Rochas Sombrias escrita por Bruna


Capítulo 1
Capítulo Único




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Manto de Cinza havia saído do acampamento em busca de ervas para repor o seu estoque. Ela insistiu para que permitissem que fosse sozinha. Era uma curandeira manca, certo, claramente uma gata em desvantagem física, mas não precisava de guerreiros a escoltando sempre que saia do acampamento. Eles com certeza tinham coisa melhor para fazer, era uma grande inconveniência para ambas as partes. Não era como se subitamente um grande perigo nunca antes enfrentado ameaçasse uma curandeira humilde que só queria fazer o seu trabalho em paz. Além disso, era pra ser uma missão rápida.

Sem perceber, a gata acabou se aproximando do território do Clã do Rio. Quando se deu conta já estava nas Rochas Ensolaradas. Ela parou de andar imediatamente e encarou aquele lugar.

Um turbilhão de pensamentos invadiu a mente da gata, fazendo com que o som da água corrente próxima dali se tornasse distante, quase inexistente.

Para alguns, aquele era um lugar paradisíaco, digno de ser disputado. Para outros, era um campo de batalha, onde a rivalidade de dois clãs ficava mais clara do que em qualquer outro lugar. Nenhum deles jamais abriria mão daquele bocado de pedras cortado por um rio. Incontáveis gatos já haviam derramado seu sangue lutando pelo domínio daquela fração de território.

Entretanto, para Manto de Cinza, o significado das Rochas Ensolaradas era muito mais profundo, muito mais pessoal. Aquele era um local de luto. Foi lá que ela realizou o parto de Arroio de Prata, quando ainda era apenas uma aprendiz. Não tinha experiência e tinha se desesperado, mesmo que tivesse tentado não transparecer isso. Os filhotes nasceram saudáveis, mas Manto de Cinza não conseguiu salvar a mãe. Ver a dor nos olhos de Listra Cinzenta, o espanto nos de Coração de Fogo... Aquilo acabou com ela. Saber que os filhotes teriam que crescer sem a verdadeira mãe lhe partia o coração. Aquela gata tinha família, outros gatos que se importavam com ela. Agora, só restavam os pequenos órfãos de mãe. Manto de Cinza sentia que tinha arruinado diversas vidas. Se ao menos fosse uma melhor curandeira, se tivesse se dedicado mais aos ensinamentos de Presa Amarela... Tudo poderia ter sido diferente. Presa Amarela...

Foi também nas Rochas Ensolaradas que ela soube, junto com os seus companheiros do Clã do Trovão, que a mentora não tinha conseguido retornar do incêndio. Ela insistiu em voltar com Coração de Fogo para ajudar a resgatar os gatos que haviam ficado para trás. Manto de Cinza tinha se voluntariado para ir antes dela, mas não a levaram a sério. Ela não podia ajudar a proteger o resto do clã no caso de uma patrulha inimiga aparecer, mas também não podia tentar voltar para o acampamento porque só conseguiria atrapalhar tudo, manca do jeito que era. Ela se sentia em um dilema sobre em qual situação ela seria menos inútil.

Algum tempo depois, Coração de Fogo estava de volta trazendo Retalho e Amora Doce. A jovem curandeira nem tinha notado de imediato a ausência da Presa Amarela, pois assim que o ancião começou a tossir, ela teve que se concentrar nele para ao menos tentar ajudá-lo. Porém, não havia nada que ela pudesse fazer. Seu corpo logo entrou em colapso entre os tremores e ele não resistiu. Estava morto, e era a Manto de Cinza que cabia dizer isso ao clã, aos gatos que admiravam e respeitavam aquele velho guerreiro.

"Perdemos outro gato. Mas meu sofrimento não vai ajudar o clã", havia dito na hora. Aquele não era o momento para ficar de luto. Ela desviou sua atenção para o representante e perguntou inocentemente a respeito do paradeiro de sua mentora, apenas para descobrir que ela havia sido perdida em meio à fumaça.

Em um momento de loucura, Manto de Cinza considerou ir atrás dela, mas ainda que conseguisse chegar até lá com a falta de firmeza nas patas, nunca conseguiria trazê-la de volta para a segurança. E pelo jeito que as chamas já tinham avançado naquele meio tempo, não havia chances de Presa Amarela ainda estar resistindo. Só podia estar morta.

Naquela batida de coração, todo o mundo de Manto de Cinza desabou. O tempo pareceu desacelerar enquanto ela digeria aquela informação no meio da tragédia. Presa Amarela estava morta. Aquela gata era uma figura imponente, forte, desafiadora, ameaçadora, implacável e intocável. Não parecia real que tivesse sido derrotada, mesmo que por um inimigo tão superior quanto o fogo. "Impossível, impossível", a palavra se repetia em sua cabeça.

Queria que a mentora aparecesse atrás dela sã e salva e logo iniciasse um discurso sobre como ela estava sendo inútil. Ficar parada ali, enquanto outros gatos precisavam de sua ajuda: que patética!

Entretanto, isso não aconteceria. Agora só lhe restavam os ensinamentos e as frases de efeito de Presa Amarela, que viveria eternamente nas memórias de Manto de Cinza. A nova curandeira oficial do Clã do Trovão deixou aquela corrente fria de pensamentos para trás e fez o que tinha que ser feito: assim que Amora Doce - o filhote que tinha acabado de ser resgatado do fogo - começou a tossir, ela correu até ele para tratá-lo. Não importava quantas desgraças viessem, o único jeito de superá-las seria continuar seguindo em frente.

Manto de Cinza sentiu uma brisa mais fria acariciar seus pelos. Despertou de seus devaneios e se lembrou do porquê estava ali. Não havia ninguém morrendo ali. Não havia incêndio. Era apenas uma coleta de ervas, missão rápida. Seria bom que ela não demorasse muito mais, afinal, não queria que ninguém ficasse preocupado com sua prolongada ausência e mandasse uma equipe de busca atrás dela. A última coisa que queria era chamar atenção e acabar nunca mais ser permitida a se afastar do acampamento desacompanhada. Voltou a mexer as patas meio dormentes, mas antes de se retirar dali, deu uma última olhada para trás.

Aquele lugar repleto de desespero e trevas não deveria se chamar Rochas Ensolaradas, e sim, Rochas Sombrias. Era difícil imaginar que a luz do Clã das Estrelas tocasse aquele local onde tanta desgraça já tinha acontecido.


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