando sai do cemitério, meus tios Norberto e Laura estavam me esperando. Tio Norberto era alto, cabelos grisalhos e a pele muito branca, tinha a mente ágil, era advogado e portanto sempre vestia ternos. Sua esposa Laura era magra, cabelos escuros e cacheados, as feições inexpressivas e comportamento fútil, eu não gostava dela. Fizeram questão de me levar para casa em seu carro e no caminho conversaram comigo, me convidaram para ir morar com eles, me ofereceram dinheiro para ajudar nas despesas, porém recusei. Eu tinha o apartamento dos meus pais onde poderia continuar vivendo, o dinheiro que gastei com o funeral não me faria falta, por enquanto. Agora eu tinha dois problemas para resolver imediatamente, arrumar um emprego e quem sabe, abandonar a faculdade no primeiro semestre, afinal não teria mais como pagar e dar conta de todas as outras despesas sozinho sem emprego. Isso me deixou muito triste porque estava estudando algo que gostava e infelizmente teria que adiar meu sonho de me tornar médico.

À noite, estava muito agitado, sentia dores de cabeça, tomei algumas pilulas de tarja preta e demorei a pegar no sono, revirava na cama relembrando tudo o que havia passado. Na cama, em silêncio, esperei ouvir a tosse costumeira do meu pai, mas em vão.

—Gustavo, Gustavo!, ouvi.

Procurei ao redor, mas não havia ninguém. O silêncio no apartamento era sepulcral, novamente senti aquele arrepio que sentira durante o funeral, um solavanco em meio aquele momento letárgico.

Na manhã seguinte, o despertador tocou insistente e demorei mais do que o de costume para me levantar; a noite tinha sido péssima, a cabeça girava e as dores não cessavam. Me levantei devagar e rumei para o banheiro para fazer a higiene. Senti que aquela manhã, por uma razão desconhecida estava particularmente diferente; seguia meu caminho com cuidado quando subitamente ouvi uma forte batida na porta da frente do meu apartamento. O barulho chamou minha atenção até certo ponto, achei que poderia ser algum dos vizinhos para saber sobre meu pai, o sindico para reclamar de algo no condomínio ou aquela vizinha que achava gostosona para quem já tinha emprestado bem mais do que açúcar, entretanto, como não ouvi nenhuma outra batida, ainda que ligeiramente interessado, resolvi retomar meu caminho até o banheiro. Abri a torneira e tomei um susto quando vi aquele jato de sangue jorrar e descer pelo ralo. Um calafrio passou por mim. Esses remédios..., pensei.

A água do banho estava bastante agradável e consegui relaxar um pouco, afinal as últimas noites tinham sido estressantes entre tantos problemas, o funeral e os pesadelos constantes. Nem os remédios para dor que consegui foram suficientemente eficazes para combater aquela terrível enxaqueca. Após o banho me vesti e caminhava em direção a cozinha para buscar algo para comer, embora não sentisse muita fome, quando de repente vi as paredes da sala todas riscadas com símbolos e inscrições para mim desconhecidas e uma mulher deliberadamente sentada no meu sofá. Trajava um vestido longo e vermelho muito bonito, seus cabelos compridos, estilo rastafári pendiam pesadamente até quase a altura dos tornozelos, seus olhos brancos, indistintos, apontavam para mim. Quem é você, perguntei, e ela me disse se chamar Ohana e que estava ali para me ajudar a fazer a passagem.

—Que passagem, do que está falando? indaguei.

A lunática, invasora de residências, me respondeu que sabia sobre meus problemas de família, dos pesadelos incessantes e recorrentes, bem como das dores inexplicavelmente estava sentindo há duas noites. Disse ainda que estava ali para me ajudar a entender o poder que me cercava e para o qual estava despertando. Não sabia exatamente sobre o que ela estava falando, mas me lembrei de certas coisas que havia sentido nos últimos tempos e que deixei para lá, em virtude dos cuidados com meu pai. Refleti rapidamente sobre o que ela dizia e não pude negar que estava interessado em sua história; e ante aos seus argumentos, incrédulo e assumindo que tudo o que dissera era a mais pura verdade, a desafiei a mostrar-me a verdade sob o seu ponto de vista.

Ohana apontou para a porta da frente e quando a abri encontrei um pobre passarinho, morto, com o pescoço quebrado; agora entendia a batida na porta. Peguei o pequeno animal, com cuidado. Ela, com suavidade, se aproximou e apontou seu dedo com aquela enorme unha sobre a ave que em segundos se levantou, sacudiu as penas e saiu voando pelo apartamento. Um fato extraordinário, disse-lhe, enquanto ela se limitou a me dar um sorriso que deixava transparecer todo o seu orgulho. Ela passou o resto na manhã me dizendo coisas para me convencer da existência daquele mundo novo e caótico. Falou-me sobre seres e mundos sobrenaturais. Quando dei por mim já havia anoitecido. Aquela mulher me explicou que com o tempo eu poderia entender melhor tudo aquilo e que a única coisa que precisava entender de imediato e que depois da partida dos meus pais, não tinha mais nada a fazer ali, eu estava predestinado a coisas muito maiores do que uma vida mundana e simples.

A seguir, Ohana retirou de dentro de sua bolsa um ramo verde de uma planta qualquer e entoando palavras desconexas em um idioma desconhecido, traçou uma linha de luz esverdeada no batente da porta do apartamento e disse: Atravessemos juntos! Curioso e interessado quanto as possibilidades, dei o primeiro passo em direção àquela porta, mas parei por um instante, olhei meu apartamento por um certo tempo e perguntei a ela se veria aquele local novamente, ela me respondeu que sim, afinal aquela era a minha casa e um segundo depois juntos atravessamos o batente luminoso sem que eu soubesse para onde aquela mulher de especto excêntrico estava me levando.


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